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O Sionismo e o Sionismo Reconsiderado por Hannah Arendt

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 75-85)

Em uma prévia observação desse estudo no que tange ao sionismo, convém primeiramente, alguns esclarecimentos a respeito de sua origem bem como de seu significado.

Obtendo o seu nome de Sião (Sion, Zion), que é o nome de um monte nos arredores de Jerusalém, o sionismo é um movimento político que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado Judaico, por isso sendo também chamado de nacionalismo judaico144. Ele se desenvolveu a partir da segunda metade do século XIX, em especial entre os judeus da Europa Central e do leste europeu, sob pressão de pogroms145 e do antissemitismo crônico destas regiões, mas também na Europa Ocidental, em seguida ao choque causado pelo caso Dreyfus.146

Em 1896, o livro ―Der Judenstaat‖ do austro-húngaro Theodor Herzl, um dos líderes do Movimento Sionista, pregava que o problema do antissemitismo só seria resolvido quando os judeus dispersos pelo mundo pudessem reunir-se e estabalecer-se num Estado nacional independente.

Formalmente fundado em 1897, o sionismo era formado por uma variedade de opiniões sobre em que terra a nação judaica deveria ser fundada, sendo cogitado de início estabelecê-la no Chipre, na Argentina e até no Congo, entre outros locais julgados propícios.147

144FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 1593.

145Pogrom: historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus e outras minorias étnicas daEuropa. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pogrom>. Acesso em: 21 mar. 2010. 146O caso Dreyfus foi um escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do

século XIX. Centrava-se na condenação por alta traição de Alfred Dreyfus em 1894, um oficial de artilharia do exército francês, de religião judia. O acusado sofreu um processo fraudulento conduzido s portas fechadas. Dreyfus era, em verdade, inocente: a condenação baseava-se em documentos falsos. Quando os oficiais de alta-patente franceses se aperceberam disto, tentaram ocultar o erro judicial. A farsa foi acobertada por uma onda de nacionalismo e xenofobia que invadiu a Europa no final do século XIX. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus>. Acesso em: 21 mar. 2010.

147MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

A chamada diáspora judaica, ou seja, a dispersão dos judeus pelo mundo, foi o principal argumento de ordem religiosa a vindicar o estabelecimento da pátria judaica na Palestina.

A tese do retorno ao lugar de origem ganhou a grande maioria dos adeptos por ter forte apelo religioso, baseado na redenção do povo de Israel e na ―terra prometida‖. Por outro lado, outras correntes a consideravam uma compulsão retórica heroica e sentimental, e alguns até a reprovavam duramente, alegando que esta ―redenção‖ teria de ser obra de Deus, não de ações políticas.

A partir de 1917 o movimento focou-se definitivamente no estabelecimento de um estado na Palestina, a localização do antigo Reino de Israel.

Porém, quando o movimento sionista moderno se consolidou, no final do século XIX, a região da Palestina já estava cultural e etnicamente arabizada, ou seja, era habitada por uma população de esmagadora maioria árabe, lá enraizada por longa e consistente migração e assimilação iniciada por volta do ano de 650 e que perdurou e floresceu por mais de 400 anos, durante as dinastias árabes Omanida, Abássida e Fatímida e que, apesar de dominações posteriores, manteve suas principais características. Os judeus que habitavam a região formavam uma minoria.148

Era portanto evidente que, para o estabelecimento de um Estado judeu, os sionistas teriam de fazer uma grande alteração para mudar o equilíbrio étnico e demográfico da região, mesmo porque o projeto de um Estado judaico padrão deveria basear-se em utopias religiosas e culturais bem próprias, exclusivas e definidas com os costumes e o idioma do povo judeu que habitavam o leste europeu, uma cultura totalmente estranha à pequena comunidade judaica local.

Observe-se que o objetivo primordial do sionismo, que era o estabelecimento de uma pátria judaica, sempre foi bem visto pelos organismos internacionais, tanto que a Liga das Nações (Mandato de 1922) como a ONU aprovaram desde logo os princípios básicos do sionismo, extensíveis aliás, a qualquer povo da terra. Esta

148MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

simpatia aumentou, e muito, após a descoberta do genocídio dos judeus praticado pelos nazistas alemães durante a Segunda Guerra Mundial.149

Apesar de não haver evidência de qualquer interrupção da presença judaica na Palestina há mais de três milênios, é fato incontroverso o concurso de várias migrações substitutivas em massa, com a saída de judeus e a entrada de outros povos, notadamente árabes.

Na segunda metade do século XIX, havia, na região, comunidades judaicas remanescentes, quando se organizou a migração de retorno de judeus, notadamente de ideário socialista, que se propunham a reformar a região, estabelecendo-se nela imediatamente.

Assim Mikveh - Israel - foi fundada em 1870 através da Aliança Israelita Universal, seguida por Petah Tikva (1878), Rishon LeZion (1882) e outras comunidades agrícolas fundadas pelas sociedades Bilu e Hovevei Zion.150

Em 1897, o Primeiro Congresso Sionista proclamou a decisão de restabelecer a antiga pátria judia em Eretz Yisrael. Naquele momento, a Palestina era parte do Império Turco Otomano. Esta decisão fez o sionismo diferente da maioria dos outros nacionalismos, porque seus proponentes reivindicavam para a etnia um território que, na sua maior parte, não era por eles habitada.

A Grã-Bretanha expressou seu apoio ao sionismo com a Declaração de Balfour, de 1917. Na mesma época, instalou-se de fato o Mandato Britânico da Palestina, em consequência da perda dos territórios pelo Império Otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial. Nos anos seguintes, verificou-se um crescimento substancial na imigração de judeus, com grande aumento da população de origem judaica.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, na fase final do Mandato Britânico, já era flagrante a violência mútua e descontentamento entre árabes e judeus, agravada com a chegada de novas levas de imigrantes, oriundos das perseguições nazistas na Europa. Como solução para os conflitos, em 1947 a ONU

149MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

150FOLHA ON LINE. Saiba mais sobre a fundação de Israel. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u399537.shtml>. Acesso em: 07 mai. 2008.

propôs e foi aceito o Plano de Partilha da Palestina, que consistia na formação de dois estados - um judeu e outro árabe, concedendo 55% da terra para o estado judeu e o restante ao estado árabe. A representação judaica aceitou o plano, que foi no entanto rejeitado pelos países árabes.151

No dia 14 de maio de 1948, véspera do fim do mandato britânico da Palestina, já em meio a um estado de guerra civil entre árabes e judeus, foi declarada pela Agência Judaica a criação do Estado de Israel. No dia seguinte, teve início a chamada guerra árabe-israelense de 1948, quando cinco estados árabes vizinhos (Transjordânia, Líbano, Egito, Síria e Iraque) iniciaram movimentos de exércitos regulares para invadir a região e destruir o recém-criado estado judaico. Ao longo dos meses seguintes, os judeus alcançaram vitórias decisivas, aumentando seu domínio territorial na região, o que causou a fuga de cerca de 900 mil palestinos da áreas incorporadas, os quais se tornaram refugiados nos países vizinhos.152

A esta guerra, seguiriam-se a Guerra de Suez (1956), a Guerra dos Seis Dias (1967), a Guerra do Yom Kippur (1973) e diversos outros conflitos.

Atualmente, Egito, Jordânia e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), como representante dos palestinos - isto é, dos árabes que habitavam a Palestina à época do Mandato Britânico e que devem constituir o povo do futuro Estado árabe-palestino, previsto pelo Plano de Partilha - reconheceram o Estado de Israel. Esta não é, entretanto, a posição do Líbano, Síria, Iraque e Arábia Saudita, nem do Hamas - organização política palestina majoritária na Autoridade Nacional Palestina - desde as eleições de 2005 e que atualmente controla a Faixa de Gaza - e nem tampouco da organização política xiita libanesa Hezbollah.153

Apesar de tudo, ao longo dos sessenta anos da existência de Israel, o movimento sionista continuou a atuar no apoio ao fortalecimento do Estado e promovendo a integração de imigrantes judeus no país.

151FOLHA ON LINE. Saiba mais sobre a fundação de Israel. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u399537.shtml>. Acesso em: 07 mai. 2008.

152ALVAREZ, Ricardo. A formação de Israel. Disponível em: <http://geografiaeconjuntura.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010.

153ALVAREZ, Ricardo. A formação de Israel. Disponível em: <http://geografiaeconjuntura.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010.

Diversas correntes de pensamento são importantes para a compreensão do sionismo hoje. Achad Haam, por exemplo, foi o criador de uma visão peculiar do sionismo mas que é intimamente ligada aos dias atuais. Há ainda Rav Kook, com o sionismo religioso, e Jabotinsky, criador da União Mundial dos Sionistas Revisionistas.154

Relativamente às críticas dirigidas ao sionismo, de que seria um movimento de cunho racista, seus partidários defendem-se alegando que o sionismo não é doutrinariamente unificado e coeso, possuindo diversas versões divergentes umas das outras. Além disso, alguns também discordam afirmando que palestinos e judeus não são racialmente distintos, e assim não se aplicaria o termo já que a discriminação não se funda na raça.

Após as detalhadas colocações acima, sobre o que significa o sionismo, a seguir será tratado do que representou para Hannah Arendt o sionismo e qual foi sua posição.

Em 1945, no Oriente Médio, a situação política fica tensa, e o terror é praticado dos dois lados. Os atentados perpretados pelos extremistas judeus contra estabelecimentos britânicos complicam as negociações com a Grã-Bretanha para a fundação de um Estado judeu. Nessa época Arendt luta para publicar os manuscritos de seu amigo Walter Benjamin e recebe insistentes convites de seus amigos que moram na Palestina para que junte-se a eles, indo também lá morar, para que possam refletir e discutir a situação dos judeus. Porém ela se recusa, pois entende de maneira diferente deles, que para lutar pela causa dos judeus não é necessário estabelecer-se na Palestina.

De Nova York, Arendt pleiteia que seja acordado um status jurídico aos sobreviventes da Shoah155, todos esses judeus que, desde 1940, não têm

154Sionismo. Pensadores sionistas. Wikipédia, enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sionismo>. Acesso em: 21 mar. 2010.

155

A palavra ―holocausto‖ tem origens remotas em sacrifícios e rituais religiosos e da Antiguidade, em que plantas e animais (até mesmo seres humanos) eram oferecidos às divindades sendo completamente queimados durante o ritual. Nesse caso, holocausto quer dizer cremação dos corpos (não necessariamente animais). Este tipo de imolação corpórea, post mortem, também foi usado por tribos judaicas, como se evidencia no Livro do Êxodo: ―Então, Jetro, sogro de Moisés, trouxe holocausto e sacrifícios para Deus; [...]‖. A partir do século XIX, a palavra holocausto passou a designar grandes catástrofes e massacres até que, após a Segunda Guerra Mundial, o termo Holocausto (com inicial maiúscula) foi utilizado especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime

documentos, identidade nem nacionalidade, que são apátridas, portanto refugiados, mas refugiados tratados como estrangeiros hostis. Ela fica indignada com essa situação de ―não direito‖ que os rejeita e humilha. Não concorda também, que só a Palestina pode absorvê-los. Ela acredita que o povo judeu sobreviverá à guerra e afirma que a queda de Adolf Hitler não significa automaticamente o fim do antissemitismo na Europa.156

A partir de agosto de 1944, Hannah Arendt se opõe cada vez mais veementemente à política sionista conduzida na Palestina. Propõe à revista ―Commentary‖ um artigo histórico e político sobre a própria essência do sionismo, em que recapitula os cinquenta anos de política sionista. Porém a citada revista recusa, sob a alegação de que um leitor mal intencionado poderia detectar muitas implicações antissemitas. Face a essa resposta, ela entende que está sendo levada a questionar o significado de sua judeidade ou a dividir as dificuldades do judaísmo e as contradições com as quais o movimento sionista tem de lidar na Palestina. Correndo o risco de cair no idealismo, prefere levantar os problemas, antes que seja tarde demais, em vez de fugir deles. Mas o ―Memorial Journal‖ decide publicar esse texto, que parece mais um ensaio do que um artigo de jornal, com o título ―Sionismo reconsiderado‖. Esse texto foi para ela o início das novas pesquisas que a conduzirão na direção da obra ―Origens do totalitarismo‖, objeto também desse estudo. Ao longo de sua vida ela inspirará suas reflexões sobre a nação, o Estado e a própria possibilidade de sobrevivência da democracia.157

Ela constata o fracasso do sionismo, critica a última resolução da maior seção da Organização Sionista Mundial, que adotou, por unanimidade, a reivindicação de um território judeu, livre e democrárico, abarcando toda a extensão da Palestina, sem divisão nem diminuição desta. Teme que essa resolução seja um golpe fatal para os partidos judeus de esquerda e extrema esquerda, que lutaram por um acordo entre árabes e judeus, e que reforce consideravelmente a minoria de David

nazista fundado por Adolf Hitler. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto>. Acesso em: 21 mar. 2010.

156ARENDT, Hannah. Sans droit et avilis (15 décembre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 135-138.

Ben Gurion158, ―que, sob a pressão de numerosas injustiças na Palestina e terríveis

catástrofes na Europa, se tornou mais nacionalista do que nunca‖.159

Hannah Arendt julga a política praticada na Palestina oportunista, contraditória, inconsequente em relação aos árabes. Para ela, as coisas são simples: o projeto sionista só pode existir se os árabes forem aceitos. Para Arendt, os governos passam, mas o povo fica. Se olharmos o mapa, a Palestina é delimitada pelos países árabes, e um Estado judeu na Palestina puramente judaica constituiria, na falta de acordo prévio com os povos árabes que vivem em suas fronteiras, uma solução demasiadamente precária.

Arendt sustenta a ideia de uma cooperação que louve uma harmonia permanente entre os dois povos, com uma administração binacional e a possibilidade para esse novo Estado de se integrar numa federação com os países vizinhos. Ela fica indignada com o desprezo que os sionistas demonstram pelos árabes e se revolta contra a ideia, pregada pelos próprios sionistas, de que a terra da Palestina pertenceria aos judeus em nome de uma ―justiça superior‖.160

Ela critica o fato de os sionistas esquecerem que os árabes viviam e ainda vivem nessa terra e observa que, na última resolução da reunião do Congresso Judaico de Atlantic City, a palavra ―árabe‖ não é mais mencionada. Para Arendt, ―isso não lhes deixa outra escolha senão a emigração voluntária ou o status de cidadão de segunda classe‖.161

O nacionalismo, ―já bastante nefasto por confiar exclusivamente na força bruta da nação‖162, nessa situação geográfica difícil, com territórios tão pequenos, só

pode desembocar num conflito trágico.

158David Ben-Gurion, judeu polaco, nasceu em Plonisk, 16 de outubro de 1886 e morreu em Tel Hashomer, 1 de dezembro de 1973. Foi o primeiro chefe de governo de Israel. Ben-Gurion foi um líder do movimento sionista socialista e um dos fundadores do Partido Trabalhista. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/David_Ben-Gurion>. Acesso em: 21 mar. 2010.

159ARENDT, Hannah. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 97-133.

160ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 223. 161ARENDT, op. cit., p. 97-133, nota 159.

162ARENDT, Hannah. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 99.

Premonitória, Hannah Arendt já estigmatiza o esquecimento voluntário do povo palestino, o pagamento do contexto mediterrâneo, a falta de vontade política dos sionistas em aceitar a existência do povo palestino na Palestina e dos povos árabes que a cercam.

Para ela, considerada a pensadora da liberdade, a força nunca foi caminho para a liberdade, por isso seu sonho se despedaça. Também se decepciona com a esquerda do sionismo e recrimina aqueles que inventaram o ideal pioneiro dos Kibuttzin, pequena fazenda coletiva em Israel163, por não terem tido nenhuma influência política na natureza do movimento, inconscientes que eram do destino geral do seu povo. Julga-os sectários, autossatisfeitos, mais preocupados em divulgar suas propagandas do que em inculcar uma moral à política, que acabou se tornando a esfera dos políticos da pior espécie, que fazem reinar a relação de forças em vez de aplicar as regras mais elementares da democracia.164

Ante todas essas colocações que Arendt faz dos sionistas, através de seus artigos, de forma contundente, bem fundamentada, sem qualquer véu ilusório, torna- se muito clara não apenas sua luta, mas também sua persistência em seguir sempre o caminho para a paz. Sua marca indelével de pacificadora se faz presente ante todas as suas posturas até então demonstradas nesse estudo.

E Arendt não cessa a manifestação de sua indignação, à medida que marca com firmeza suas posições, sempre com a esperança de ainda conseguir, de alguma forma, salvar o povo judeu que continua sofrendo as consequências do nazismo. Bem como, por outro lado, persevera em deixar documentado o que foi realmente o nazismo para os judeus, à medida que escreve, discursa, apresenta projetos e, principalmente, não deixa nada do passado ser ocultado. Assim é que em nome do tribunal da memória e da dignidade humana ela persegue os sionistas, os responsabiliza e os culpa por terem feito negócios com Adolf Hitler desde 1933. O acordo entre sionitas e nazistas ainda é uma parte maldita da história. Arendt tem a coragem de lembrar essa negociação, que começou apenas alguns meses após a ascensão de Hitler.165 Se hoje parece indecente aproximar o nazismo do sionismo, é

163FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 998.

164ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 224. 165Ibid., p. 105.

preciso, entretanto, ter conhecimento de que David Ben Gurion desejava que o nazismo provocasse uma imigração maciça na Palestina. E que um dirigente sionista, chamado Arthur Ruppin166, foi procurar responsáveis nazistas para propor uma negociação. O contrato de Haavara-transfer foi fechado em abril de 1933. Ele se fundava nos interesses complementares dos dois partidos: os nazistas queriam os judeus fora da Alemanha, e os sionistas queriam os judeus na Palestina. Cada judeu alemão que emigrava para a Palestina era autorizado a levar mil libras esterlinas, o preço exigido pela Grã-Bretanha para se instalar ―como capitalista‖ em divisas estrangeiras, e poderia mandar buscar por navio mercadorias no valor de vinte mil marcos ou mais. As companhias de seguro, judaicas e alemãs, controlavam as transferências financeiras. Uma parte dos lucros foi para a aquisição de terras e a implantação das colônias. O sistema funcionou até meados da guerra e permitiu a emigração de cerca de vinte mil judeus alemães. Mas os esforços de salvamento foram insuficientes, e os sobreviventes dos campos foram recebidos com dureza.167

Esse acordo dilacerou os sionistas. Os revisionistas o estigmatizaram, dizendo que a nação judaica se vende a Adolf Hitler pelo salário de uma prostituta. Os dirigentes se justificaram afirmando se tratar de razões de ordem prática. Para Arendt é nesse ponto que o sionismo muda então de natureza e de essência. Ele tem como único objetivo a realização da independência do povo judeu na Palestina. A maior parte desses judeus alemães que irá se refugiar na Palestina graças a esse acordo o fará para salvar a própria pele. Eles terão dificuldade em integrar os

No documento Maria Edith de Azevedo Marques (páginas 75-85)