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Jornalismo e acontecimento ambiental

No documento Ebook Rio20 (páginas 89-94)

A informação que aparece nos meios de comunicação é um “universo cons- truído”, pois o

[...] acontecimento não é jamais transmitido em estado bruto, pois, antes de ser transmitido, ele se torna objeto de racionalizações: pelos critérios de seleção dos fatos e dos atores, pela maneira de encerrá-los em categorias de entendimento, pelos modos de visibilidade escolhida (CHARAUDEAU, 2007, p.151).

As racionalizações de que nos fala Charaudeau podem ser consideradas opera- ções e práticas jornalísticas, que estão envolvidas também em práticas discursivas,

o crivo dos valores-notícia e a noticiabilidade, a procura de fontes credíveis para a construção do texto e, logicamente, a escolha da angulação e todos os aspectos relacionados à narração do fato.

Entender o Jornalismo e seu processo de construção discursiva implica com- preender que os “acontecimentos” são, para o Jornalismo, um “imenso universo de matéria-prima” (TRAQUINA, 1993, p.168). Porém, o acontecimento jornalísti- co “[...] é um acontecimento de natureza especial, distinguindo-se de outros acon- tecimentos possíveis de acordo com o improvável, ou seja, irrompe sem nexo ou causa conhecida, é notável e digno de ser registrado na memória” (RODRIGUES, 1993, p.28). Por isso, a prática do Jornalismo vai exigir uma série de procedimen- tos para dar conta de selecionar e transformar estes acontecimentos inesperados nas notícias que são oferecidas ao público.

Podemos afirmar que o discurso jornalístico inscreve-se em grande medida no processo de enquadramento e regulação dos acontecimentos imprevisíveis.

Para que um acontecimento possa ser depreendido, é necessário que se produza uma modificação no estado do mundo fenomenal, geradora de um estado de desequilíbrio, que essa modificação seja percebida por sujei- tos (ou que estes julguem que houve modificação) num efeito de “saliên- cia”, e que essa percepção se inscreva numa rede coerente de significações sociais por um efeito de “pregnância” (CHARAUDEAU, 2007, grifos do autor, p. 99-100).

A saliência é um fator de seleção de primeira ordem para os jornalistas, como já descreveu Peucer (1690), enquanto que a pregnância traz uma característica ainda mais especial aos acontecimentos, pois estes precisam estar conectados a uma forma de entender o mundo, um enquadramento interpretativo.

Para Charaudeau (2007), o acontecimento midiático segue três tipos de cri- térios: de atualidade (princípio de modificação), de expectativa (princípio de sa- liência); e socialidade (princípio de pregnância). Além disso, há um aspecto con- dicionante, pois os acontecimentos são trazidos ao público seguindo as regras do contrato de informação midiática que é marcado pela contradição:

[…] finalidade de fazer saber, que deve buscar grau zero de espetaculari- zação da informação, para satisfazer o princípio de seriedade ao produzir

efeitos de credibilidade; finalidade de fazer sentir, que deve fazer escolhas estratégicas apropriadas à encenação da informação para satisfazer o prin- cípio de emoção ao produzir efeitos de dramatização (CHARAUDEAU, 2007, p.92)24.

A complexidade do Jornalismo tem sua argumentação baseada no fato da sua reflexibilidade, pois “[...] as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento” (TRAQUINA, 2001, p.29). Ampliando ainda mais a percepção sobre o aconteci- mento, Benetti (2010), propõe que o Jornalismo pode ele próprio tomar o lugar do acontecimento, na medida em que faz a reprodução “[...] sistemática de temas, enfoques e sentidos” e, com isso, atribui sentidos “[...] a objetivações que parecem consensuais, quando deveriam ser tratadas apenas como hegemônicas ou mesmo tendenciais” (BENETTI, 2010, p.162).

O acontecimento como categoria de análise é apreendido de forma diferencia- da por diferentes campos do conhecimento, conforme Fonseca (2010), sendo que para o Jornalismo trata-se de “fato digno de registro na forma de notícia” (p.173).

Na sociologia ambiental, Hannigan (1995) aponta três tipos principais de acontecimentos ambientais que são noticiados: “acontecimentos importantes (Dia da Terra, a Cimeira do Rio), catástrofes (derrames de petróleo, acidentes nucle- ares, fogos tóxicos); e acontecimentos jurídicos/administrativos (audições parla- mentares, julgamentos, lançamentos de livros brancos sobre o meio ambiente)” (HANNIGAN, 1995, p.87-88).

Assim, podemos dizer que o Jornalismo atua em função da atualidade e do encaixe que os acontecimentos ambientais têm em relação ao seu próprio fazer ca- racterístico, entre eles a tendência a buscar a novidade em tudo que se movimenta no mundo. Seguimos com Hannigan:

24 A busca do equilíbrio entre informação e emoção é crucial para o Jornalismo (e especialmente ao Jornalismo de revista, como discutimos no capítulo 2), pois é preciso buscar apuração de fatos e informações de forma qualificada e demonstrar isso, para que o leitor tenha o máximo interesse e mantenha a credibilidade. Caso o equilíbrio seja quebrado, corre-se o risco de ter um texto com muita informação e com poucos leitores, ou, ao contrário, um texto sensacionalista com baixo nível informativo e grande popularidade.

Segundo Wilkis e Peterson (1990:19)25, este relato centrado nos aconteci- mentos é característico, não só dos desastres que ocorrem rapidamente, tais como tornados, furacões e temporais, mas também dos perigos am- bientais que se instalam lentamente: aquecimento global, destruição da camada de ozônio, chuvas ácidas, etc. Por forma a encaixar os últimos fe- nômenos na agenda noticiosa, os jornalistas têm de retratá-los como um resultado recente de um acontecimento, em vez de um resultado inevitável de uma série de decisões políticas e sociais (HANNIGAN, 1995, p. 88).

Hannigan (1995) considera o lado negativo desta exposição: os problemas am- bientais são tratados como decorrentes de ações individuais (vilões) mais do que das decisões políticas e institucionais. O enquadramento é normalmente mono- causal, em vez de envolver redes causais longas e complexas. Com isso evita, por vezes, implicar atores políticos poderosos nos acontecimentos noticiados.

Para haver o registro de problemas ambientais nos meios de comunição, Han- nigan (1995) identificou cinco fatores com base na literatura: para ganhar proe- minência, um problema potencial deve ser lançado em termos de ressonância em conceitos culturais existentes (KUNST e WITLOS, 1993)26; o potencial do pro- blema deve ser articulado às agendas dos estabelecidos, especialmente políticos e cientistas (HANSEN, 1991)27; os problemas ambientais devem carregar “drama

social”, conforme Palmlund (1992)28, trazendo uma representação dramática com

jogos de culpa e celebração; deve ser capaz de se relacionar com o presente, e não a um futuro distante. Por fim, o problema deve ter uma agenda de ação, seja em nível internacional, ou da comunidade local. Ou seja, é necessário que se apresen- tem resultados tangíveis, o que implica que problemas complexos sejam deixados de lado.

25 WILKINS, L.; PATTERSON, P. “Risk business covering slow-onset hazards as rapidly developing news”. Political Communication and Persuasion. V. 7, N.1, p.11-23. 1990.

26 KUNST, M.;WITLOS, N. “Communication and the environment”. Communication Research

Trends. N. 13, p.1-31, 1993.

27 HANSEN, A. “The media and the social construction of the environmental issues”. Media,

Culture & Society. V. 13, N. 4, p.443-58. 1991.

28 PALMLUND, I. “Social drama and risk evaluation” In: KRIMSKY, S.; GOLDING, D. (eds). Social

Uma abordagem crítica merece menção. Como o Jornalismo vai buscar estes indícios de notabilidade, conforme Alsina (2009), baseado, sobretudo, no critério de variação, muitas questões e problemas são deixados de lado ao longo da cober- tura jornalística. Pergunta-se o que há de novo, o que supera ou modifica algum padrão já estabelecido, sendo que não são questionados os padrões existentes. Dito isso, concordamos com Benetti (2010), ao descrever esta lógica em seu lado per- verso, com um grau de cinismo na percepção dos valores de certos fatos:

A perversidade dessa lógica, que contra qualquer argumento plausível mantém-se como estruturante do discurso jornalístico, é que grandes fe- nômenos sociais, cujo interesse público não poderia ser questionado sem constrangimento, geralmente não tem lugar no jornalismo porque se esta- beleceram, historicamente, como invariantes (BENETTI, 2010, p.146).

Percebemos assim que o acontecimento ambiental, assim como propôs Han- nigan (1995), fica circunscrito às tipologias características do acontecimento jornalístico. Em relação ao discurso, questionamos, sobretudo, a naturalização, operada pela ideologia, da exploração descabida dos bens naturais a favor do lu- cro, relacionada à desigualdades sociais e, em alguns casos, a ecocídios invisíveis, temas que não fazem parte do sistema de “pregnância” descrito por Charaudeau (2007). A mudança do clima pode ser entendida desta forma, é lenta e gradual, porém crescente ao longo do tempo, com perspectivas de atingir em maior escala justamente os mais pobres ou vulneráveis.

Há alguns contornos nas definições de acontecimento, e por isso destacamos aqui como entendemos suas peculiaridades:

a) acontecimento — fato social29 que modifica alguma estrutura ou curso na sociedade, a matéria-prima do Jornalismo (o fato);

b) acontecimento jornalístico - fato social percebido como digno de ser pu- blicado como notícia (a notabilidade do fato);

c) acontecimento relatado - fato social relatado pelo Jornalismo (o discurso sobre o fato, também chamado relato jornalístico ou notícia);

29 Importante destacar que a definição ou percepção do que seja um fato social já é uma construção social, não é um dado objetivo da “realidade”. No entanto, após a construção de bases culturais, há a perspectiva do consenso como forma de conhecimento da realidade.

d) acontecimento discursivo - fato discursivo que modifica alguma estrutu- ra do discurso e passa a fazer parte da memória e do interdiscurso; e) acontecimento ambiental - fato relacionado ao ambiente que é publicado

pelo Jornalismo (acontecimento + acontecimento jornalístico + aconteci- mento relatado).

Os acontecimentos jornalísticos e seus relatos passam a fazer parte de um complexo sistema de produção de acontecimentos, conforme Rodrigues (1993). Por exemplo, a conferência Rio92 é um acontecimento ambiental, jornalístico, re- latado e discursivo. Já em relação à Rio+20, ainda não podemos afirmar tratar-se de um acontecimento discursivo, na medida em que até o momento não apresen- tou elementos suficientes indicando que modificou de forma relevante a memória sobre as conferências ambientais.

Este conjunto de acontecimentos se retroalimenta continuamente. Por exem- plo, quando temos atores sociais que visam tornar acontecimentos em aconte- cimentos jornalísticos, em função da visibilidade midiática. Outro exemplo de interação é o fato de que os acontecimentos jornalísticos também se alimentam de acontecimentos discursivos na construção do acontecimento relatado, enquanto que o próprio relato jornalístico pode ser tomado como um acontecimento.

Dito isso, pensamos que embora nossas análises estejam relacionadas ao re- lato dos fatos - ou às notícias das revistas, temos em mente este forte componente de imbricação. Desta forma, consideramos o discurso jornalístico ponto essencial na construção do acontecimento ambiental, na medida em que o Jornalismo dá publicidade aos elementos envolvidos no problema ambiental e direciona tanto limites quanto soluções dos campos envolvidos no tema.

Para continuar a refletir sobre nosso objeto — o discurso jornalístico, faremos a discussão da noção “enquadramento discursivo” nos próximos subcapítulos.

No documento Ebook Rio20 (páginas 89-94)