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A construção discursiva do/no Jornalismo

No documento Ebook Rio20 (páginas 94-99)

Ao apontar o estudo do enquadramento jornalístico como um espaço de construção de conhecimento sobre determinado tema, não significa absoluta- mente uma percepção de que o Jornalismo “determina” visões de mundo. Antes, entendemos que o Jornalismo, assim como outros espaços sociais, realiza uma

“oferta” de sentidos, fazendo parte, portanto da construção social de diferentes formações discursivas, lugares da constituição de sentido.

Formação Discursiva (FD) é “[...] entendida como o domínio do saber consti- tuído de enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando o que pode e deve ser dito, mas também o que não pode, não deve ser dito” (INDURSKY, 1998, p.115). Assim, estudamos o Jorna- lismo como uma prática discursiva, pois ela “[...] integra a formação discursiva e o(s) grupo(s) social (ais) em cujo interior é produzido o discurso” (INDURSKY, 1997, p.20). Com isso, a institucionalização do Jornalismo é considerada parte de sua legitimação social, que vai lhe conferir um local privilegiado de enunciação.

O Jornalismo é considerado uma prática discursiva pois atua sob circunstân- cias peculiares na produção do discurso, a partir de uma comunidade e sob efeito ideológico de formações discursivas. Assim, a noção de prática discursiva junto à de lugar discursivo do Jornalismo, é fundamental para a compreensão da noção de enquadramento discursivo, dado que o Jornalismo tem a tarefa prioritária de enquadrar os acontecimentos.

Nosso objeto discursivo está vinculado à forma como as notícias são construí- das. Ericson, Baraneck e Chan30 identificam o “vocabulário de precedentes”, cons-

tituído pelo saber de reconhecimento, saber de procedimento e saber de narração. O primeiro é relacionado à capacidade de reconhecer o que é notícia, é o chamado faro jornalístico. No segundo, o jornalista mobiliza a competência na recolha dos dados e na sua verificação. Por último, o saber de narração é a capacidade de compilar as informações em tempo útil e de forma interessante (ERICSON, BA- RANEK e CHAN apud TRAQUINA, 2005b, p.40-42).

Traquina (2005b) defende então que os jornalistas possuem uma “maneira de agir”, ligada ao saber de procedimento; uma “maneira de falar”, ligada ao saber de narração; e uma “maneira de ver” ao saber de reconhecimento, onde os critérios de noticiabilidade são mais facilmente analisados.

No entanto, ao abordar a noticiabilidade, é preciso entendê-la numa perspec- tiva mais ampla para o entendimento da notícia:

30 ERICSON, Richard V.; BARANEK, Patricia M.; CHAN, Janet B.L. Visualizing deviance: a study of news organizations. Toronto: University of Toronto Press, 1987.

[…] as abordagens da noticiabilidade precisariam considerar que a análise da notícia demanda também a caracterização da perspectiva que a cons- trói, que acionaria não só conteúdos, mas motivações, parâmetros e estra- tégias discursivas diversas e mais amplas que os termos que designam os “valores-notícia” (LEAL et al., 2010, p.202).

Assim, temos que os valores-notícia também podem ser conectados à ideia do enquadramento. Na classificação feita por Traquina (2001), entre os valores de construção, destaca-se a consonância, ou seja, a faculdade de enquadrar um acontecimento em um enquadramento já existente.

Desta forma, destacamos que a noticiabilidade se relaciona com o enquadra- mento, na medida em que a primeira indica formas de captar os acontecimentos pelo modo de operação do Jornalismo. Os modos de ver, de agir e de narrar do jornalista também auxiliam a construção do enquadramento.

Bourdieu (1997) afirma que o campo jornalístico se constrói a partir de re- gras próprias e do habitus assumido pelos jornalistas. Miranda (2005) apresenta as principais contribuições de Pierre Bourdieu para o campo da comunicação: a introdução da ideia de campos sociais autônomos; o conceito de habitus (que via- biliza o retorno do sujeito à estrutura); e o capital social específico da cada campo; para cada campo há um habitus específico; a comunicação lato sensu é o campo da indústria cultural.

No campo do Jornalismo, a credibilidade é considerada como sendo o seu capital (BERGER, 1998). Desta forma, a busca pela credibilidade é de fato insti- tucionalizada, pois faz parte de uma estratégia de realização de um contrato com seus leitores, de identificação e cumprimento de expectativas (MORAES, 2001).

Berger & Luckmann afirmam que “[...] o mundo institucional exige legitima- ção, isto é, modos pelos quais pode ser ‘explicado’ e ‘justificado’” ([1966] 2008, p.88). O Jornalismo se legitima quando se justifica como instituição capaz de levar à sociedade o conhecimento acerca dos acontecimentos mais relevantes da atua- lidade. A explicação decorre das possibilidades técnicas e éticas da atividade jor- nalística, apontando-se os processos de produção do acontecimento jornalístico, pelo qual os fatos sociais são transformados em notícias.

É, portanto, deste lugar discursivo que consideramos a contribuição do Jorna- lismo na constituição de certos conhecimentos, crenças e visões de mundo, enfim, gerando sentidos “sobre”. Porém, como assevera Benetti:

[…] se por um lado deriva da fala de indivíduos inseridos historicamente em seu tempo, sendo efeito dos sentidos dominantes nesses contextos, por outro tem o poder de nomear, consagrando ou ocultando sujeitos, políti- cas, instituições, práticas e ideologias (BENETTI, 2007, p.37).

Esse processo, uma prática discursiva, passa pelos critérios sobre o que é ou não é notícia, que levam em conta questões socioculturais, estruturais dos meios de comunicação e, especialmente, a construção simbólica sobre o Jornalismo — a sua representação social. Essa construção de si relaciona-se às formações imaginá- rias e se pode organizar a partir do ethos que “[...] define para os membros da co- munidade jornalística que o seu papel social é de informar os cidadãos e proteger a sociedade de eventuais abusos do poder, ou seja, toda a concepção do jornalismo enquanto ‘contra-poder’” (TRAQUINA, 2005a, p.202).

Conceito formulado por Pêcheux, formações imaginárias, é colocado em ter- mos dos horizontes imaginários sob os quais o sujeito que fala produz sua enun- ciação, dirigida ao interlocutor:

Pêcheux (1969:18-9) afirma que o discurso produzido por um sujeito (A) sempre pressupõe um destinatário (B) que se encontra em um lugar deter- minado na estrutura de uma formação social. Tais lugares estão represen- tados nos processos discursivos a partir de uma série de formações imagi- nárias que designam o lugar que A e B se atribuem mutuamente, ou seja, a imagem que fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro (INDURSKY, 1997, p.54).

Pêcheux explica ainda a noção de formação imaginária pelas questões implí- citas para as quais as respostas dão a entender as formações imaginárias corres- pondentes: “Quem sou eu para lhe falar assim?”; “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”; “Quem sou eu para que ele me fale assim?”; “Quem é ele para que me fale assim?’” (PÊCHEUX, [1969] 1997, p. 83).

O discurso, na perspectiva da AD, não é um texto e suas significações. Já em 1969, Pêcheux chama a atenção na sua formulação sobre o discurso como “efeito de sentido entre interlocutores”. Trata-se de um processo dinâmico, desenvolvi- do de várias formas, em situações sociais determinadas. Importa perceber que as condições de produção são elas próprias constitutivas de uma prática discursiva.

As condições de produção do discurso foram destacadas por Pêcheux ([1969] 1997) como a ligação das circunstâncias de um discurso e seu processo de produ- ção, que devem ser levadas em conta e procuram suplantar a ideia de contexto e situação apontados pela linguística, pois são condições marcadas pela história e pela ideologia.

O discurso é definido como prática social, pois

[...] diz respeito a um conjunto de situações internas e externas ao ato dis- cursivo, sempre relacionadas às posições de sujeito — os lugares que o su- jeito vem ocupar no discurso. A prática se institui no quadro de certos sis- temas de formação, estruturados e hierárquicos — embora mutáveis, pois não são congelados no tempo (BENETTI, 2008b, p.3).

Tomamos então o discurso como uma instância material concreta da relação mediada entre linguagem/pensamento/mundo. Desta forma, a noção de ideologia configura-se como fundamental para desvendar os sentidos de qualquer discurso, que está, naturalmente, embriagado d’ela, pois ideologia “[...] não é X, mas o meca- nismo de produzir X” (ORLANDI, 2007, p.30). Observa-se, com isso, que o efeito imaginário entre linguagem e mundo é operado justamente a partir da ideologia, que “[...] não é ocultação, mas função da relação necessária entre linguagem e mundo” (ORLANDI ([1990] 2010, p.47).

Indursky (1997, p.28) aponta que o discurso representa as relações de força existentes entre os lugares sociais, através das formações imaginárias. Assim, po- demos afirmar que o lugar discursivo tem relação com o lugar socialmente de- terminado e torna-se imprescindível para entender o funcionamento do “enqua- dramento discursivo”. Ele é fruto de uma interação entre o campo jornalístico e outros campos pelo habitus, estabelecido ainda pela relação do jornalista com suas fontes, organizado a partir de seu ethos discursivo. Assim, quando pensamos a noção de lugar discursivo, abre-se a perspectiva de indicar que o enquadramento discursivo tem tanto um valor social (na medida em que legitima o campo para o relato do acontecimento) quanto reforça uma relação imaginária entre o Jor- nalismo e a sociedade. É deste lugar que o Jornalismo exerce o enquadramento discursivo, ponto que abordamos a seguir.

3 .4 DO AGENDAMENTO AO ENQUADRAMENTO: CONDIÇÕES DE

No documento Ebook Rio20 (páginas 94-99)