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O ROMANCE HISTÓRICO : REALIDADE OU FICÇÃO ?

II. O ROMANCE HISTÓRICO: CONTRIBUTO PARA UMA DEFINIÇÃO

1. O ROMANCE HISTÓRICO : REALIDADE OU FICÇÃO ?

A definição tradicional de romance histórico sublinha o carácter híbrido do género, que associa romance e História na mesma composição. Esta separação dos dois componentes parte da distinção estabelecida por Aristóteles entre Poesia e História:

“ (...) não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere

aquela principalmente o universal, e esta, o particular.”1

A teorização de Aristóteles assumiu o cunho de prescrição e, por isso, a crítica tende a ver no género que liga acontecimentos verificáveis a acontecimentos assumidamente fictìcios o fruto de uma relação “contra-natura”, como lhe chama Michel Vanoosthuyse.2 Os seus autores são obrigados a uma opção: ou realçam a parte substantiva da expressão, romance, ou se mantêm fiéis à História; ou sacrificam a

1 Aristóteles, Poética, (tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa), 7ª

ed., Estudos Gerais, Série Universitária, Clássicos de Filosofia, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003, p.115.

Calíope ou a Clio, em nome de uma unidade que legitime a própria obra3. A tensão inerente ao género, expressa no oxímoro4 da sua própria designação, faz com que o leitor espere convencionalmente, da parte do romancista, uma adesão estrita às fontes (ou não se chamaria histórico) e, ao mesmo tempo, que ele se autorize uma maior liberdade do que a do historiador (ou não se chamaria romance). Mas este compromisso representa um conflito que não pode ser simplesmente ou definitivamente resolvido. Para o podermos abordar, devemos, antes de mais, reflectir sobre questões como a realidade ou a ficcionalidade dum texto, a objectividade ou subjectividade habitualmente associadas a texto factual ou texto ficcional, narrativa histórica ou narrativa de imaginação, e que poderão ajudar-nos a compreender como se constitui o género romance histórico e quais são as suas contradições internas.

Definir o romance histórico como uma representação da realidade de épocas pretéritas levanta alguns problemas. De que é que falamos quando nos referimos à introdução do real na ficção? Que real é este? Aristóteles, na Poética, definiu a poesia como a imitação de acções. Durante séculos, o termo “mimesis” foi entendido como imitação, no sentido de cópia do real.5 Mas será que uma ficção reproduz o real? Certamente não. Não podemos já falar de cópia, nem de reprodução, mas antes de construção, e esta ideia aplica-se quer a textos ficcionais, quer a textos não-ficcionais: Barbara Foley começa por abolir a fronteira entre as duas espécies de textos e admitir a ficcionalidade da realidade, para concluir, com Robert Scholes, que “All writing, all composition, is construction. We do not imitate the world, we construct versions of it. There is no mimesis, only poesis. No recording. Only constructing.”6 O mesmo tipo de análise pode ser aplicado ao texto literário realista que, à semelhança do romance histórico, é um modo de escrita ficcional que visa transcender a sua ficcionalidade e apresentar-se como uma descrição da realidade7: “Le texte de fiction ne reproduit pas le

3 Michel Vanoosthuyse, op. cit., p.15.

4 Joseph W. Turner, “The Kinds of Historical Fiction: an essay in definition and methodology”, Genre,

vol.XII, nº3, Fall 1979, p.342.

5 “Imitatio naturae”. Cf. a síntese de Celia Fernández Prieto, Historia y Novela: Poética de la Novela

Histórica, Pamplona, EUNSA, 1998, pp.58-61.

6 Barbara Foley, Tellling the Truth. The Theory and Practice of Documentary Fiction, Ithaca and London,

Cornell University Press, 1986, p.11. Sobre a construção do mundo na obra literária veja-se também S. J. Schmidt, “The fiction is that reality exists”, Poetics Today, vol.5, nº2, 1984, pp.253-274, e, do mesmo autor, “On the construction of fiction and the invention of facts”, Poetics, vol.18, nº4-5, October 1989, pp.319-335, artigo que explora os impactos de uma concepção empírica dos estudos literários no quadro de uma teoria construtivista da cognição.

réel, mais il construit des mondes textuels que ne lui préexistent pas et que ne présupposent pas de relation directe avec le monde d‟expérience du lecteur ou de l‟auteur.”8

Num interessante artigo em que põe em causa certas ideias feitas sobre a representação e a referencialidade de textos literários, e em que discute a pertinência da oposição entre textos factuais e ficcionais a partir de critérios de verdade / falsidade, Catherine Kerbrat-Orecchioni9 observa que: 1) mesmo não sendo verdadeiros em relação ao universo de experiência, os enunciados ficcionais apresentam-se como verdadeiros no quadro do mundo possível que constroem; 2) a leitura de tais enunciados implica uma suspensão relativa do julgamento de verdade, pois é suposto que o leitor os aceite tal como eles são, sem os contestar ou recusar em nome daquilo que sabe do universo de experiência; 3) para que isto seja possível, é ainda necessário avaliar como ficcional o enunciado, isto é, reconstruir o referente textual; confrontá-lo com o mundo da experiência, cuja representação é sempre induzida ao longo do acto de leitura; registar o desvio que existe entre esses dois mundos, textual e experimental; admitir que, ao contrário do que acontece quando lemos um texto não ficcional, não é em termos de adequação ao universo de experiência que devem ser avaliados em primeiro lugar os conteúdos textuais; reconhecer que o texto denota um mundo diferente, e reconhecer-lhe o direito à diferença; 4) um texto não é nunca cem por cento ficcional, mas propõe sempre modelizações10 parciais do universo de experiência, que são avaliadas em termos de verdade / falsidade. A partir destas premissas, a autora conclui que todo o texto fala, de uma certa maneira, do “mundo real”, e que interpretá-lo é sempre fazer apelo a certas representações do universo de experiência, numa dupla medida: porque, em geral, o texto comporta segmentos não ficcionais, que são directamente avaliados em relação a esse universo de experiência11, e porque mesmo os seus elementos mais evidentemente ficcionais só são percebidos como tal no momento em que se relaciona ficção e mundo da experiência, o qual funciona como um mundo- padrão que a ficção representa de qualquer forma em negativo, como a marca pela qual se mede o grau de desvio.12

8Idem, p.20.

9

Catherine Kerbrat-Orecchioni, “Le texte littéraire: non-référence, auto-référence, ou référence fictionnelle?”, Texte. Revue de Critique et de Théorie Littéraire, nº1, 1982, pp.27-49.

10 Cf. Iouri Lotman, La Structure du Texte Artistique, Paris, Gallimard, 1973. 11

Característica especialmente visível no romance realista e no romance histórico.

Para marcar a diferença entre mundo do texto e universo de experiência, Benjamin Hrushovski propõe as noções de Campo de Referência Interna e Externa13, apresentando a teoria do Campo de Referência Interna em substituição de termos como “mundo fictìcio” ou “mundo possìvel”, com a vantagem de salientar a ligação entre o mundo projectado e a referência linguística.14 O autor afirma que uma obra literária constrñi a sua prñpria “realidade” enquanto, simultaneamente, a descreve,15

e aponta a noção de Campo de Referência Interna para se referir a essa “realidade”:

“Les textes littéraires construisent, et cela fait toute leur particularité, leurs propres Champs de Référence Interne (CRI) en même temps qu‟ils s‟y réfèrent. (...) On peut donc définir un texte littéraire comme un texte verbal qui projette au moins un Champ de Référence Interne (CRI) auquel se rapportent les significations du texte (…). Un CRI est construit comme un plan parallèle à la réalité. Dans la fiction réaliste, les événements se déroulent dans un cadre historique et géographique connu (…) ; d‟autres fois les événements sont simplement placés en suspens en «quelque part» (…), et les situations et les conduites ressemblent (…) à la réalité. Ainsi, le CR Interne se projette parallèlement à un CR Externe. Mais des plans parallèles ne se coupent jamais, et le

personnage ne sortira jamais d‟une maison fictive pour apparaître dans un café réel.”16

O Campo de Referência Externa aponta, por sua vez, para o universo exterior ao texto :

“Les Champs de Référence Externe (CRE) incluent tous les Champs de Référence extérieure au texte donné : le monde réel dans l‟espace et dans le temps, l‟histoire, une philosophie, des idéologies, des conceptions de la nature humaine, d‟autres textes. Le texte littéraire peut directement renvoyer à des référents appartenant à ces CR Externes ou les évoquer : noms de lieux et de rues, événements et dates

13 Servimo-nos da teorização do autor exposta em “Fictionality and fields of reference. Remarks on a

theoretical framework”, Poetics Today, vol.5, nº2, 1984, pp.227-251, e “Présentation et représentation dans la fiction littéraire”, Littérature, nº57, 1985, pp.6-16. Sobre o conceito de referência como termo geral que cobre todos os tipos de simbolização, veja-se o artigo de Nelson Goodman, “Routes of Reference”, Critical Inquiry, vol.8, Autumn 1981, pp.121-132.

14 Benjamin Hrushovski, “Présentation et représentation dans la fiction littéraire”, p.10. 15

Também Silvina Rodrigues Lopes sublinha essa condição da obra literária: “Ao mesmo tempo que constrói um referente, um sentido, a obra literária é acontecimento, referência. É pelo facto de estes dois movimentos serem indecidìveis que a experiência literária é complexa e nunca redutìvel à representação.” A Legitimação em Literatura, Lisboa, Cosmos, 1994, p.459.

historiques, personnages historiques réels, mais aussi différentes assertions sur la nature

humaine, la société, la technologie.”17

Segundo o esquema apresentado por Hrushovski, estes dois planos são paralelos mas podem ter vários pontos em comum, desde referentes individuais a quadros de referência completos.18 Estes quadros podem compreender personagens históricas, descrições de um lugar, discussões de uma teoria, etc. Ora o que acontece no romance histórico, como no romance realista, é a colocação de um CRI novo num quadro de referência externa conhecido, obtendo-se a intersecção dos dois planos. Mas esse CRI, apesar de moldado sobre exemplos externos, é único e provido de coerência interna.19

Ao analisar a etimologia de fingere, Catherine Coquio salienta dois dos seus sete sentidos: representar, de que resultaria fictus, fictício, imaginário, e inventar, forjar, de que resultaria fictus, fingido, falso. Assim, fictio teria duas acepções: 1) acção de moldar, formação, criação; 2) acção de fingir, ficção. A relação de fingere com

cognoscere pode ser compreendida como uma analogia ou uma contradição, uma vez

que ambas as actividades resultam da acção de um sujeito produtor, mas enquanto a ficção molda o real, o conhecimento molda-se sobre ele. Daí se concluiria que a ficção seria “subjectiva” e o conhecimento “objectivo”20

. Este tipo de conclusão leva rapidamente a uma questionação crítica e à visão desta problemática como circular.

Vários teóricos se debruçaram sobre esta questão. Apresentamos, agora, sumariamente, algumas das suas conclusões.

Para Fred Chappell, opor a suposta “objectividade” da Histñria à “subjectividade” da literatura é uma falsa polarização, agravada por uma vulgarização da terminologia freudiana.21 Thomas Pavel coloca o real e a ficção num continuum, com

17

Idem, p.10.

18 Benjamin Hrushovski explica que um quadro de referência é “un continuum sémantique comportant

deux référents ou plus et bâti sur le modèle d‟un type quelconque de continuité. Ce peut être une scène dans le temps et l‟espace, un personnage, une idéologie, une intrigue, une politique, une théorie, (…). Un cr peut être présent pour les locuteurs ou absent, connu ou inconnu de l‟auditeur; il peut être réel, hypothétique ou fictif; son statut ontologique est sans importance pour la sémantique: un cr, c‟est tout ce dont on peut parler.” (“Présentation et représentation dans la fiction littéraire”, p.8).

19 “Présentation et représentation dans la fiction littéraire”, p.14. Sobre referência, e as mais importantes

teorizações a ela associadas ao longo do século XX, veja-se a notável síntese de Rosa Maria Martelo, Carlos de Oliveira e a Referência em Poesia, Porto, Campo das Letras, 1998, Primeira Parte, Capítulo I.

20 Catherine Coquio, “Avant-Propos” a Catherine Coquio, Régis Salado (org.), Fiction & Connaissance,

(«Collection Critiques Littéraires»), Paris, L‟Harmattan, 1998, pp.7-8.

21

Fred Chappell, “Six Propositions about Literature and History”, New Literary History, vol.I, nº3, Spring 1970, p.518.

o pretexto de um jogo referencial homogéneo, embora seja “normal” num caso e “marginal” no outro22; Michel Riffaterre define uma “verdade ficcional” garantida pela

“verosimilhança”, isto é, por uma “gramática” do sentido que supõe uma “convenção de verdade”23

. Para Hayden White, a História traduz-se em termos de narrativa, apresentando as suas reconstruções do passado um carácter fictício.24 Numa outra obra, White observa que apesar de se interessarem por acontecimentos de natureza diferente, historiadores e autores de ficção apresentam a mesma forma de discurso e perseguem a mesma finalidade da escrita.25 Michel Vanoosthuyse critica a argumentação de White e, em geral, o neo-historicismo pós-moderno que coloca a História fora do domínio científico para a instalar no da ficção, salientando que a História tem limites, enquanto no domínio da literatura não existe limite para o possível.26 Este autor distingue, ainda, a História da ficção:

“Faire savoir sur la réalité passée, l‟histoire ne saurait certes être «vraie» par adéquation à l‟objet, mais elle est un discours où la vérité sur cet objet est en jeu et dans lequel l‟historien engage sa responsabilité. En littérature, en revanche, le locuteur ne

s‟engage pas sur la vérité des énoncés (et s‟il le fait, c‟est une feinte), pas plus au

demeurant qu‟il n‟entend mentir.”

E, mais adiante, conclui:

“le caractère fictionnel du discours ne se détermine pas à partir de l‟irréalité de ce qui est énoncé (un mensonge n‟est pas une fiction), mais à partir de la question: celui qui énonce est-il l‟auteur ? En fiction, contrairement à l‟histoire, le locuteur réel n‟engage pas sa caution pour affirmer la vérité des énoncés, il délègue cette responsabilité.”27

22

Thomas Pavel, L‟Univers de la Fiction, Paris, Seuil, 1986, p.39: “Les pratiques référentielles normales et marginales appartiennent au même continuum et partagent la plupart de leurs caractéristiques.”

23 Michel Riffaterre, Fictional Truth, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1990, “Introduction”. 24 Hayden White, Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Baltimore and

London, The Johns Hopkins University Press, 1973, “Introduction”. A este respeito, veja-se também o conceito de “emplotment” proposto nesta obra.

25 Hayden White, Tropics of Discourse, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press,

1978, p.121.

26

Michel Vanoosthuyse, op. cit., pp.41-43.

Paul Ricoeur coloca a tónica na narratividade do saber, através da expressão “mise en intrigue”.28

Já Gérard Genette sublinha a distinção entre sério (real) e fictício29, observando também que a obra de ficção não se distingue da obra de não ficção (“dicção”) por causa da natureza fictìcia de acontecimentos e personagens, mas porque a identidade do narrador não coincide com a do autor. Mais recentemente, Genette revê a sua teoria e conclui:

“Bien entendu, un texte peut relever des deux [critères de littérarité (par fiction ou par diction)] à la fois: d‟abord parce que, comme chacun sait, un grand nombre d‟œuvres appartiennent en fait à un genre mixte ou intermédiaire, mêlé de réel et de fiction, tel que le roman historique, le roman autobiographique, l‟histoire, la biographie ou l‟autobiographie romancées, (…); ensuite, et de manière plus pertinente à mon propos, parce que la perception d‟une littérarité-par-fiction n‟évince pas le sentiment de

littérarité-par-diction, et réciproquement. Simplement, elle le trouble en s‟y mêlant.”30

Finalmente, já em 2007, Raphaël Baroni, num artigo intitulado “Histoires vécues, fictions, récits factuels”, faz um ponto da situação e tenta repor alguma ordem nesta conceptualização. Para o autor, a relação entre o mundo e as narrativas que o contam é uma relação criativa, uma “construção”.31

Segundo Baroni, a partição entre narração e realidade ou a total ficcionalidade que advogam alguns autores citados deve- se ao modo como se encara a mediação da “mise en intrigue” (Ricoeur): se a unidade ordenada que a intriga imprime ao acontecimento é uma pura invenção do narrador, se ela não encontra nenhuma correspondência na realidade, e se toda a narrativa produz uma “mise en intrigue”, então toda a narrativa é fictìcia, e a reflexão sobre as relações entre ficção e mundo não pode em nenhum caso limitar-se aos “géneros ficcionais”.32 Esta conclusão fica a dever-se a uma banalização da teoria de Ricoeur, que, na sua origem, reservava a expressão “mise en intrigue” para designar

28 Paul Ricoeur, Temps et Récit, Paris, Seuil, 1983 (vol.I), 1984 (vol.II), 1985 (vol.III).

29 Gérard Genette, Fiction et Diction, Paris, Seuil, 1991, p.61: “ (…) on peut raisonnablement décrire les

énoncés intentionnellement fictionnels comme des assertions non sérieuses (ou non littérales) recouvrant, sur le mode de l‟acte de langage indirect (ou de la figure), des déclarations (ou demandes) fictionnelles explicites.”

30 Gérard Genette, “Fiction ou diction”, Poétique, nº134, 2003, p.134. 31

Raphaël Baroni, “Histoires vécues, fictions, récits factuels”, Poétique, nº151, 2007, p.259.

“une configuration poétique que produiraient les œuvres littéraires, et en particulier les récits de fiction, puisqu‟il insistait sur le fait qu‟il s‟agissait d‟une «intrigue feinte», d‟une «invention», d‟une «innovation sémantique» reposant sur «l‟imagination productrice». L‟intrigue est donc définie comme une activité, une production poétique, qui s‟opposerait idéalement à un rapport passif aux événements,

dans lequel ces derniers se livreraient de manière chaotique ou désordonnée.”33

Baroni propõe, por isso, uma reflexão sobre as implicações de tal generalização e sobre os deslocamentos conceptuais que ela acarreta. Ele quer saber se todos os géneros narrativos, factuais ou ficcionais, produzem efectivamente “mises en intrigue” equivalentes e se, subsidiariamente, o termo “intriga” pode, de forma justa, aplicar-se a cada um deles. Parece ao autor que a generalização recente do modelo proposto por Ricoeur teve como consequência nivelar certas diferenças que são essenciais quando se deseja esclarecer a diversidade de géneros narrativos, de estilos que os caracterizam e da maneira como os encaramos.34 Por isso, diz ser necessário redefinir, para além das semelhanças de superfície, o que cada forma de configuração narrativa pode ter de singular, se se deseja compreender como diferentes formas de mimesis podem influenciar-se ou enriquecer-se mutuamente, como elas formam um “cìrculo virtuoso” em vez de produzirem uma repetição indiferenciada na qual tudo vale, tudo é ficção e tudo é real ao mesmo tempo, afinal uma posição que traduz uma tendência relativista a que Ricoeur sempre tentou resistir.35

Depois desta síntese de várias teorizações importantes e, por vezes, conflitivas, e como preâmbulo à análise que se segue, convém fazermos um ponto de situação: a definição do conceito de ficcionalidade não está isenta de problemas e não pode ser encarada de forma definitiva, como a síntese anterior demonstra claramente. O conceito de ficcionalidade pode ser entendido em termos de intencionalidade, se a intenção do autor for a construção de um texto baseado numa atitude de “fingimento”; mas também pode ser entendida como um contrato entre autor e leitor, cuja cláusula mais importante é a “willing suspension of disbelief”, como lhe chamava Coleridge, e que entende como aceitável e pertinente o jogo da ficção. Daqui não se pode concluir obrigatoriamente que a ficcionalidade seja autotélica; pelo contrário, o jogo da ficção não exige um corte total

33 Idem, p.260. 34

Idem, p.260.

com o mundo real, podendo mesmo o texto ficcional remeter para o universo de experiência36, numa perspectiva de esclarecimento ou explicação que, por vezes, se transmite num registo de carácter didáctico, como era apanágio de boa parte dos romances históricos oitocentistas. Assim, a referencialidade de um texto de ficção poderá ser entendida como pseudo-referencialidade37, uma vez que, segundo Paul Ricoeur, é pela via da leitura que se concretiza a “referência metafñrica” que resulta da inevitável fusão de dois horizontes, o do texto e o do leitor, e, logo, a intersecção dos dois mundos, o do texto e o do leitor.38 Convém ainda ter em mente que a ficcionalidade não é uma condição exclusiva dos textos narrativos ou dos textos literários, embora sejam estes os que melhores condições reúnem para a encenar por meio da construção de “mundos possìveis”.39

Após estas considerações prévias, estamos agora em condições de definir o romance histórico. Voltemos, então, ao início. Começámos por recordar a diferença estabelecida por Aristóteles entre Poesia e História e a resultante separação entre os dois géneros discursivos, adoptada, em grande medida, pelos estudiosos do romance histórico. De facto, os críticos sublinham, tradicionalmente, a junção de dois géneros diferenciados e dedicam-se à comparação dos dois, salientando a objectividade da História e a subjectividade da ficção, como vimos. Eis um excerto que resume