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A controvertida obra “Eichmann em Jerusalém”: enfoque para a

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 113-134)

3.5 Conflito árabe-judaico

3.6.2 A controvertida obra “Eichmann em Jerusalém”: enfoque para a

Antes de iniciar a abordagem dessa obra, há que se esclarecer que, naturalmente, não é possível traçar uma análise que abranja todos os aspectos pela autora consignados. Limita-se, assim, a tecer comentários sobre os aspectos que enfocam a justiça e a paz.

Ressalte-se também que ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖ é uma obra que desde a sua publicação foi objeto de muita controvérsia, o que a tornou uma obra polêmica.

Em maio de 1960, é anunciado ao parlamento israelense que Adolf Eichmann fora capturado pelo serviço de segurança israelense na Argentina, encontrando-se já em Israel e que deveria ser julgado num futuro próximo, de acordo com as disposições da lei sobre a punição dos nazistas e de seus colaboradores. Eichmann é então desconhecido do grande público, pois ele não estava entre os grandes criminosos de guerra julgados pelo tribunal militar de Nuremberg. Seu nome foi pronunciado apenas no depoimento de uma testemunha, Dieter Wisliceny, que fora delegado de Eichemann na Eslováquia, na Grécia e na Hungria. Chamado para depor em 1946, ele declarou257: ―Eichmann tinha recebido poderes especiais; era responsável pela solução da questão judaica na Europa [...]‖.

Mas àquela época ninguém sabia onde se encontrava Eichmann, alguns pensavam até que estivesse morto, uma vez que ele próprio havia anunciado a intenção de se suicidar após a capitulação.258

Na realidade, Eichmann foi feito prisioneiro de guerra pelos americanos e assume uma nova identidade. Evade-se ao ser informado sobre o depoimento de

257ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 401.

258ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 31

Wisliceny, testemunha acima mencionada, esconde-se durante quatro dias no lado ocidental da Alemanha, sob nome falso, foge rumo à Áustria e à Itália. Em Gênova, um monge franciscano providencia para ele um falso passaporte para a Argentina, e dois anos mais tarde ele manda buscar a família. Em 1957, os alemães comunicam a informação ao serviço secreto israelense. No mesmo ano Adolf Eichmann aceita dar uma entrevista a um jornalista, um ex-nazista holandês chamado Willem S. Sassen. Dois anos mais tarde, um agente israelense localiza a casa em que Eichmann mora com a família em um bairro pobre de Buenos Aires. Em maio de 1960 é preso e trancado em uma casa em Buenos Aires, onde aceita assinar um texto que lhe foi preparado.259 ―Compreendo que é inútil tentar escapar. Declaro-me pronto para ir a Israel e comparecer diante de um tribunal competente‖. Em 20 de maio desse mesmo ano, Eichmann embarca em um avião israelense com destino a Tel-Aviv.

A polêmica sobre a captura de Eichmann inflama as mentes. Erich Fromm, já à época célebre psicanalista de origem judaica, em uma carta publicada no jornal ―The New York Times‖, de 11 de junho de 1960, afirma que260:

A captura de Eichmann é um ato ilegal exatamente do mesmo tipo daqueles de que os nazistas ser tornaram culpados. É verdade que não há provocação pior do que os crimes cometidos por Eichmann, mas é justamente no caso de provocações extremas que o respeito à lei e à integridade dos outros países deveria ser posta à prova.

Hannah Arendt acompanha apaixonadamente as polêmicas e decide fazer de tudo para acompanhar o processo. E então, como correspondente da revista ―The New Yorker‖, ela irá acompanhar o julgamento de Eichmann. Antes de partir para Israel, Arendt trabalha o dossiê jurídico. Para ela, ao contrário do que muitos pensam, Israel tem o direito de julgar Eichmann. Fato é que a Alemanha poderia tê- lo reivindicado mas não o fez. Fato que ele foi sequestrado, mas que também escapava de todas as jurisdições uma vez que a Argentina recusava a extradição dos nazistas refugiados em seu solo. É fato, também, que ele poderia ter sido abatido em plena rua e o autor poderia ter se entregado à polícia. Arendt concorda com a ideia de que Israel não pode pretender juridicamente falar em nome de todos os judeus do mundo. Mas ela questiona: quem pode falar em nome de todos os

259ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 402. 260Ibid., p. 402.

judeus do mundo senão Israel? E rende-se à evidência: ―Era a única instância que possuíamos. Ela não me agrada particularmente mas não posso fazer nada‖.261

Para Hannah Arendt, portanto, Israel tem o direito de falar em nome das vítimas porque a maioria delas, trezentas mil, vive atualmente em Israel como cidadãos. Outra questão a intriga: Israel ainda não existia na ocorrência dos fatos? Ela refuta o argumento e, ao contrário, afirma: ―Poderíamos dizer que foi para essas vítimas que a Palestina se tornou Israel‖.262

Assim, Adolf Eichmann é levado à Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: ―entre outros‖, cometera crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante todo o período do regime nazista e principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial. A Lei (de Punição) dos Nazistas e Colaboradores dos Nazistas, de 1950, sob a qual estava sendo julgado, previa que ―uma pessoa que cometeu um desses [...] crimes está sujeita à pena de morte‖.263

Saliente-se que a cada uma das acusações Eichmann declarou-se inocente, no sentido da acusação. Mas em que sentido então ele se considerava culpado? Para Arendt, na extensa inquirição do acusado, nem a defesa, nem a acusação, tampouco nenhum dos três juízes se deu ao trabalho de lhe fazer essa pergunta óbvia. Seu advogado, Robert Servatius, de Colônia, apontado por Eichmann e pago pelo governo de Israel, seguindo um precedente estabelecido nos julgamentos de Nuremberg, em que os advogados de defesa eram pagos pelo Tribunal dos poderes vitoriosos, respondeu à pergunta numa entrevista à imprensa: ―Eichmann se considera culpado perante Deus, não perante a lei‖264, mas essa resposta nunca foi

confirmada pelo próprio acusado. A defesa aparentemente teria preferido que ele se declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema legal nazista então existente, não fizera nada errado, de que aquelas acusações não constituíam crimes, mas ―atos de Estado‖, sobre os quais nenhum outro Estado tinha jurisdição, de que era seu dever obedecer e de que, nas palavras de Servatius, cometera atos

261ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 404. 262Ibid., p. 404.

263ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 32.

pelos quais ―somos condecorados se vencemos e condenados à prisão se perdemos‖.265

A atitude de Adolf Eichmann era diferente. Para ele, em primeiro lugar, a acusação de assassinato estava errada. Assim relata Hannah Arendt, utilizando as próprias palavras de Eichmann266:

Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não judeu - nunca tentei matar nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu fosse um não judeu; simplesmente não fiz isso.

Ou, conforme confirmaria depois: ―Acontece [...] que nenhuma vez eu fiz isso‖, pois não deixou nenhuma dúvida de que teria matado o próprio pai se houvesse recebido ordem nesse sentido. Por isso ele repetia incessantemente que só podia ser acusado de ―ajudar e assistir‖ à aniquilação dos judeus, a qual, declarara ele em Jerusalém, fora um dos maiores crimes da história da humanidade.267

A defesa não prestou atenção à teoria do próprio Eichmann, mas a acusação, no entender de Arendt, que assiste ao julgamento atentamente e tudo anotando, considera que a acusação perdeu muito tempo num malsucedido esforço para provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara, com as próprias mãos, um menino judeu na Hungria, e gastou ainda mais tempo, e com maior sucesso, com um perito judeu do Ministério das Relações Exteriores alemão, Franz Rademacher, com um bilhete que rabiscara num dos documentos sobre a Ioguslávia durante uma conversa telefônica, e que dizia: ―Eichmann propõe o fuzilamento‖. Essa era a única ordem de execução, se é que o era, para a qual jamais existiu um mínimo de prova.268

A acusação no julgamento de Eichmann é feita pelo procurador-geral, Gideon Hausner. Ele se revela em sua atuação, para a quase totalidade dos jornalistas que assumem a abertura do processo, mais de seiscentos, como o autor de uma das mais perturbadoras lamentações de todos os tempos, um momento de misericórdia durante o qual o público, à beira das lágrimas, como ele, retém a respiração. Ele

265ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 33.

266Ibid., p. 33. 267Ibid., p. 33. 268Ibid., p. 34.

reconstitui o passado de todas as vítimas das quais se faz porta-voz e recorda o massacre de mais de um milhão de crianças judias, cujo sangue inundou a Europa. Na sala do julgamento, descreve Hannah Arendt, os jornalistas choram em silêncio, fazendo desse um momento inesquecível para todos os que estavam presentes.269

Gideon Hausner retorna à definição dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade tal como foram definidos pela Carta de Nuremberg, e explica por que, durante o processo, pretende dar um lugar particular ao crime contra o povo judeu: ―É normal. Os outros povos passaram por catástrofes. Mas não por um holocausto [...]. Só há um povo de fato que o regime nazista havia decidido exterminar: era o povo judeu‖.270

Porém, o procurador-geral não agrada a Arendt. Ela qualifica Hausner como um judeu da Galícia muito antipático, que comete erros de gramática, sem dúvida um destes indivíduos que não sabem língua nenhuma, impacientando-se com sua atuação que ela classifica como uma encenação para tentar fazer desse processo um processo-espetáculo. Para ela o ponto de sua crítica maior é que o procurador- geral não deveria construir sua acusação em torno do sofrimento do povo judeu, mas sobre os atos de Adolf Eichmann.

Ao momento dos depoimentos dos sobreviventes, Arendt manifesta também impaciência e até certa irritação com o depoimento de algumas testemunhas. É preciso lembrar que ela não é a única a ter esse comportamento, pois mesmo em Israel, na época, a repugnância à ideia de considerar os judeus como vítimas era forte. A imagem do judeu corajoso, revoltado, que lutou por sua independência e pela criação de seu Estado tinha suplantado a do homem que chora e se lamenta sem querer agir, aceitando, ao interiorizá-lo, o seu destino. Para o processo foram escolhidas as testemunhas que sabiam se expressar melhor e pediu-se a elas que dessem ênfase, em seus depoimentos, à resistência, à revolta, à vingança. O procurador, assim, queria sensibilizar aquela juventude sem avós que não compreendia o extermínio dos judeus ou não queria saber nada a respeito e que havia até mesmo fabricado uma certa repulsa com relação ao passado. Era preciso apagar a imagem recorrente dos judeus europeus levados ao abatedouro.271

269ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 408-409. 270Ibid., p. 409.

Reconstituição de um desastre humano, o processo captará a atenção do povo israelense, mas ressoará no mundo inteiro como uma lição de memória, de dignidade e de honra conquistada.

O historiador Salo Baron, então professor da Universidade de Columbia, titular da cátedra de história judaica, empresta ao processo importante testemunho, referente à amplitude das destruições e das irreparáveis perdas sofridas pelo judaísmo europeu. Evoca com ardor a potência deste judaísmo europeu farto e diverso, rico em pensamentos e em ações, contribuição inestimável para a cultura dos povos. Conclui com essas palavras272: ―Sem o hitlerismo, doze milhões de judeus viveriam ainda hoje na Europa‖.

O advogado de defesa de Adolf Eichmann pergunta a Baron, que, tendo ele falado em seu testemunho amplamente sobre o antissemitismo, como explicaria o ódio que todos sentem dos judeus, qual o sentido de uma questão como essa e se haveria uma fatalidade original que pesaria sobre os judeus? Baron responde que ―não se gosta do que é diferente‖.273 Entre Robert Servatius, o advogado de defesa,

e Baron se trava então um estranho diálogo em que entram em pauta o determinismo, os problemas do espírito e do direito. Baron expõe a significação do bem e do mal face à história, da responsabilidade do homem diante de seus atos. Servatius lhe responde que a história é um processo cultural que tem continuidade sem nenhuma influência direta do homem. Baron soube deixar o topo das demonstrações filosóficas para retornar às terríveis realidades judiciárias. Lembrou que ―nenhuma teologia da predestinação isentava os homens da responsabilidade individual dos seus atos‖.274

Na condição de jornalista, Hannah Arendt tem acesso ao texto dos interrogatórios de Eichmann, editados em seis volumes. Imediatamente toma conhecimento deles. As confissões de Eichmann deixam nela a impressão de uma confusão caótica, um discurso narcísico no qual lembranças de juventude se misturam a considerações sobre si mesmo e seu destino, combinadas com comentários pessoais sobre as estruturas e as práticas do Terceiro Reich. Eichmann

272ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 413.

273ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 48.

se concede mais elogios do que culpas e não parece duvidar, no fim das contas, de sua própria virtude. Em certos momentos parece atormentado de remorso, afirma estar pronto para expiar seus crimes, não pede piedade e se diz disposto a se fazer enforcar em público para que os antissemitas do mundo inteiro possam vê-lo.275

Ao ouvir e ao ler os depoimentos de Adolf Eichmann, Hannah Arendt tenta compreendê-los como filósofa e não como moralista, dissociando a culpa da responsabilidade. Tanto os depoimentos de Eichmann como os das testemunhas, no desenrolar do processo, vão sendo analisados, pensados e repensados por Arendt, de forma a irem gerando a obra ora em estudo.

A segunda fase do julgamento foi justamente o momento em que este atingiu seu ponto de intensidade culminante. Nas próprias palavras de Arendt276: ―Desde então o que estaria em questão não seriam mais crueldades e humilhações, mas mortes em série. O horror se instalou inevitavelmente‖.

O primeiro depoimento dessa fase foi o de Leon Weliczker Wells, único sobrevivente de uma família de setenta e seis membros, que sobreviveu por ter trabalhado em um Sonderkommando, brigada de morte encarregada de suprimir todos os traços dos massacres cometidos pelos nazistas. Nessa brigada, ele era o ―contador‖, que verificava se todos tinham sido queimados. Disse ele: ―Um dia, participei da abertura de uma fossa da qual foram desenterrados 181 corpos e tivemos que procurar o último corpo, o centésimo octogésimo segundo, que estava faltando nas contas. O corpo que faltava devia ser o meu corpo‖.277

Esse depoimento, o mais longo dos que foram realizados durante essa fase do julgamento, se encerrou pela narrativa da tentativa de rebelião do Sonderkommando 1005, que permitiu que o jovem adolescente, que era então testemunha, se evadisse. A essa testemunha, o procurador Gideon Hausner faz, como às outras, a mesma pergunta, a pergunta leitmotiv, a pergunta que Hannah Arendt considerará em seu livro ―tola e cruel‖, mas cuja paternidade lhe será, no entanto, escandalosamente atribuída: ―Por que você não se rebelou?‖.278

275ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 415. 276Ibid., p. 417.

277ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 212.

Hannah Arendt, ao assistir os depoimentos, impressiona-se, emociona-se. E é a partir daí que ela começa a pensar sobre a banalidade do mal, que será objeto da obra em análise. Para ela o homem não se tornou pior, mas suas ações se tornaram mais carregadas de consequência. O mal, monstruosamente banal, pode se desenvolver no terreno da vida comum.

Ela acompanha apaixonadamente o fim do processo e faz com que lhe enviem a documentação de Jerusalém. Mostrou-se decepcionada com o veredicto. O Tribunal declarou Adolf Eichmann culpado de crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, e condenou-o à pena de morte. Ela confessa não ter uma opinião definitiva e quer estudar o caso de mais perto antes de passar à redação da revista que a contratar como correspondente. E é por essa razão que resolve mergulhar em toda a documentação sobre o processo, para melhor compreendê-lo. Vive noite e dia imersa na história, que acompanhou apenas parcialmente. Não ouviu a totalidade dos relatos dos sobreviventes, nem dos resistentes, posto que precisou retornar aos Estados Unidos para cumprir compromissos. Não ouviu a defesa de Eichmann e não estava presente nem no momento da sentença, nem no do anúncio da execução. Na realidade, ao contrário de outros jornalistas que lá estiveram, que o acompanharam do princípio ao fim e acabaram transtornados, ela mantém com o próprio desenrolar do processo uma relação essencialmente intelectual. Não trabalha com sua emoção e com a memória desse momento inesquecível, mas com textos. Desse processo, longo curso de histórias de sobreviventes que dão testemunho do indizível pela primeira vez desde o fim da guerra no recinto de um tribunal, ela não viveu tudo.279

Em 31 de maio de 1962 Eichmann foi enforcado na prisão de Ramleh. Arendt assim se manifesta, através de uma correspondência enviada a uma amiga280: ―Estou satisfeita por terem enforcado Eichmann. Não que faça diferença. Mas acho que eles teriam feito um papel profundamente ridículo se não tivessem levado a coisa até seu único desfecho lógico. Sei que estou em minoria quanto a esse sentimento‖. De fato, em Israel, após a execução, Gershom Scholem manifestou sua posição281: ―Do ponto de vista jurídico, Eichmann merecia mil vezes a pena de

279ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 432. 280Ibid., p. 433.

morte‖. Ele duvida da virtude dissuasiva dessa execução e clama por uma nova educação dos homens e das nações, uma nova tomada de consciência da humanidade.

―A condenação é para Eichmann, sua execução é para nós‖282, explica o

escritor holandês Harry Mulisch, que acompanhou todo o processo. ―Ela nos dá o sentimento de ter feito algo, de que podemos fazer algo. Que a justiça pode ser feita. Mas o homem pode fazer justiça?‖283 Em Israel alguns chegam a lamentar que o

façam sofrer apenas uma morte, e não seis milhões.

Cabe observar que é de fato na ocasião do processo de Adolf Eichmann que o que chamamos de holocausto ou Shoah foi apresentado à opinião como uma dimensão particular, à parte, distinta, da barbárie nazista. Nos Estados Unidos, depois do processo de Jerusalém, a palavra passa a ser solidamente associada ao extermínio dos judeus na Europa e constitui o ponto de partida de controvérsias até hoje.

Hannah Arendt, ao iniciar a obra ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖ faz reflexões gerais sobre a justiça e seus limites, e ressalta que o criminoso é de um tipo novo284: ―veremos que estamos diante de um criminoso que

ninguém tinha previsto‖.

Para ela, um criminoso novo, uma justiça nova. É preciso, portanto, julgar Eichmann com armas jurídicas novas.

Arendt se faz a pergunta mais obsedante e mais essencial a seus olhos: existe o crime contra a humanidade? Constitui o genocídio uma singularidade na longa história da barbárie humana? Ela se coloca em um plano jurídico: para ela, o crime contra a humanidade foi mal definido em Nuremberg e confundido com os crimes contra a paz. Afirma que o genocídio empreendido contra os judeus deve ser considerado como um crime contra a humanidade:285

Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o povo judeu desaparecer da face da Terra, que passou a existir o novo crime, o crime

282ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 433. 283Ibid., p. 433.

284Ibid., p. 434. 285Ibid., p. 434.

contra a humanidade - no sentido de crime contra o status humano, ou contra a própria natureza da humanidade.

É por isso que ela acrescenta a propósito do processo286: ―Na medida em que as vítimas eram judeus, era certo e adequado que uma corte judaica pudesse

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 113-134)