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II. O ROMANCE HISTÓRICO: CONTRIBUTO PARA UMA DEFINIÇÃO

2. O ROMANCE HISTÓRICO : ELEMENTOS PARA A SUA DEFINIÇÃO

2.5. O anacronismo

Como fomos mostrando ao longo deste capítulo, embora insiram a intriga num quadro temporal e espacial verosímil, reconstituído com minúcia arqueológica, os romancistas não se livram inteiramente do problema: como fazer a personagem falar e agir à moda de épocas passadas, de forma convincente e sem a intromissão das crenças do presente? Já vimos que os autores dão preferência a personagens inventadas e à vida privada, menos registada pela História e, por isso, terreno mais fértil para a efabulação sem o perigo da posterior verificação. Mas, como explica Maria de Fátima Marinho,

“a dicotomia entre o que efectivamente teve lugar e o que não passa de efabulação não é tão fácil de distinguir como poderá parecer à primeira vista. O que na verdade acontece é que, mesmo que não haja verificabilidade objectiva, há sempre o desfasamento comportamental ou linguístico, que se torna difícil de superar por razões várias.”147

Por isso, apesar das constantes atestações de veracidade, nem mesmo os autores considerados mais “sérios” ou “escrupulosos” deixam de incorrer no anacronismo.

O que queremos dizer, então, quando falamos de anacronismo?

Ao mover a intriga para um tempo distante, o autor acaba por projectar nesse tempo juízos, avaliações ou interpretações próprias do presente, como pudemos já exemplificar. Assim, o anacronismo do romance histórico consiste em “que el pasado se revisita y se reescribe com mirada de hoy, de modo que la imagen que se posee en la actualidad sobre aquella época es la que determina su configuración artística. Hablar del passado, elegirlo, recrearlo, es una forma indirecta de hablar sobre el presente.”148

Importa, em seguida, distinguir duas grandes áreas nesta inevitável confusão de tempos: a linguagem e o comportamento. Celia Fernández Prieto propõe chamar-lhes anacronismo verbal e anacronismo diegético.149 Mauro Cavaliere, partindo da teorização da autora espanhola, prefere distinguir entre anacronismo e arcaizamento,

147 Maria de Fátima Marinho, op. cit. (2005), p.30.

148 Celia Fernández Prieto, op. cit., pp.191-192. Brigitte Krulic insiste em apresentar o romance histórico

como uma questionação do presente; op. cit., p.20, por exemplo. Na terceira parte, veremos como Almeida Garrett (O Arco de Sant‟Ana) considera o passado como uma lição para o presente.

149 Celia Fernández Prieto, op. cit., pp.191-197, e “El anacronismo: formas y funciones”, in Maria de

Fátima Marinho (org.), Literatura e História – Actas do Colóquio Internacional, Porto, FLUP – DEPER, 2004, vol.I, pp.247-257. Neste artigo, a autora propõe a distinção entre três formas de anacronismo: material ou arqueológico, cultural e psicológico, e verbal, que é uma especificação do anterior.

usando este segundo termo para se referir não só ao vocabulário antigo usado no texto, como pretende Prieto, mas também “a aspectos relativos, por exemplo, à acção das personagens, à sua psicologia, a sua mentalidade, etc., tudo aquilo que o leitor pode perceber como inactual.”150

O romance histórico romântico ou tradicional tenta reconstruir o cenário de forma verosímil através da inserção de elementos que, a nível material, presentificam o passado, isto é, objectos, armas, vestuário, gastronomia, traços arquitectónicos e decorativos, costumes, paisagens, obras de arte, enfim, tudo aquilo que, através de uma descrição pormenorizada, possa contribuir para uma impressão de realidade aos olhos do leitor moderno. Se tomarmos como exemplo os romances de Herculano, Rebelo da Silva ou Arnaldo Gama, entre outros, podemos concluir que não existe um anacronismo material ou arqueológico, o que contribui para reforçar a autoridade do narrador e o objectivo didáctico, encarando-se o romance histórico como um complemento da História oficial.151 Além disso, esta ausência de anacronismo obedece a uma estratégia de verosimilhança histórica própria de uma poética mimético-realista.152 O cuidadoso estudo da documentação sobre a época153 permite ao autor evocar o ambiente cultural e social, constituindo-se numa “enciclopédia” do passado que, inserida no romance, procura reactivar a prñpria “enciclopédia” do leitor para confirmá-la, ampliá-la, precisá- la, e também, às vezes, questioná-la.

Se este tipo de anacronismo normalmente não se verifica, os outros dois, por seu turno, estão sempre presentes no romance histórico tradicional. Comecemos pelo anacronismo de cunho verbal, que diz respeito à linguagem do narrador e das personagens. Logo na Introdução de I Promessi Sposi, Manzoni explica por que se viu forçado a alterar a linguagem do manuscrito que serve de base ao romance, dizendo que o estilo “intollerabile” do autor seiscentista “non è cosa da presentare a lettori d‟oggigiorno”.154

Por isso, resolve actualizá-lo para o tornar inteligível. Já Walter Scott, em Ivanhoe, tomara a mesma decisão relativamente ao diálogo entre os servos saxões

150 Mauro Cavaliere, op. cit., p.263. 151

Lembramos, a este respeito, a utilidade social do romance histórico a que fizemos referência no ponto anterior e a nota XXXIV de A Última Dona de São Nicolau: “Isto são coisas que deviam andar escritas em outros livros; mas a arqueologia da vida íntima portuguêsa ainda está por estudar e por escrever, e o pobre do novelista, se quer meter-se por estas épocas da história dentro, tem de ser mineiro, aparelhador e estatuário, tudo ao mesmo tempo (...).”

152

Celia Fernández Prieto, art. cit., p.250.

153 Que se pode perceber através dos apontamentos de Arnaldo Gama para o romance O Satanás de

Coura. Cf. Ana Maria Marques, Histórias com História, op. cit., p.31.

154

Alessandro Manzoni, I Promessi Sposi, in Opere di Alessandro Manzoni, op. cit., pp.249 e 248, respectivamente.

Gurth e Wamba, porque “(...) to give their conversation in the original would convey but little information to the modern reader, for whose benefit we beg to offer the following translation.”155

Estas “traduções” acabam por salientar a necessidade do anacronismo, sempre em favor da compreensão do leitor. Os autores portugueses seguem na esteira dos mestres: “Procuro escrever com clareza a linguagem do meu tempo, conforme a falam e escrevem as pessoas cultas e ajuizadas, sem afectação erudita, sem arcaísmos estudados, e quanto por ora me é possível, sem sabor estrangeiro. Ambiciono ser lido e entendido pelo povo.”156

Por outro lado, os romances estão recheados de arcaísmos, quer a nível lexical, quer a nível sintáctico, reflectindo assim modos de falar ou costumes da época. Estes arcaísmos distinguem a fala das personagens inseridas num mundo passado, contribuindo para a criação da “cor local”, para marcar a distância entre o tempo do leitor e o tempo da diegese, e, logo, para a credibilização do narrado.157

Verifica-se, então, no domínio da linguagem, um equilíbrio precário entre o que seria a “fala verosìmil” de um herñi afastado do presente vários séculos e a “fala acessìvel” ao leitor comum. Como observa Brigitte Krulic, os romancistas tentam manter um compromisso entre as duas, evitando expressões demasiado arcaicas, incompreensíveis e com um toque de artificialismo, ou demasiado contemporâneas, anacrñnicas ou mesmo ridìculas; mas “dans ces deux cas, l‟illusion romanesque en même temps que la vraisemblance sont mises à mal.”158

Passemos, agora, ao anacronismo diegético. Este tem duas vertentes, a cultural e a psicológica, e afecta a representação das personagens tanto históricas como inventadas, as suas condutas, atitudes e reflexões, a repercussão na sua vida privada dos acontecimentos históricos, a sua maneira de interpretá-los, em suma, a forma como as personagens se movimentam e se relacionam com o contexto espácio-temporal. Assim, podemos falar de anacronismo quando existem incongruências entre o mundo construído pelo autor e os seus habitantes.159 Como já mostrámos relativamente às

155 Walter Scott, Ivanhoe, Everyman‟s Library, London, J. M. Dent & Sons, Ltd., 1917 [1819], p.30. 156

António Augusto Teixeira de Vasconcelos, O Prato de Arroz-Doce, Porto, Livraria Civilização Editora, 1983 [1862], Prólogo, p.32.

157 Parece-nos que um exemplo extremo deste recurso será Ráusso por Homízio, de Rebelo da Silva, a

começar logo pelo título.

158 Brigitte Krulic, op. cit., pp.52-53. 159

Jean Molino, art. cit., p.202, refere-se ao anacronismo, a propósito da Idade Média, como a marca de uma impossibilidade constitutiva de distinguir concretamente os momentos do tempo, e dá como exemplo os romances Eneas ou Roman de Thèbes, que não apresentam uma pintura fiel da vida antiga e cujas personagens – romanos e gregos – se assemelham a cavaleiros medievais. Também Erich Auerbach, em Mimesis. The Representation of Reality in Western Literature, New York, Doubleday Anchor Books,

personagens de Alexandre Herculano, o passado é reduzido a um mero cenário em que se movimentam personagens elaboradas de acordo com esquemas ideológicos, psicológicos e culturais do presente do autor.160 No romance histórico scottiano vigora a ideia proposta por Hegel de que o passado funciona como a pré-história do presente161 e, por isso, seria de esperar uma continuidade da natureza humana a nível de comportamentos e sentimentos, independentemente da época em que estivesse inserida.162 Walter Scott dá voz a esta ideia no Prefácio de Ivanhoe:

“(...) and in distinguishing between what was ancient and modern, forgot, (...), that extensive neutral ground, the large proportion, that is, of manners and sentiments which are common to us and to our ancestors, having been handed down unaltered from them to us, or which, arising out of the principles of our common nature, must have existed alike in either state of society.”163

Por isso, encontramos no romance histórico tradicional tantos heróis que sentem, sofrem e falam como os seus homólogos dos romances de actualidade. Este é, porém, o defeito mais frequentemente apontado ao género e os romancistas preocupam-se em defender as suas composições. Hegel argumentara a favor da necessidade do anacronismo na arte da seguinte forma: “La substance interne de ce qui est représenté reste la même, mais la culture développée en représentant et déployant cet élément substantiel rend nécessaire un changement dans l‟expression et la forme de ce dernier.”164 Walter Scott põe em prática o anacronismo necessário, como explica no Prefácio de Ivanhoe:

“It is true, that I neither can, nor do pretend, to the observation of complete accuracy, even in matters of outward costume, much less in the more important points of language and manners. (…) It is necessary, for exciting interest of any kind, that the

1957, cap.7, alerta para a transferência de acontecimentos e personagens bíblicos para um cenário medieval. Como vimos, o fenómeno do anacronismo não é novo nem exclusivo do romance histórico.

160

Celia Fernández Prieto, p.194.

161 Cf. Georges Lukacs, op. cit., pp.64-66.

162 Cf. Celia Fernández Prieto, op.cit., p.197: “En la novela histórica romántica dominaba la concepción

de Scott de que entre el pasado y el presente sólo había una ruptura en lo aparente, en lo superficial, mientras que en las pasiones y los sentimientos los hombres del pasado se hermanaban con los del presente. La naturaleza humana es esencialmente idêntica a sí misma, aunque los câmbios históricos la moldeen y la hagan mostrarse bajo formas diferentes.”

163 Walter Scott, Ivanhoe, op. cit., p.18. 164

Citado em Lukacs, op. cit., p.65. Também Celia Fernández Prieto reflecte acerca da teorização de Hegel no artigo já citado, pp.252-253.

subject assumed should be, as it were, translated into the manners, as well as the

language, of the age we live in.”165

De acordo com Lukacs, este anacronismo necessário permitiria às personagens de Scott ter uma clarividência inusitada para o seu tempo: “L‟«anachronisme nécessaire» de Scott consiste donc simplement dans le fait qu‟il permet à ses personnages d‟exprimer des sentiments et des idées à propos des rapports historiques réels, avec une clarté et une netteté qui eussent été impossibles aux hommes et aux femmes réels de l‟époque.”166

Os romancistas portugueses, cientes duma certa inevitabilidade do anacronismo e da penalização que ele representaria para a credibilidade das suas obras, uma vez que se batem pela fidelidade histórica, esforçam-se por negar a modernização da psicologia das personagens. Rebelo da Silva sintetiza, deste modo, essa preocupação:

“Nos quadros da meia edade o maior perigo consiste em se lhes errar a expressão, attribuindo ás paixões e sentimentos linguagem e caracter, que lhes foram desconhecidos, e que transportam a acção para annos muito posteriores.

Ha um certo verniz moderno, que é mortal para as scenas antigas, porque as retinge, desfeia, e desmente a cada momento.

(...) mas por mais que o desejemos não é sempre fácil, sobre tudo em rasgos apaixonados, respirar exclusivamente na atmosphera de um seculo extincto, traduzindo as idéas, e os vocábulos de tal modo, que as entendam todos, e que o verdadeiro cunho

se não apague.”167

Podemos, então, usar o termo tradução para dar conta dos dois tipos de anacronismo referidos – linguagem e sentimentos –, à semelhança de Brigitte Krulic:

“La «traduction», à interpréter au sens large de réincarnation des émotions, souligne l‟abîme qu‟elle affirme vouloir combler; la restitution, à des siècles de distance, de paroles qui n‟ont pas été prononcées, la reconstruction de pensées relevant

165 Scott, op. cit., p.17.

166 Georges Lukacs, op. cit., p.67. 167

Rebelo da Silva, Introdução a “A Pena de Talião”, in op. cit., pp.267-268. Flaubert manifesta a mesma preocupação a propósito de Salammbô: “Il n‟est pas aisé de s‟imaginer une vérité constante, à savoir une série de détails saillants et probables dans un milieu qui est à deux mille ans d‟ici. Pour être entendu, d‟ailleurs, il faut faire une sorte de traduction permanente, et quel abîme cela creuse entre l‟absolu et l‟œuvre (…).” (citado em Krulic, op. cit., p.54)

d‟un outillage mental qui n‟est que partiellement accessible à notre compréhension, est une «expérimentation», un jeu entre l‟un et le multiple, un effet de miroir entre les

paroles supposées et les paroles énoncées.”168

Depois desta apresentação dos traços fundamentais do romance histórico oitocentista e do anacronismo de que habitualmente enferma, podemos concluir, com Isabelle Durand-Le Guern169, que o género explora um passado estranho, exótico, em certa medida, mas assente em estereótipos que permitem ao leitor uma identificação mais fácil. A caracterização e a psicologia das personagens, normalmente anacrónicas, como veremos mais detalhadamente na quarta parte, acabam por dar ao leitor uma sensação de familiaridade quando se vê confrontado com um passado desconhecido:

“Quoi de plus rassurant pour le lecteur que de reconnaître, à travers les ages, la pérennité des sentiments humains? Malgré la sauvage barbarie des temps anciens, stéréotype essentiel dans le roman historique, il est nécessaire de retrouver des personnages aux valeurs humaines atemporelles: le héros, âme noble et vertueuse, aura toujours peu ou prou les mêmes caractéristiques, qu‟il s‟agisse de l‟Ivanhoé médiéval,

du mousquetaire du XVIIe siècle ou du héros de la Révolution française.”170

Nos capítulos que compõem a terceira parte da dissertação, concentrar-nos-emos nas reflexões de alguns autores oitocentistas sobre a concepção de romance histórico que perfilhavam e as dificuldades com que se deparavam para a executar, nomeadamente a forma como tentavam iludir as incongruências inevitáveis neste género de escritos.

168 Brigitte Krulic, op. cit., pp.54-55. 169

Le Roman Historique, pp.99-100.