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II. O ROMANCE HISTÓRICO: CONTRIBUTO PARA UMA DEFINIÇÃO

2. O ROMANCE HISTÓRICO : ELEMENTOS PARA A SUA DEFINIÇÃO

2.3. O narrador

O narrador do romance histórico oitocentista apresenta-se, geralmente, como o editor de um manuscrito original, de uma crónica esquecida, de um conjunto de cartas, que contêm o relato verídico dos acontecimentos. Este subterfúgio assenta numa longa tradição, como vimos na Introdução, e permite imprimir maior credibilidade à história, uma vez que o narrador apenas conta o que estaria já previamente estabelecido e, logo, autenticado, por um documento escrito115. Além deste documento, o narrador pode ainda apresentar o relato de uma conversa com uma suposta testemunha como a fonte da história que vai contar.116 Segundo Celia Fernández Prieto, este procedimento desempenha várias funções: 1) outorgar verosimilhança à omnisciência do narrador em relação à história e sublinhar o valor histórico do relato ao torná-lo proveniente de uma fonte contemporânea dos acontecimentos; 2) marcar a distância temporal entre o passado do enunciado e o presente da enunciação; 3) tornar possível o comentário (metanarrativo e hermenêutico) do narrador autoral; 4) justificar o anacronismo. O narrador autoral, editor ou transcritor do manuscrito, vê-se na necessidade de lhe modernizar o estilo para o tornar mais inteligível aos olhos do leitor.117

Normalmente, este procedimento é apresentado em prefácios que fazem aparecer “condições de legibilidade”118

, uma vez que contextualizam historicamente a narrativa e ajudam a estabelecer as regras do próprio género à medida que vai sendo praticado. Claude Duchet propõe uma designação diferente – discurso ou aparelho prefacial –, visto que a matéria aí abordada pode encontrar-se distribuída por notas ou documentos anexos, disfarçar-se em dedicatórias, inscrever-se elipticamente numa epígrafe ou no subtítulo, intrometer-se nos capítulos introdutórios ou conclusivos, inserir-se no próprio

114 Barbara Foley, op. cit., pp.144-145. 115

Não esquecendo que, desde a Idade Média, a palavra escrita é uma fonte inquestionável de autoridade.

116 Pensamos, por exemplo, no início do romance O Segredo do Abade, de Arnaldo Gama. 117 Como acontece em I Promessi Sposi, de Manzoni. Celia Fernández Prieto, op. cit., pp.204-205. 118

Claude Duchet, “L‟Illusion Historique. L‟enseignement des préfaces (1815-1832)”, Revue d‟Histoire Littéraire de la France, nº2-3, Mars-Juin 1975, p.249.

romance e acompanhar a narrativa sob forma de um discurso do narrador.119 Este discurso inclui os comentários metanarrativos, que, de certa forma, podem ajudar a rastrear etapas na evolução do próprio género romanesco em geral, como é o caso das referências à lei das três unidades aristotélicas encontradas em romances de Herculano120, Garrett121 ou Arnaldo Gama122. Além dos comentários sobre a construção da narrativa, o narrador faz muitas vezes comparações entre a actualidade e o passado, aproveitando para divulgar conhecimentos sobre a época em questão ou para criticar a inércia das instituições.123 Além disso, o narrador não consegue deixar de analisar determinadas situações à luz das ideias do século XIX, ou de transmitir as convicções do autor, como acontece em O Monge de Cister, quando defende o municipalismo medieval: percebe-se aqui mais um recado aos leitores contemporâneos do que uma explicação histórica.124 Ao exibir a sua erudição em digressões ou comentários de

119 Idem, p.250.

120 O Monge de Cister, in As Melhores Obras de Alexandre Herculano, vol.III, s/l., Círculo de Leitores,

1986 [1848], tomo I, p.181: “Posto que a literatura destes nossos tempos – o drama e a novela – tenham levado tanta vantagem em rapidez e locomoção às vias férreas, quanto levam as faculdades da imaginativa às forças mais enérgicas do mundo material, a nossa mutação, apesar disso, respeitará as sãs doutrinas da unidade de lugar e de tempo.” A mesma referência em “Mestre Gil”, in Lendas e Narrativas, vol.VII, s/l., Cìrculo de Leitores, 1986 [1851], tomo II, p.139: “De S. Jorge saltava a procissão (que ainda naquele tempo se não tinham inventado as três unidades) ao sacrifìcio de Isaac.”

121 O Arco de Sant‟Ana, in Obras Completas de Almeida Garrett, vol.II, Lisboa, Círculo de Leitores,

1984 [1845-1850], p.29: “Façamos, com a rapidez com que em um teatro britânico se faz, a nossa mutação de cena; e deixar gemer as unidades de Aristñteles, que ninguém desta vez lhe acode.”

122

O Sargento-Mor de Vilar, Porto, Livraria Educação Nacional, 1935 [1863], p.233: “Entre os factos, a que o leitor assistiu nos capítulos antecedentes, e aquêles que vai ler nos que se seguem, medeiam sete anos. O desfecho da minha novela pede êste grande salto; e como aos novelistas assiste justamente o direito de desprezar o potro das unidades de lugar e de tempo, quando isso convenha aos interêsses do seu conto (...).” A mesma referência em A Caldeira de Pero Botelho, Porto, Livraria Tavares Martins, 1936 [1866], p.151: “Ainda bem que nñs, os novelistas, não somos obrigados a reconhecer o jugo tirânico das três unidades fatais, (...).” Sobre este assunto, veja-se Maria de Fátima Marinho, op. cit. (1999), pp.50-51.

123

Podemos ler no romance de Camilo Castelo Branco, O Santo da Montanha, 6ªed., Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1972 [1866], pp.116-117, um exemplo típico (e jocoso, ou não fosse camiliano...) desta situação: “Tinham devorado treze léguas em vinte e seis horas: a maior maravilha daqueles tempos e daquelas estradas, que os actuais ministros da Obras Públicas, se são românticos e curiosos, podem ir ainda agora reconhecer, porque são as mesmas. – Entre parêntesis: não há país como este, em que tanto se respeite a poesia do passado, no tocante a estradas de Trás-os-Montes. Quem quebra uma perna nas barrocas daquela estrada não fica bem; mas, se tiver respeito aos tempos heróicos de Portugal, consola-se, sabendo que, no mesmo sítio, há quatrocentos anos, poderia ser que seu décimo quinto avô quebrasse também uma perna, ou ambas, ou todas quatro, como costumavam tê-las os nossos décimos quintos avñs.” Rapidamente percebemos que o narrador dos romances históricos de Camilo se comporta como o dos romances de actualidade: com muita ironia e parcialidade.

124

O Monge de Cister, op. cit., tomo II, cap XVII. Cf. Isabelle Durand-Le Guern, Le Roman Historique, p.28: “Loin de s‟effacer derrière son récit, le narrateur du roman est souvent amené à prendre position sur les événements qu‟il décrit; il propose ainsi sa propre lecture de l‟histoire, qu‟il soumet au lecteur, invité à partager son point de vue.”; p.121: “De manière encore plus directe, l‟histoire se révèle parfois un moyen pratique et efficace d‟aborder les interrogations contemporaines (…).”

carácter informativo, o narrador mostra-se dotado de uma competência histórica e cultural que é determinante na prossecução do objectivo didáctico do género.125

Ao longo dos romances é possível verificar o apelo constante do narrador à atenção e à participação do leitor (ou, muitas vezes, leitora...), começando logo pelos prefácios ao leitor benévolo, amável, etc. Por vezes, o narrador parece querer colocar-se no mesmo plano do leitor, fingindo dialogar com ele e levando-o a entrar em aposentos ou a assistir a cenas importantes: “Leitor, que tens tu com isso, comigo, com o meu

spleen? Prometi contar-te uma velha história. Boa ou má, queres ouvi-la, e não uma

autobiografia minha. Vou obedecer-te. Escusas de gritar mais: «Avante, narrador!».”126 Apesar da habitual focalização omnisciente, às vezes o narrador finge não conhecer todos os pormenores da história que conta, o que, por um lado, impede que o leitor questione a origem de tal ciência, e, por outro, o mantém suspenso à espera das revelações que lhe serão feitas posteriormente: “O elixir que ele empregara para produzir essa maravilhosa cegueira não sabemos nñs qual fosse; (...).”127

Reflectindo sobre a importância global do narrador no romance do século XIX, Jesús García Jiménez conclui que ele é um demiurgo, um criador mítico do universo, um ser superior que se subtrai livremente às categorias e cenários da acção (espaço e tempo), um habitante livre do interior das consciências, um testemunho omnisciente dos pensamentos e desejos das personagens, um viajante omnipresente e ubíquo, a consciência total do relato, um notário das palavras não proferidas, um censor irónico e um acompanhante invisível, sempre pronto para exercer as suas funções paternas ou judiciais.128 Se confrontarmos os narradores de romances históricos tradicionais e de romances de actualidade verificaremos que o comportamento desta instância enunciativa não difere e desempenha as funções que Jiménez lhe reconhece. Como constataremos na última parte desta dissertação, o narrador que melhor corresponde a esta descrição é, sem dúvida, o camiliano.

125 Cf. Celia Fernández Prieto, op. cit., pp.209-210.

126 O Monge de Cister, op. cit., tomo II, p.41. A este respeito, leia-se também o curioso exemplo que

inicia o capítulo XIV do tomo II: o narrador finge ter arrastado o leitor para uma casa, e à medida que vão entrando, vai chamando a atenção para o que os rodeia, até se depararem com o vulto de alguém que o leitor já devia conhecer...

127 Alexandre Herculano, “Arras por Foro de Espanha”, in Lendas e Narrativas, op. cit., tomo I, p.34.

Para outros exemplos significativos, leia-se Maria de Fátima Marinho, op. cit. (1999), p.50.