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CAPÍTULO III- ESTADO AD ARTE

4 O CAMINHO DA BUSCA

4.2 Seridó: o espaço e o povo

4.2.5 As escolas e o acesso à escrita no Seridó

A respeito do grau de domínio da língua escrita, foi preciso investigar se na região havia recursos educacionais escolares para sua aquisição. Procurei, então, averiguar como deve ter sido o processo de escolarização dos missivistas.

O povo seridoense da geração de Dona Júlia, missivista mais velha, adequou-se à escrita embora não tivesse pleno acesso às escolas oficiais existentes. Aqueles que podiam se dirigiam para centros maiores e cursavam até

a formação universitária. Os que ficavam na região faziam o primário, cujo objetivo era aprender a ler, a escrever e a dominar as quatro operações matemáticas – o caso de Dona Júlia.

O ensino no início do século XX era feito por professores chamados na época de mestres-escolas, contratados por fazendeiros, pois eram poucas as escolas oficiais existentes:

Eram de número insuficiente e sediadas nas vilas e cidades, à grande distância das residências dos fazendeiros, tornava-se impossível alfabetizar as crianças em idade escolar, sem o concurso dos mestres- escolas que faziam da profissão de professores primários o seu ganha- pão. (FARIA, 2006, p. 37)

Tais mestres-escolas tinham seus contratos por apenas três meses e, nesse pouco espaço de tempo, os alunos aprendiam a ler e a escrever, assim como dominar as quatro operações matemáticas, sob a pressão da palmatória. Esse instrumento de madeira, feito com pau-d‟arco ou angico, era usado nas mãos dos alunos e aplicado pelo professor como forma de castigo para aqueles que não conseguiam aprender as lições. Foi nesse universo que a mãe de José Geraldo começou seus estudos.

Conforme Faria (2006), o ano letivo das escolas públicas iniciava em 15 de janeiro e se estendia até 15 de novembro sem espaço para férias. Havia separação entre as classes dos meninos e das meninas e cada sala de aula funcionava com aproximadamente 25 alunos. As aulas começavam às 10h, depois do almoço, e se prolongava até às 14h. Talvez esse horário fosse estabelecido para que os alunos e alunas pudessem também realizar os afazeres domésticos e aqueles ligados à pecuária e à agricultura.

Nas escolas primárias não havia notas e a promoção de um nível (série) para outro se dava através de um exame oral e um outro escrito que era realizado ao final do ano letivo. Após o exame, na presença do delegado escolar, o mestre- escola fazia a leitura nominal dos aprovados e dos reprovados.

O material escolar era bem rústico. O caderno era feito em casa com folhas de papel almaço – usadas também para a escrita de cartas –, que era cortado e depois costurado. Havia o lápis, a borracha, penas de aço, caneta e mata-borrão. Os mais abastados possuíam uma lousa pequena utilizada nas aulas de matemática.

Homens e mulheres, em menor proporção, frequentavam a escola. Em linha com o contexto histórico patriarcal da região do Seridó, a maioria dos professores era do sexo masculino. Nas palavras de Araújo et al. (2006),

Mestre-escola foi um trabalho de formação prioritário dos futuros políticos e homens de negócios, e se dava na própria residência das crianças do sexo masculino. Entretanto, algumas mulheres se constituíam letradas. (ARAÚJO et al., 2006, p. 52)

Entretanto, é interessante apontar, com base em Faria (2006, p. 39), que a primeira escola criada no estado – através da lei imperial de 15 de outubro de 1827 – foi “uma aula feminina na Cidade Alta, por ato de 1º de agosto de 1829 para a qual foi nomeada d. Francisca Josefa Câmara.” Faria (2006) faz referência ainda a duas outras escolas criadas posteriormente para o sexo masculino, dentre as quais uma de Latim (em 1830) e uma outra criada pela Resolução Provinçal de 28 de setembro de 1858, em Caicó, especificamente na povoação onde hoje se encontra a cidade de Jardim de Piranhas.

Segundo Faria (2006), na última década do século XIX, o ensino tinha como base inicial a famosa “Carta de ABC” – que era o treino para soletrar – e a tabuada de Landelino Rocha. Depois, em um segundo momento, eram adotados um livro para leitura, a Aritmética de Trajano e a Gramática de Língua Portuguesa de Abílio César Borges – O Barão de Macaúbas. Geografia e história não faziam parte do currículo. Essa prática pedagógica alfabetizadora ficou tão enraizada na cultura seridoense que, mesmo depois de muito tempo, na década de 1980, muitos avós perguntavam aos seus netos se já tinham aprendido a Carta de ABC (cf. CUNHA, 1971).

Junto aos professores e aos mestres-escolas, as senhoras esposas dos fazendeiros, com suas mãos hábeis e conhecimentos adquiridos, também contribuíram para o processo escolar do povo do Seridó. A elas, cabia ensinar para seus filhos e, às vezes, para os filhos de suas criadas, as primeiras letras, as primeiras orientações religiosas e também noções de matemática.

Faria (2006) revela ainda que existiam poucas escolas no Seridó oferecendo o curso ginasial (hoje correspondente à segunda fase do ensino fundamental). Esse nível de ensino era pago, mas havia uma quota destinada aos mais pobres que se destacassem no ensino público.

A cidade de Caicó, que era o polo da região, contava com duas instituições educacionais: (i) o Ginásio Diocesano Seridoense, referência para a educação dos meninos – essa escola era frequentada por José Geraldo; e (ii) o Ginásio Santa Terezinha, instituição fundada para a educação de mulheres, que começou a funcionar em 1925. As mulheres que residiam em Caicó ou perto dali, caso quisessem prosseguir com os estudos, teriam que frequentar o Ginásio Santa Terezinha. Quem desejasse prosseguir ainda mais teria que se dirigir a Natal, no Atheneu, ou para Recife ou ainda para a cidade paraibana de Cajazeiras do Rolim.

De forma geral, as letras foram chegando aos seridoenses gradativamente. Eram alfabetizados aqueles escolhidos pelos próprios pais para que adquirissem os conhecimentos basilares para a escrita tanto de cartas e de bilhetes, como de outros gêneros textuais que faziam uso da grafia.

No início do século, alguns grupos escolares já funcionavam em Serra Negra do Norte. É o caso do Grupo Escolar Coronel Mariz, que começou os seus trabalhos em 1909, juntamente com o Senador Guerra (em Caicó) e Tomaz de Araújo (Acari). Os Grupos Escolares Antônio Azevedo (Jardim do Seridó), Capitão Mor Galvão (Currais Novos) e Barão do Rio Branco (Parelhas) foram fundados em 1911 (cf. ARAÚJO, 1982).

Depois da criação das escolas públicas apontadas anteriormente, a rede de ensino no Seridó foi se tornando mais robusta. Entretanto, foi através de um programa educacional traçado pelo primeiro bispo da diocese, D. José de Medeiros Delgado, que a educação realmente foi implantada de forma mais sólida.

Em parceria com a LBA (Legião Brasileira de Assistência), Diocese de Caicó, Cáritas, Casa do Pobre, Serviço Estadual de Reeducação e Assistência Social (SERAS), o bispo D. Delgado fundou doze escolas, entre elas a escola Rural Serranegrense e a escola Rural Santa Terezinha em São João do Sabuji.

É provável que tenha sido nessa última escola que José Geraldo, Inamar e Anita tenham iniciado seus estudos e, posteriormente, completado no Grupo Escolar Senador José Bernardo, criado em 1925, na Vila de São João do Sabugi. No caso de Anita, a continuidade dos estudos se deu na capital do estado, conforme relatos encontrados nas próprias missivas. José Geraldo foi

para o GDS, Ginásio Diocesano Seridoense, e Inamar, talvez, não tenha acompanhado o amigo porque foi para a Marinha do Brasil.

Não há registro de onde Júlia estudou. É possível que tenha aprendido a ler e a escrever nos bancos escolares de sua própria casa ou fazenda, através dos ensinamentos de professoras leigas – aquelas que ensinavam exclusivamente a assinatura do nome, a cartilha do ABC, a ler e escrever, além das quatro operações matemáticas de forma bem rudimentar. Ou, talvez, Júlia tenha tido mestres-escolas. Não há registros de quanto tempo ela estudou.

Conforme fora dito anteriormente, houve um grande avanço na educação, a partir da década de 1930, em razão das transformações culturais e políticas pelas quais passava o Brasil. Era a crença na escola pública. Nesse cenário, grupos políticos e religiosos passavam suas ideias dualistas: Escola pública X Escola privada. O resultado foi um crescente número de escolas no interior do estado, fenômeno observado também na região do Seridó. Mesmo com a criação de várias escolas, elas não eram suficientes para atender o princípio de uma educação para todos. As escolas existiam, mas eram excludentes.

Morais (2006, p. 64-64) afirma que:

Vários outros grupos escolares seriam criados em outras cidades do Seridó em meados da década de 1920 e durante toda a década de 1930. Através deles (prédios de aparência limpa, segura e bem conservada), a escola pública despontava na urbanidade. O professor público se orgulhava da profissão que exercia e tinha os seus códigos de conduta e de comportamento reconhecidos e valorizados pela sociedade. Essa Escola pública de qualidade era a mesma que abrigava apenas a pequena parcela de estudantes que constituía a elite da época. Era um filtro por onde passavam apenas as pessoas de posse, de nome e de tradição.

Na década de 1940, as escolas já estavam consolidadas em Caicó, em Serra Negra e também na vila de São João do Sabugi. No caso da vila de São João, duas escolas já estavam funcionando no município, mas ainda sem acesso à população.

Em Caicó, no ano de 1942, era criado o Ginásio Diocesano Seridoense. A data de sua fundação coincidia com a celebração de Pentecostes, 24 de maio. O GDS foi criado para atender à demanda de pessoas do sexo masculino do Seridó e de outras regiões e se pautava na Escola Nova e nos preceitos da Igreja Católica. Ao lado do GDS, em 1944, foi criada a Escola do Pobre São José em

Escola Prevocacional de Caicó para atendimento a meninos e meninas católicas das camadas mais populares.

No ano seguinte, 1945, foi criada também, em Caicó, a Escola Doméstica Popular Darci Vargas, com o apoio da LBA e da SERAS. A escola funcionou no prédio do Colégio Santa Terezinha do Menino Jesus. O colégio, que foi fundado em 1925 por freiras da congregação Filhas do Amor Divino, atendia somente ao sexo feminino. Foi nessa escola também que, em 1941, funcionou o Curso Comercial de Contabilidade.

O interessante é que em ambas as escolas de elite, Ginásio Diocesano Seridoense e Colégio Santa Terezinha, os diretores tinham a preocupação em ofertar o ensino aos mais pobres. Talvez fizessem isso movidos pela verba federal destinada aos estabelecimentos privados que ofertassem ensino para as camadas mais baixas da sociedade e pelo fator caridade, próprio das instituições religiosas.

Logo, foi nesse contexto educacional que os envolvidos na pesquisa buscaram seus conhecimentos nas letras, a exceção de Júlia, que talvez tenha adquirido a escrita no âmbito familiar ou através de mestre-escola. Talvez possa ser atribuída a isso, e, especialmente, ao menor tempo de escolarização, a escrita de Julia com ainda mais problemas ortográficos e gramaticais do que a escrita dos outros três missivistas.

No próximo capítulo, apresento a descrição e a análise dos resultados obtidos na pesquisa, propondo explicações fundamentadas nas proposições da sociolinguística e na teoria do poder e da solidariedade.