• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III- ESTADO AD ARTE

4 O CAMINHO DA BUSCA

4.2 Seridó: o espaço e o povo

4.2.2 A construção do perfil do povo seridoense

Caicó  Ipueira  Jardim de Piranhas  Jucurutu  São Fernando

São João do Sabugi

 Serra Negra do Norte  Timbaúba dos Batistas

São João do Sabugi hoje é cidade, mas, na época da escrita das missivas, era distrito de Serra Negra do Norte.

4.2.2 A construção do perfil do povo seridoense

Na busca de perfilar o seridoense, optei por não trabalhar o indivíduo isolado da sociedade. Entendo que os dois estão intimamente ligados e um complementa o outro. De acordo com Marcotulio (2012, p. 15):

Devemos ter o cuidado necessário para não tratar do indivíduo desconectado do todo. Repensar, assim, o conceito de perfil torna-se necessário, levando-se em consideração que o nosso propósito é entender a escrita a partir de quem a escreveu em um determinado contexto sócio-histórico.

O perfil sócio-histórico do seridoense é constituído inicialmente por personagens que fizeram parte de sua colonização. Os grupos que vieram povoar o Seridó partiram dos vizinhos estados da Paraíba e também do Pernambuco, através das cidades de Olinda, Igaraçu e Goiana. Os primeiros desbravadores percorreram dois caminhos: o primeiro, através do Boqueirão de Parelhas, e o segundo pela Borborema, via Piancó passando pela ribeira do Piranhas até chegar ao Rio Seridó. São os caminhos das águas, ao longo dos quais as populações indígenas foram sendo dizimadas pelos colonizadores (cf. MORAIS, 2005).

Macêdo (2012) aponta que a conquista do Seridó não ocorreu de forma fácil, pois na região existiam cinco grupos de índios: canidés, jenipapos, sucurus, cariris e pegas que, dispostos a defenderem suas terras entraram em conflito com

os colonizadores. É o início da Guerra dos Bárbaros ou Confederação Cariri que objetivava expulsar os gentis. No entanto, o sucesso não foi de imediato. Com medo de ataques que frequentemente ocorriam, foram solicitados reforços ao Governador-Geral do Brasil, em 1688. Os índios foram quase todos dizimados. Alguns foram feito escravos e outros se refugiaram nas matas em locas de pedras. Só foi a partir dessa rendição que os colonizadores se fixaram com mais força no Sertão do Acauã, primeiro topônimo do Seridó.

O rio era a estrada. Era o caminho natural perene ou seco. Dele se retirava a água e a possibilidade da própria sobrevivência. Ao fazer do rio uma via, o desbravador tinha possibilidade de adentrar mais ainda no sertão. Quando percebiam um bom lugar, perto de rios e, consequentemente, da água, os recém- chegados faziam suas taperas, construíam currais e passavam a criar gado.

E essa foi a estrada seguida pelos primeiros desbravadores. Foram eles que possibilitaram a vinda das estirpes – denominação dada pela elite aos que preparam o local para a fixação definitiva da família do Senhor que só veio acontecer depois de 1720 com a fixação dos currais (Cf. MEDEIROS FILHO, 1983).

É válido destacar que o gado foi introduzido no Seridó porque por si só se transportava e não demandava muitos esforços, pois vinha junto com as estirpes. Era uma mercadoria que, segundo Macêdo (2012, p. 37)

Era imenso quase da altura de um homem. Cornos curvados sobre a cabeça de olhos desconfiados e tristes. Mugia do mais interior de seu corpo, um som terrível, grave como todos os sentimentos graves. Apoiava-se em quatro pernas poderosas, que tocavam o solo com a determinação de cascos que pareciam suportar o mundo. Era o maior bicho que por ali já tinha aparecido. Alguns homens o acompanhavam, tangiam-no com uma incompreensível voz de comando. Não era língua conhecida, na verdade foi um acordo linguístico a que chegaram aqueles com o gado vacum. Vez ou outra acrescentavam uns versos, retirados da sua arte de fazer rimas toscas, compondo o aboio sertanejo.

Depois de fixarem os currais para a criação de gado e de passar um tempo no lugar, requeriam a sesmaria. A mão de obra exigida geralmente era constituída por homens pobres livres e povos escravizados. Cada um dos vaqueiros ficava responsável por cerca de 250 cabeças de gado. Só depois da chegada dos vaqueiros é que as primeiras famílias aportaram. Conforme documentos paroquiais, as famílias que vieram ao Seridó eram oriundas de

Portugal e dos Açores; eram pessoas naturais do Minho, do Douro, da Estremadura, do Trás-os-Montes. Quando chegavam, eram apelidados de patrão- marinheiro, em referência à viagem marítima Portugal-Brasil. (cf. MACÊDO, 2012).

Uma outra versão da que foi descrita acima também é apontada pelo autor. Segundo ele, pode ter havido uma tentativa de ocupação do Seridó pelos holandeses antes mesmo dos portugueses se fixarem por lá. Pela tradição oral, combinado com os informes de Medeiros Filho (1981, p. 142, 143), o autor revela que no meio do século XVI há referências de uma “situação do flamengo” onde hoje fica a cidade de Jucurutu. “Certamente [...] se prendia à pesquisa ou exploração de minérios, para o que deveriam contar com o beneplácito e ajuda dos indígenas.

Entretanto, para a História o que vale é aquilo que é registrado. Então, para Macêdo (2012), é mais aceita a versão que o povoamento se deu pelas doações de terras. E foi através de uma dessas doações (que nunca chegou a ser reconhecida de fato pela Coroa Portuguesa) que o Capitão Francisco de Abreu de Lima, em 1670, recebeu uma grande sesmaria na Ribeira do Espinharas, região onde fica Serra Negra do Norte.

Mesmo não sendo atendida, a doação feita ao capitão fica evidente que as primeiras tentativas portuguesas de povoar o Seridó se deram pelo espaço explorado por essa pesquisa – Serra Negra do Norte.

De acordo com Morais (2005), a região do Seridó também foi palco da escravidão. Muitos descendentes dos povos escravizados africanos ficaram, depois da Lei Áurea, com seus antigos “donos”, convivendo e mantendo relações de trabalhos e favores. Outros africanos foram produzir seu próprio sustento e de seus familiares como meeiros (produção dividida ao meio entre duas pessoas).

A autora explica que havia ainda vaqueiros, boiadeiros, cuidadores de gado e da roça. Essas pessoas fixavam residência nas proximidades do trabalho nas fazendas. Muitos deles se casavam com as antigas escravas e constituíam famílias. Os descendentes constituíam novas famílias que ficavam no mesmo local ou iam se integrando a outros aglomerados de pessoas em fazendas vizinhas.

Na fartura das águas, o seridoense se apegava aos rios, às nascentes; na ausência, à fé. Essa crença era o que mantinha acesa a chama da vida em terras

áridas na esperança da sobrevivência sua e a do rebanho de gado. Não é em vão que as duas principais cidades do Seridó (Caicó e Currais Novos) têm como padroeiras Sant‟Ana – a avó de Jesus. A religiosidade representava, para os habitantes do Seridó, o tônico da vida, tendo em vista que o poder da igreja católica era imenso e foi determinante também para a atual construção política do lugar, o espaço habitado, visto que os padres também podiam requerer sesmarias e se envolver nas atividades do campo:

Na vanguarda de batedores de sertões, não vieram somente plantadores de currais. Apareceram também muitos reverendos, curas, fascinados igualmente das coisas do reino deste mundo. Na lista de sesmeiro daqui e dalém incluem-se centenas de padres, não menos solícitos em requerer as costumadas três léguas de fundo e uma de largura para acomodar seus gados ou plantar lavouras. (DANTAS, sd, p. 27)

É desnecessário afirmar que, nesse espaço social em construção, os conflitos que ocorreram entre as classes sociais não foram resolvidos apenas pelo consenso. Tais confrontos se transformam em marcadores da identidade sociocultural, incluindo aí também as diferenças linguísticas.

As cidades seridoenses, obedecendo à dinâmica evolutiva político- administrativa do Brasil, surgiram da ascensão de vila para cidade. Muitas cidades surgiram dos desmembramentos de freguesias eclesiásticas. Foi assim que nasceu a cidade de Caicó:

Aos 26 dias do mez de julho do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil setecentos e quarenta e oito, em dia da Senhora Sant‟Ana, padroeira desta Freguesia, eu, padre Francisco Alves Maia, cura desta mesma Freguesia, vim a este lugar do Caicó, onde todos os Frequezes desta dita Frequezia ou a maior parte deles de melhor nota, assentaram por voto unânime que fosse fundada e erecta sua Matriz com a invocação se Senhora Sant‟Ana, por ser este lugar o mais cômodo e para onde podia concorrer o povo com a conveniência comum para todos; e aí no dito lugar, acompanhado de grande parte de povo, e com o consentimento do Tenente José Gomes Pereira, levantei uma cruz no mesmo lugar e terreno, onde os Freguezes hão de fundar a Matriz para cuja fundação deu o dito Tenente José Gomes Pereira, e sua mulher Dona Ana Maria da Assunção, a terra que fosse necessária(,,,) (AUGUSTO, 1980, p.71)

É interessante que a emancipação administrativa do Seridó se deu através de uma carta escrita pelo governador de Pernambuco (cf. AUGUSTO,1980). Nela, o governador autorizou o ouvidor-geral a criar a Vila do

Seridó. Assim nasceu a Região do Seridó, tendo como cidade polo Caicó, na época Vila Nova do Príncipe.

Na referida carta, é digno de nota o emprego das formas de tratamento VOSSA MERCÊ (grifos acrescentados) e SENHOR DOUTOR:

Vi a representação que vossa mercê me dirigiu em 28 de março do próximo pretérito a respeito do quanto seria útil ao bem e sossego do público e ao real serviço que se erigissem em vilas e povoações dos Cariris, Seridó e Açu;...as justiças não podem coibir por lhes não chegar a notícia a tempo tal que as averiguações são infrutíferas, quando pelo contrário com as criações das ditas vilas se obrigariam a recolher a elas os vadios para trabalharem, se promoveria o castigo dos delinqüentes, adiantar-se-ia a agricultura e se aumentaria o comércio: nesta certeza e pela faculdade que S.M. me permite na real ordem de 22 de julho de 1766 de que remeto a cópia, concedo a vossa mercê faculdade para erigir em vilas e povoações dos Cariris que se denominará Vila Nova da Rainha, a povoação do Seridó, Vila Nova do Príncipe, e a povoação de Açu, Vila Nova da Princesa. Das cópias inclusas, constará a vossa mercê os termos que a se procedeu na que por ordem de meu predecessor erigiu na povoação do Piancó José Januário de Carvalho, corregedor desta comarca para que as povoações acima indicadas mandem vossa mercê praticar o mesmo conforme. Concluídas as ditas criações, me remeterá os autos que...para vir no conhecimento dos termos e distritos que a cada uma delas pertencer. Recife, 28 de abril de 1788. Dom Thomaz José de Mello, Senhor Doutor Desembargador Antônio Felippe Soares de Andrade Brederode, Ouvidor-Geral da Comarca da Paraíba.” (AUGUSTO, 1980, p.72).

Conforme Augusto (1980), os sobrenomes que os seridoenses recém- chegados traziam identificavam seu poder (ou não) diante dos outros. Desse modo, todo recém-nascido ficava “ferrado” a qual ascendência pertencia e buscava seu lugar na sociedade com a imposição da própria raiz histórica. Era comum, assim como acontece na atualidade, entre os nativos seridoenses, a expressão: “Respeite eu sou de tal família”, fazendo referência à sua ascendência.

Os núcleos familiares de destaque social competiam entre si por melhor status social e poder. Isso acontecia porque era preciso escolher governantes para as vilas e os núcleos habitados. Os entraves se davam através de lutas políticas em que o vencedor acabava se tornando o mais respeitado e passava a gozar de um certo prestígio diante dos derrotados. Quanto aos menos abastados, que possuíam menos capital e menos terras, eram desfavorecidos socialmente e se submetiam àqueles que detinham o poder.

Desse modo, a estrutura dos subordinados e subordinantes acusa a evolução constante do homem seridoense desde a sua colonização e perdura até

hoje na constante dinâmica de poder em uma terra que se caracteriza ainda pelo conservadorismo patriarcal.