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Os fundamentos da nova Constituição: uma visão interpretativa

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 194-198)

4.7 A Carta de 1967

4.8.5 Os fundamentos da nova Constituição: uma visão interpretativa

Ingressa o País numa segunda transição. Em verdade, a lei fundamental de 5 de outubro de 1988 não é ainda uma Constituição, do ponto de vista da legitimidade: é apenas uma Carta no rigor que constitucionalmente essa expressão assumiu. Uma Carta do Legislativo e não do Executivo. Cartas foram também os atos básicos de 1967 e 1969; o primeiro outorgado por um presidente autoritário que fez instrumento de sua vontade um Congresso coacto, o segundo, por um triunvirato militar, ambos divorciados do povo, o qual, por transfiguração política, de sujeito se converteu em objeto durante o ominoso período da ditadura.422

Nunca porém uma lei magna no Brasil esteve tão perto de reflelir as forças reais do poder quanto este singular texto de 245 gordos artigos, escoltados por mais de 70 outros, não menos volumosos, contendo disposições constitucionais transitórias. A produção constituinte foi tão caudalosa que o ato das disposições transitórias guarda a dimensão de uma Constituição, não sendo inferior em extensão às Cartas do Império e da Primeira República.

Nas palavras de Paulo Bonavides423:

421BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 488.

422Ibid., p. 489. 423Ibid., p. 489.

Tal contiguidade do texto em relação ao País real é, no caso brasileiro, sua força e ao mesmo passo sua fraqueza. Força, pelas óbvias razões de não ser um devaneio, um sonho programático ou metafísico, de constituintes nefelibatas; mas algo fecundado no ventre da Nação em crise produzido pela sociedade e não pelo Estado, posto que por uma sociedade que o Estado mesmo - leia-se o próprio Governo - fez enfermar perigosamente. Principia a fraqueza do novo estatuto político com a presença que nele teve o Estado, ao ministrar-lhe os pressupostos negativos concernentes ao processo constituinte, gerando os fatores inibidores do bom êxito de sua legitimação. Fatores esses que toda a opinião conhece, dentre os quais cumpre apenas assinalar o ato convocatório da Constituinte congressual e a ambiguidade dos seus poderes. Dessas medidas foram porém cúmplices, senão exclusivos autores, os que agora com mais sanha e aversão infamam a Carta, com o único objetivo de paralisar-lhe a eventual eficácia. Fazem-no justamente em razão do conteúdo social adiantado de certas disposições concretas, mediante as quais o País constitucional deu alguns passos avante, sem embargo de quantos recuou em terreno sabidamente não menos importante. Pelo aspecto material, a Carta política apresenta também muitas arestas, tem pontos consideravelmente negativos. Haja vista nesse tocante a fixação da taxa bancária de juros, o perdão de dívidas a empresários inadimplentes, a extrema timidez com que se houve na questão federativa tocante às regiões, a profusão impertinente de casuísmos e o retrocesso na questão da reforma agrária.

Mas os conteúdos positivos, pode-se ver, sobrelevam os negativos, principalmente no que tange a direitos e garantias fundamentais. A Constituição avança e testifica a modernidade quando faz do racismo, da tortura e do tráfico de drogas crimes inafiançáveis, quando estabelece o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e o habeas data, quando reforça a proteção dos direitos e das liberdades constitucionais, quando restitui ao Congresso Nacional prerrogativas que lhe haviam sido subtraídas pela administração militar, quando valoriza a função do controle parlamentar sobre o Executivo por via de comissões parlamentares de inquérito dotadas de poderes de investigação idênticos aos da autoridade judiciária, quando substitui o Conselho de Segurança Nacional por dois novos conselhos de assessoria do Presidente da República no propósito de fazer mais eficaz, mais aberto e mais fiscalizado o sistema de defesa das instituições, quando define os princípios fundamentais de um estado social de direito, quando determina os

princípios da ordem econômica, a defesa do meio ambiente, a proteção aos índios, as conquistas da seguridade social.

Sobre uma terceira faixa, onde a Constituição inovou profundamente, paira, todavia, o mais aceso dos debates e a mais acre das controvérsias: as regras nacionalistas sobre a ordem econômica, invectivadas de xenofobia e desatualização com os rumos que, até mesmo das economias do mundo socialista, os ventos do progresso fazem soprar.424

Se houve, porém, exageros, foram eles talvez obra da insegurança, da incerteza e dos receios que circundam os povos do Terceiro Mundo, habitualmente indefesos e constantemente espoliados nas relações econômicas com os países da sociedade pós-industrial.

A promulgação da nova Carta representa, por conseguinte, um marco, mas não representa ainda o coroamento de todo o processo de reconstitucionalização ou mudança. Com efeito, estamos unicamente passando de uma a outra transição, a saber, da transição discricionária para a transição constitucional, do governo de um só poder para o governo dos três poderes, do regime do decreto-lei para o regime da Constituição.

Mas tal sistema somente granjeará permanência e estabilidade quando legitimar-se por inteiro. É a batalha em favor dessa legitimação que estamos vivendo hoje, num segundo momento. O primeiro momento se encerrou com a elaboração formal da Carta, podendo dizer-se que foi em parte muito bem-sucedido, porquanto, sem embargo de suas origens comprometidas, a Constituinte abriu as portas à presença popular e fez a sociedade participar por via de grupos e correntes que ajudaram a formular, com iniciativas de colaboração, o projeto finalmente aprovado e convertido em Lei Magna. Um fato, aliás, cabe acentuar, sem precedente em toda a história constitucional do Brasil. Colocou-nos ele tão perto da realidade, do instante concreto, que a Constituinte congressual, perdendo em parte o traço elitista, típico das Constituintes passadas, soube congregar o povo e ouvir a sua palavra, soube auscultar os centros de opinião e dialogar com o País.425

424BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 490.

Durante o período constituinte o plenário do colégio soberano não funcionou como um fórum de tribunos atenienses, um salão de debates acadêmicos ou um campo de batalha de ideias abstratas. Foi, em primeiro lugar, uma praça de interesses, uma feira nacional de serviços, uma bolsa de vantagens, onde tudo se disputou politicamente palmo a palmo, da forma mais direta, crua e objetiva possível, mas sempre por meios pacíficos e consensuais, mediante decisões majoritárias.

Mas é importante lembrar, não sendo despiciendo fazê-lo, que a Carta, salvo o texto específico e formal, ainda não acabou de ser elaborada. Resta acrescentar- lhe uma parte escrita importantíssima, suplemento mais relevante talvez, num certo sentido, do que tudo quanto já fez a Casa da soberania em um ano e seis meses de reunião: as leis complementares e ordinárias, previstas no texto constitucional. Compõem essas leis a outra metade da Carta, sem a qual ela dificilmente se aplicará, com sua eficácia diminuída a um grau baixíssimo e insuportável, embargando todas as esperanças postas em tão valioso instrumento de direitos e garantias fundamentais.426

Somente a efetivação do Estado social haverá então de escrever uma Constituição definitiva, que será substancialmente a Constituição do povo e da cidadania, unindo as três ordens do poder, a política, a econômica e a social, com a organização das liberdades públicas e a independência da Nação.

Sem uma Constituinte do povo e sem uma Constituição emersa da legimidade, o país verá Cartas e transições mas não verá jamais uma Constituição verdadeira, duradoura e eficaz.

A Carta de 1988 vale por este aspecto: é um salvo conduto para o País sair do arbítrio e caminhar rumo à legitimidade do futuro. Se ela for eficaz, a Nação estará salva. Em 5 de outubro de 1988, perempto o regime do decreto-lei, o Brasil promulgou no Planalto a maioridade da democracia representativa.

426BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 492.

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 194-198)