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A convivência de elementos históricos e inventados

II. O ROMANCE HISTÓRICO: CONTRIBUTO PARA UMA DEFINIÇÃO

2. O ROMANCE HISTÓRICO : ELEMENTOS PARA A SUA DEFINIÇÃO

2.2. A convivência de elementos históricos e inventados

A inclusão de factos e acontecimentos historicamente verificáveis numa trama ficcional é outro ingrediente que caracteriza o género e contribui para credibilizar o narrado. Albert W. Halsall, ao definir romance histórico-didáctico, afirma a existência de relações referenciais entre personagens e acontecimentos históricos e a sua representação textual, evitando discutir o grau de “realidade” dessas mesmas entidades.70 Assim, começa por definir acontecimentos históricos como aqueles cuja natureza ontológica não é contestada pelos especialistas, aqueles em que estão envolvidas pessoas cuja existência histórica é atestada por uma documentação sólida, ou, pelo menos, reconhecida como tal pela maioria dos especialistas. O autor entende por acontecimentos inventados os incidentes contados numa narrativa, que, ontologicamente falando, não dependem duma pretensa referencialidade histórica, e em que se envolvem personagens não históricas, mas cuja existência não deixa de ser afirmada pelo texto.71

Também Celia Fernández Prieto aborda este assunto, sublinhando que

“la calificaciñn de un personaje o un acontecimiento como histórico no depende tanto de su realidad o de su existência empírica, cuanto de su inclusión en un discurso

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A Última Corrida de Touros em Salvaterra (1848), A Mocidade de D. João V (1852), Lágrimas e Tesouros (1863), e Casa de Fantasmas (1865).

70 Contrariamente ao que faz Lukacs. Albert W. Halsall, “Le roman historico-didactique”, Poétique, nº57,

1984, p.81.

histórico (elaborado según los critérios culturales, ideológicos y epistemológicos del historiador). Esto significa que los personajes y los acontecimientos históricos son

construidos como personajes y como acontecimientos en y por la historiografia. No la

preceden sino que resultan de ella y, en este sentido, se equiparan a los personajes y a

los acontecimientos inventados.”72

Reflectindo sobre esta coexistência de elementos históricos e ficcionais, Carlos Reis73 afirma que o romance histórico é um tipo de obra literária em que se manifestam

modalidades mistas de existência. O autor explica, em seguida, que o reconhecimento

por parte do leitor dessas entidades históricas emigradas na ficção possibilita o funcionamento do género de um ponto de vista pragmático. E alerta para a existência de limites na integração ficcional de elementos históricos: se eles não são reconhecidos pelo público como tal, perdem inteiramente as suas raízes históricas. De qualquer forma, é sempre a lógica da ficção que deve prevalecer no romance histórico, podendo as entidades históricas ser submetidas a essa lógica ficcional em relação metonímica com as entidades ficcionais.

Que tipo de acontecimentos atestados são convocados no romance histórico? De acordo com o levantamento efectuado por Maria de Fátima Marinho74, é dada a prioridade a certos momentos considerados essenciais na consolidação da nacionalidade portuguesa. Deixamos aqui alguns exemplos desses momentos tratados pelos romancistas estudados nesta dissertação: a primeira dinastia, particularmente as lutas entre D. Afonso Henriques e a mãe (Herculano, O Bobo), a crise de 1383-1385 e a actuação de D. João I (Herculano, O Monge de Cister), a Batalha de Alcácer-Quibir, as descobertas e a política no Oriente (Camilo Castelo Branco, O Senhor do Paço de

Ninães; Pinheiro Chagas, A Descoberta da Índia Contada por um Marinheiro, A Marquesa das Índias, A Jóia do Vice-Rei), a perda e a restauração da independência:

1580-1640 (Pinheiro Chagas, A Máscara Vermelha, O Juramento da Duquesa), as cortes dos séculos XVII e XVIII, a política do Marquês de Pombal e o terramoto de 1755 (Arnaldo Gama, Um Motim Há Cem Anos; Pinheiro Chagas, O Terramoto de

Lisboa, A Corte de D. João V), as invasões francesas e as guerras civis (Arnaldo Gama, O Sargento-Mor de Vilar, O Segredo do Abade; Camilo Castelo Branco, O Retrato de

72 Celia Fernández Prieto, op. cit., p.181.

73 Carlos Reis, “Fait historique et référence fictionnelle: le roman historique”, Dedalus. Revista

Portuguesa de Literatura Comparada, nº2, Dezembro 1992, pp.141-147.

Ricardina, A Enjeitada, A Brasileira de Prazins; Pinheiro Chagas, Os Guerrilheiros da Morte), a inclusão dos judeus na sociedade portuguesa (Arnaldo Gama, A Última Dona de São Nicolau; Camilo Castelo Branco, O Judeu, O Olho de Vidro). Além destes

momentos, Brigitte Krulic destaca os episódios de violência armada como uma “passagem obrigatñria” do romance histñrico, especialmente na sua variante de romance de capa e espada, particularmente exemplificada pela obra de Alexandre Dumas. A autora sugere que duelos, batalhas, escaramuças, cercos e emboscadas constituem estereótipos que convocam ideias feitas presentes no espírito dos leitores e asseguram a identidade cultural partilhada pelo público.75

Como teremos ocasião de comprovar nos capítulos seguintes, os romancistas não se coíbem de alterar os factos históricos, subordinando-os à efabulação, de modo a obterem um efeito mais dramático. E acabam por confessar que a invenção desempenha um importante papel na construção dos romances: “Este é o desenho geral da obra; porém não me obrigo, e desde aqui o declaro, a rigores de chronologia, nem a tecer nenhuma série deduzida de quadros. / Dentro do mesmo cyclo usarei amplamente das imunidades do romance, e de todas as liberdades da invenção.”76

Deste modo são confirmadas as reflexões de Alfred de Vigny acerca da relatividade histórica, tendo em conta o papel desempenhado pelo boato na construção de determinados “factos” histñricos: “Examinez de près l‟origine de certaines actions, de certains cris heroïques qui s‟enfantent on ne sait comment: vous les verrez sortir tout faits des ON DIT et des murmures de la foule, sans avoir en eux-mêmes autre chose qu‟une ombre de vérité; et pourtant ils demeureront historiques à jamais.”77

Para tornar o estudo da História mais agradável e, desse modo, atrair o público e manter o seu interesse, o romancista costuma inseri-la numa trama romanesca que recorre aos mais típicos motivos românticos. Essa trama é mais facilmente sustentada ou justificada quando, como veremos mais adiante, a maioria dos romances históricos tem por protagonistas personagens inventadas. O romancista volta-se preferencialmente para a narração dos acontecimentos da esfera privada, em claro contraste com o carácter

75 Brigitte Krulic, op. cit., pp.46-49. Deixamos para mais tarde a referência ao motim popular, que assume

particular destaque em alguns romances que estudaremos no último capítulo.

76

Rebelo da Silva, “A Tomada de Ceuta”, in Contos e Lendas, 3ª ed., Lisboa, Sociedade Editora Portugal-Brasil, s/d., p.146. Como voltaremos a este assunto quando tratarmos do anacronismo, damos apenas este exemplo para evitarmos repetições desnecessárias.

77

Alfred de Vigny, “Réflexions sur la Vérité dans l‟Art”, in Cinq-Mars, Paris, Le Livre de Poche, 1970 [1827], p.27.

público dos acontecimentos históricos.78 Como observa Lukacs, não interessa ao romance repetir o relato dos grandes acontecimentos históricos, mas ressuscitar poeticamente os seres humanos que neles tomaram parte. Importa fazer reviver

“les mobiles sociaux et humains qui ont conduit les hommes à penser, sentir et agir précisément comme ils l‟ont fait dans la réalité historique. Et c‟est une loi de la figuration littéraire (...) que pour rendre sensibles ces mobiles sociaux et humains de conduite, les événements extérieurement insignifiants, les circonstances mineures – vues de l‟extérieur – sont plus appropriés que les grands drames de l‟histoire mondiale.”79

Assim o entende também o romancista que prefere tratar os dramas íntimos e familiares num cenário histórico verosimilmente reconstituído. É o que se depreende das palavras de Pinheiro Chagas, num romance sobre a Restauração: “Mas encarregámo-nos de um improbo e desgostoso trabalho, o de narrarmos as pequenas infamias, as pequenas traições que macularam essa grande epocha de 1640.”80

Mesmo aqueles autores que, como Herculano ou Arnaldo Gama, inserem grandes blocos de explicações históricas nas suas narrativas, não deixam de pôr em cena todos os ingredientes típicos dos romances românticos: amores contrariados ou impossíveis, ódios entre famílias, vinganças, sedução e abandono de mulheres predestinadas para a desgraça, filhos ilegítimos, identidades desconhecidas e reconhecimentos, trios amorosos condenados pela fatalidade, crimes que motivam longas expiações, pressentimentos funestos, mortes por amor, envelhecimentos prematuros provocados por grandes desgostos, jovens que professam por motivos amorosos, mulheres-anjo que contrastam com mulheres-demónio, figuras tutelares que salvam in extremis os seus protegidos, heróis marginais,...

Em muitos romances históricos sente-se a presença de elementos do romance gótico e do romance-folhetim, especialmente a partir da grande vaga de traduções de

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Como defendia Alessandro Manzoni em “Del Romanzo Storico e, in genere, de‟ componimenti misti di storia e d‟invenzione”: “Costumi, opinioni, sia generali, sia particolari a questa o a quella classe d‟uomini; effetti private degli avvenimenti pubblici che si chiamano più propriamente storici, e delle leggi, o delle volontà de‟ potenti, in qualunque maniera siano manifestate; insomma tutto ciò che ha avuto di più caratteristico, in tutte le condizioni della vita, e nelle relazioni dell‟une con l‟altre, una data società, in un dato tempo (…).” (Opere di Alessandro Manzoni, a cura di Lanfranco Caretti, 3ªed., Milano, Ugo Mursia Editore, 1967, p.892)

79 Georges Lukacs, Le Roman Historique, Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1965, pp.43-44. 80

Pinheiro Chagas, O Juramento da Duqueza, Lisboa, Livraria de António Maria Pereira, s/d [1873], p.89.

autores como Eugène Sue ou o Visconde d‟Arlincourt, como tivemos oportunidade de demonstrar na Introdução.

A ligação entre os dois planos da narrativa, o ficcional e o histórico, depende muitas vezes da actuação das personagens. É delas que nos ocupamos agora.

O reconhecimento de uma personagem como histórica depende da existência de um código comum ao escritor e ao público e também da própria concepção de História que vigora no momento da escrita.81 O aparecimento de uma personagem histórica condiciona a narrativa ao conhecimento que os leitores têm dessa figura, como vimos, pois “tornará por certo eminentemente previsìvel o seu papel na narrativa, na medida em que este papel está já predeterminado nas suas grandes linhas por uma História prévia já escrita e fixada”, como observou Philippe Hamon. Assim, estas personagens “remetem para um sentido pleno e fixo, imobilizado pela cultura”, visto que “integradas num enunciado, servirão essencialmente de «ancoragem» referencial remetendo para o grande Texto da ideologia, dos clichés ou da cultura; assegurarão, pois, o que Roland Barthes chama «efeito do real» (...).”82

A convocação destas figuras ajuda a criar a ilusão de total fidelidade à época que os romancistas não se cansavam de anunciar. Mas estas personagens podem ultrapassar o âmbito do acontecimento histórico em que foram protagonistas no passado e mover-se na esfera do ficcional, ao mesmo nível das personagens inventadas.83 Contudo, ao romancista sñ é permitida certa liberdade em relação às “áreas obscuras” da Histñria, isto é, àquilo que a História não registou. E essas áreas situam-se na esfera privada ou íntima das figuras históricas e podem ser exploradas nos momentos em que elas interagem com as personagens ficcionais.84

81

Alterações a nível dos contextos culturais podem dificultar esse reconhecimento, como explica Carlos Reis, art. cit., p.145: “ (...) en fait, dans la mesure où les contextes culturels changent, souvent les circonstances culturelles changent également, ce qui peut rendre difficile aux lecteurs de reconnaître Christophe Colomb ou la bataille de Trafalgar comme entités historiques. (…) le romancier est parfois trop préoccupé avec le lecteur empirique de son temps et il ne peut pas prévoir les lacunes culturelles du lecteur à venir. ”

82 Philippe Hamon, “Para um estatuto semiolñgico da personagem”, in Maria Alzira Seixo (org.),

Categorias da Narrativa, Colecção Vega Universidade, Lisboa, Vega, s/d., pp.98 e 88, respectivamente.

83 Inúmeros exemplos desta situação podem ser detectados nos autores que estudaremos nos capítulos

seguintes. Deixo aqui apenas um: em Um Motim Há Cem Anos, de Arnaldo Gama, o Marquês de Pombal seduz uma mulher e abandona-a grávida; mais tarde, nada faz para impedir que o filho seja condenado à morte pela participação no motim contra a Companhia dos Vinhos.

84

Cf. Celia Fernández Prieto, op. cit., p.185. Rebelo da Silva, em A Mocidade de D. João V, concede grande espaço às aventuras amorosas do jovem D. João V.

Se no romance histórico contemporâneo é vulgar o aparecimento de uma personagem histórica como protagonista85, já no romance histórico tradicional as grandes figuras da História costumam desempenhar um papel secundário na intriga, seguindo, assim, o exemplo de Walter Scott. No caso português, é este o modelo que predomina, embora Alexandre Herculano, em Lendas e Narrativas, atribua o papel principal aos protagonistas da História86, tal como o praticou Alfred de Vigny.87 A decisão do romancista de optar por uma ou outra modalidade implica alterações ao nível da construção da narrativa.88

A organização dos romances depende ainda da concepção da História em vigor. Para o Classicismo, a História não apresenta uma perspectivação do passado e oferece uma distância sem profundidade; além disso, a História é feita pelos grandes homens, aqueles que ocupam os centros de decisão e se envolvem em conspirações, intrigas, facções, conhecem a grandeza ou a decadência e desencadeiam as revoluções. No período romântico, esta abordagem da História sofre uma alteração que o próprio romance histórico ajuda a divulgar: o passado é tornado presente, pois este é visto como atravessado pelas forças do passado. Entende-se, então, uma continuidade entre os dois tempos. Enquanto para o historiador clássico a lição que o passado transmite é política ou moral e eterna, para o historiador e o romancista românticos a lição do passado é inscrita na própria textura do presente. É a nação que aparece como a força principal da História e o nacionalismo desempenha um papel muito importante na historiografia e no romance do período romântico. Os grandes homens são substituídos pelo povo como força motriz para as transformações; verifica-se a ascensão do povo, numa dimensão

85 Sobre este assunto, leia-se o cap.4, ponto 4, de Maria de Fátima Marinho, op. cit. (1999), pp.215-231. 86

O mesmo acontece nos romances de Antero de Figueiredo ou Lobo d‟Ávila nos primeiros anos do século XX. Nestes casos, a predominância da figura histórica limita fortemente a efabulação e a actuação das personagens e prejudica a própria intriga, uma vez que o desenvolvimento e o desenlace são conhecidos e, logo, previsíveis.

87

Alfred de Vigny, “Réflexions sur la Vérité dans l‟Art”, op. cit., p.23: “ (…) je crus aussi ne pas devoir imiter les étrangers, qui dans leurs tableaux, montrent à peine à l‟horizon les hommes dominants de leur histoire; je plaçai les nótres sur le devant de la scène, je les fis principaux acteurs de cette tragédie (…).”

88 Marguerite Yourcenar dá conta dessas diferenças na nota que fecha L‟Oeuvre au Noir. (A Obra ao

Negro, 6ªed., Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998 [1951] (trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes), “Nota da Autora”, p.267: “Mais ainda do que a livre recriação de uma personagem real que na História deixou vestígios, como é o caso do imperador Adriano, a invenção de uma personagem “histñrica” fictìcia, como o é Zenão, parece poder dispensar o apoio de documentos. Na realidade essas duas operações são, em muitos pontos, comparáveis. No primeiro caso, o romancista, ao pretender representar, em toda a sua amplitude, uma personagem tal como ela foi, nunca estudará com suficiente e apaixonada minúcia o processo do seu herói, tal como foi constituído pela tradição histórica; no segundo caso, para dar à personagem fictícia aquela realidade específica, condicionada pelo tempo e pelo lugar, sem a qual o «romance histórico» não passa de um vulgar baile de máscaras, mais ou menos bem sucedido, dispõe apenas dos factos e datas da vida passada, ou seja, a Histñria.”)

política, e dos povos, numa dimensão étnica e cultural, à categoria de sujeito(s) da História e tema literário de primeiro plano.89 Tanto o historiador como o romancista procuram descobrir por trás da superfície dos acontecimentos as forças que os animaram. Assim, em vez de uma descrição, os românticos pretendem levar a cabo uma “ressurreição”, termo empregue por Michelet, uma presentificação do passado.90

Ora, estas diferentes formas de ver o passado têm consequências na concepção do romance histórico, especialmente no capítulo da escolha dos protagonistas. Como demonstra Jean Molino, na linha da concepção da História clássica, os protagonistas da História devem ser os actores principais do romance histórico; a ficção escolhe uma situação de crise no passado em que a fonte de mudança é a conjugação das vontades particulares: das novelas históricas de Saint-Réal ao Cinq-Mars de Vigny, existiria, então, uma continuidade.91 Por seu turno, Walter Scott remete para um plano secundário os grandes homens e coloca na frente da cena os indivíduos anónimos que encarnam as forças da História, como bem exemplificam os romances Waverley ou Ivanhoe. Molino explica por que motivo os romances de Scott e seus continuadores excluem os “grandes homens”: não é consequência de

“un problème technique, difficulté de représenter de manière authentique, ou du moins vraisemblable, des héros sur lesquels on a tant écrit et dont les attitudes, ou les paroles, risquent de sonner faux. Si les grands hommes n‟apparaissent qu‟à l‟horizon du roman, c‟est qu‟ils sont semblables aux rois fainéants. Tolstoï poussera cette conception à ses conséquences extrêmes; le mieux que puisse faire le grand homme, c‟est

d‟attendre, comme ce Koutouzov (…). ”92

Como caracterizar, então, estes protagonistas ficcionais? De acordo com a teorização de Lukacs, os herñis de Scott são “médios”, isto é, moderados, incapazes de

89 Brigitte Krulic, op.cit., pp.89-90; Isabelle Durand-Le Guern, Le Roman Historique, capítulos 1, 2 e 3. 90 Sobre este tema, destacamos os estudos de Jean Molino, art. cit., pp.213-223, que critica Lukacs por

fazer depender o romance histórico da Revolução Francesa e por subordinar os modos de explicação histórica ao Marxismo; Gisèle Séginger (org.), Écritures de l‟histoire, Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, 2005, que, na Introdução, explica como o século XIX inventou uma nova maneira de representar a História, menos evenemencial e mais sensível à existência de grandes forças sociais, políticas e mesmo económicas; Gérard Gengembre, op. cit., a síntese das pp.37-45. Veja-se também François Hartog, Régimes d‟historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Seuil, 2003, e Jean- François Hamel, Revenances de l‟Histoire. Répétition, Narrativité, Modernité, Paris, Éditions de Minuit, 2006, especialmente o capítulo I.

91

Jean Molino, art. cit., pp.223.

se entregar fervorosamente a uma paixão ou defender entusiasticamente uma causa.93 As personagens femininas vivem também sob o signo da moderação e têm normalmente uma existência passiva, sem grandes envolvimentos amorosos que as desviem do final já esperado: o casamento.94

No caso português, as personagens inventadas dos romances históricos são geralmente marcadas pela psicologia romântica e, por isso, não se distinguem das personagens dos romances de actualidade. São, geralmente, caracterizadas física e moralmente logo no início do romance e não mostram sinais de evolução psicológica de relevo ao longo da trama sentimental em que se vêem envolvidas. Além disso, a sua interacção com o mundo histórico configurado na diegese é forçada e claramente artificial.95 Facilmente chegamos a esta conclusão pela leitura dos romances de Herculano, Garrett, Camilo ou Arnaldo Gama. As figuras femininas seguem, normalmente, na mesma linha das de Herculano: aceitam passivamente a fatalidade que domina o seu percurso, incapazes de contrariar um destino que as ultrapassa. Correspondem, na sua grande maioria, à mulher-anjo consagrada pela estética romântica. Quanto aos heróis, não podemos falar de semelhanças com o modelo escocês: trata-se agora de verdadeiros heróis românticos, dominados pelo excesso das paixões que não conseguem controlar e impelidos desesperadamente para um final trágico.96 Tal como acontece com as personagens femininas, é a fatalidade que domina o seu caminho para o abismo, embora, por vezes, eles tentem encontrar soluções alternativas: Vasco e Eurico professam, buscando na vida religiosa uma paz que lhes escapa. Mas essa opção revela-se desastrosa: sem vocação, eles sentem-se prisioneiros de si mesmos.97 Se Eurico se entrega à morte num combate desigual, Vasco persegue a

93

Georges Lukacs, op. cit., p.33. Um bom exemplo deste tipo de protagonista é Edward Waverley. De acordo com Brigitte Krulic, op. cit., p.87, o desenlace de Waverley também se pode chamar de “meio- termo” e inscreve-se na tradição literária do romance de formação: o herói acede pouco a pouco à maturidade reflectida, à consciência dos seus limites e à aceitação do papel que lhe atribui a sociedade. Neste romance de Scott, essa busca iniciática, além de ser uma busca de si, é também uma busca da