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Objectivos do romance histórico

II. O ROMANCE HISTÓRICO: CONTRIBUTO PARA UMA DEFINIÇÃO

2. O ROMANCE HISTÓRICO : ELEMENTOS PARA A SUA DEFINIÇÃO

2.4. Objectivos do romance histórico

O objectivo didáctico é claramente enunciado por uma boa parte dos romances históricos oitocentistas. Os autores recuperam a fórmula horaciana prodesse ac

delectare, transformando a leitura dos seus romances em momentos de ensino/

aprendizagem da História. Deste modo, aqueles leitores que não possuíssem tempo ou interesse pelo estudo do passado acederiam, assim, a uma versão suavizada e mais atractiva das épocas volvidas:

“Demais eu não o queria narrado no estilo severo e seco, em que se escreve a história; queria-o de maneira que todos o lessem, que instruísse deleitando, utile dulci (...). Queria... queria uma novela, um romance histórico, que toda a gente lesse, que toda a gente quisesse ler; porque enfim, meu caro amigo, estou convencido que a maneira de ensinar a história àqueles que não se aplicam aos livros, àqueles cuja profissão os arreda de poder fazer estudos sérios e seguidos, é o romanceá-la, dialogando-a, e dando vida à

época, dando vida aos personagens, dando vida às localidades (...).”129

O romancista histórico, auxiliado pela imprensa que publica em folhetim as suas produções130, assume a tarefa de vulgarizar o conhecimento e formar as massas populares: deste modo, o romance vem preencher uma função de utilidade social131. Como explica Brigitte Krulic, a propósito da obra de Alexandre Dumas, o objectivo do romancista histórico não varia muito: familiarizar o leitor com as grandes personalidades da História, certas épocas ou acontecimentos centrais, cuja compreensão ajuda a perceber o presente, mostrar as pequenas causas que estão na origem dos grandes acontecimentos. Fazendo isto,

“le romancier historique initie ses lecteurs à la mise en perspective historique, à la confrontation du passé et du présent. Dans la mise en scène de l‟histoire nationale, il conforte les lecteurs dans l‟idée que l‟histoire fait advenir l‟identité préexistant de toute éternité du peuple-nation, que le retour aux sources fonde une existence légitime et

129 Arnaldo Gama, Um Motim Há Cem Anos, Porto, Livraria Simões Lopes, 1949 [1861], pp.11-12. 130 Brigitte Krulic, op. cit., pp.66-70, reflecte acerca do papel da imprensa e do folhetim na instrução do

público.

glorieuse: c‟est bien d‟une visée téléologique et providentialiste (…) dont se dote l‟histoire transposée en fiction.”132

Os romancistas esforçam-se por fazer crer que um romance pode ser mais verdadeiro do que um tratado de História porque, para além dos acontecimentos e figuras do passado, o romance põe também em cena a intimidade, os detalhes da vida quotidiana que escapam ao historiador.133 E os críticos perpetuam essa ideia, sublinhando a vertente instrutiva do romance histórico, como se pode perceber pela leitura de uma notìcia publicada n‟ O Panorama acerca da tradução do romance

Quentin Durward, de Scott, por Ramalho e Sousa e Caetano Lopes de Moura:

“(...) mas trasladar uma novella, como algumas de Walter Scott, onde ás vezes

se aprende mais historia que nos livros dos historiadores – porque estes narram successos, e aquellas pintam epochas e gerações – e traslada-la em portuguez corrente e limpo, longe de ser cousa inútil, é um bom serviço que se faz á litteratura portugueza. São as novellas os livros que por maior numero de mãos correm, e, quando instructivas e vertidas em boa linguagem, podem, por isso mesmo, fazer grande beneficio, não só instruindo e deleitando; (...).”134

Como pretendem a fidelidade histórica, os romancistas apresentam sempre inúmeras atestações da veracidade daquilo que narram em notas, em prefácios ou no prñprio corpo do texto: “Fique dito por uma vez que todos os nomes que empregamos, cenas que descrevemos, costumes que pintamos, são rigorosamente histñricos.”135

Rebelo da Silva afirma na Introdução a Ódio Velho não Cansa que o romance histórico tem o dever de ser verdadeiro: “Em assumptos historicos, o dever do romance consiste em cunhar com a verdade mais approximada a expressão fiel do viver e crer de Portugal, ou de outra qualquer nação, n‟uma designada epocha.”136

Finalmente, recorremos a Arnaldo Gama para mostrar como o objectivo didáctico do romance

132 Idem, p.75.

133 Como explica Herculano em “A Velhice”, in Cenas de um Ano da Minha Vida. Apontamentos de

Viagem, in As Melhores Obras de Alexandre Herculano, vol.VIII, s/l., Círculo de Leitores, 1987, p.73. Voltaremos a este texto na terceira parte desta disser tação.

134 O Panorama, Lisboa, Typographia da Sociedade, vol.III, nº103, 20 de Abril de 1839, p.128.

135 Alexandre Herculano, O Bobo, in As Melhores Obras de Alexandre Herculano, vol.I, s/l., Círculo de

Leitores, 1986 [O Panorama, 1843], p.118, nota 1.

depende de uma vasta informação sobre a época, que os autores anunciam como a grande vantagem das suas obras:

“As amáveis leitoras deste livro (...) que (...) desbaratam a regalada ociosidade (...) a ler as farfalharias e futilidades românticas da escola francesa e seus imitadores (...) nem ao de leve imaginam de-certo, que, antes que o amor da especulação e do lucro inspirasse a Guttemberg o grandioso invento, que tão nitidamente lhes proporciona a elas o seu tão querido passatempo, haviam uns entes (...) que passavam a vida inteira (...) copiando sempre livro após livro (...).”137

O narrador aproveita para traçar um esboço da história da imprensa, completada depois numa nota em que se lêem estes dois passos:

“Contudo, visto que caì no pecado de fazer reviver a memória de todo esquecida dos pobres copistas, julgo do meu dever dizer aqui o quanto baste para o leitor formar uma ideia, pelo menos muito aproximada, do que êles eram, bem como da maneira porque os seus trabalhos eram feitos.”;

“Isto são coisas que deviam andar escritas em outros livros; mas a arqueologia da vida íntima portuguêsa ainda está por estudar e por escrever, e o pobre do novelista, se quer meter-se por estas épocas da história dentro, tem de ser mineiro, aparelhador e

estatuário, tudo ao mesmo tempo (...).”138

Mas, apesar de todos os protestos de veracidade, os autores têm consciência de que esta visão do romance histñrico é um pouco “ingénua” e acabam por denunciá-la: “Desde o Cinq-Mars ríspido e austero de Alfredo de Vigny, até os heroes lhanos e galhofeiros de A. Dumas, a historia ha sido folheada e revolta, vestida e quando Deus quer falsificada de todas as maneiras, sob pretexto de se lhe dar o seu verdadeiro traje.”139

Ainda que inconscientemente, os romancistas chegam à conclusão de que o passado só nos pode chegar sob a forma de documento, sem recurso ao testemunho

137 A Última Dona de São Nicolau, Porto, Livraria Tavares Martins, 1937 [1864], p.31. 138 Idem, nota XXVI, pp.312 e 315, respectivamente.

139

Innocencio F. da Silva, Introdução a Pinheiro Chagas, Os Guerrilheiros da Morte, Lisboa, L&F, Escriptorio da Empresa, 1872, p.xxxiv.

directo, e sendo, por isso, passível de interpretações abusivas ou de inclusão de factos não verificáveis.140

Reconhecendo, então, que nem sempre é possível ser verdadeiro, o romancista esforça-se para, pelo menos, ser verosímil,141 recheando as intrigas de pormenores pitorescos e inventando aquilo que a História não guardou mas que podia ter acontecido. Lembramos, a este propósito, a pergunta de Fernando Aínsa: qual é a verdade referencial do verosìmil? “Algo que es semejante a la verdad; una verdad que tiene aparencia de verdadero, de lo que «parece» o podría ser sin forzar la lógica, no necesariamente de lo que es verdadero.”142

Num bem conhecido trecho de “O Bispo Negro”, Herculano distingue entre “verdadeiro” e “verosìmil”, sublinhando o importante papel que a “tradição” e o “verosìmil” desempenham na construção do romance histñrico, e fazendo eco da teorização de Alfred de Vigny a que já nos referimos:

“O prìncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenando ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a tradição os costumes. A história é verdadeira, a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.”143

Rebelo da Silva alude à necessidade de se respeitarem as leis da verosimilhança na composição de um romance histórico, sublinhando a diferença entre a rigidez da História e a liberdade do romance, mesmo se este se molda a partir daquela:

“Não se imagine, porém, que, apontando o severo desenho da historia, o acceitemos para nós como juizo ou queirâmos impol-o como regra absoluta, e limite d‟esta qualidade de novellas. Longe d‟isso! (...)

140 Abordamos este assunto de uma forma sucinta; voltaremos a tratá-lo mais pormenorizadamente na

terceira parte desta dissertação, quando nos debruçarmos sobre o romance histórico de Alexandre Herculano.

141 Cf. Maria de Fátima Marinho, op. cit. (1999), p.22. 142

Fernando Aínsa, op. cit., p.23.

A verdade da poesia não é a verdade austera da sciencia. A invenção e o estylo sempre desfalleceram em ferros, e não os ha mais duros, que a cega obediência, que semilhante systema exige.

Como a fada dos contos populares, o romancista gosa de altos privilegios. (...) Guardadas as leis da verosimilhança, póde lavrar como entender a moldura da sua fabula. A historia será como um espelho aonde ella se reflicta.

Uma vez que sejam humanas e possiveis as figuras, e que por obras e palavras não desmintam as crenças e os costumes, ha plena liberdade de sair e entrar, de mandar

falar os mudos, e de ressuscitar os mortos.”144

Posto isto, podemos concluir que a verosimilhança surge como um meio de persuasão, como explica Albert W. Halsall :

“donner au lecteur l‟impression que ses façons à lui de concevoir le monde et ses phénomènes sont respectées, et il risque d‟accepter par la suite la «valeur» exemplaire que possèdent des événements – historiques, inventés et historico-inventés – qui sont offerts par le récit pour garantir des propositions explicites et des prises de

position implicites qui en forment la base axiologique.”145

Porque, mesmo verosímil, no fundo, o romance histórico não deixa de ser fictio – criação e ficção –, e o objectivo tão perseguido da verosimilhança não passa de uma ilusão:

“La mise en scène du temps passé repose sur une illusion d‟optique: elle procède par effets de dédoublement et de surimpression entre le présent et le passé, si bien qu‟on peut se demander si la représentation vraisemblable du passé, qui constitue l‟objectif le plus évident, le plus «visible» du roman historique, n‟est pas, en fin de

compte, un astucieux trompe-l‟œil.”146

Voltaremos a este assunto na secção seguinte.

144 Rebelo da Silva, Introdução a “A Pena de Talião”, in Contos e Lendas, 3ªed., Lisboa, Sociedade

Editora Portugal-Brasil, s/d. [1860], pp.265-266.

145

Artigo citado, p.94.