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O Feliz Independente: a utilidade da História

I. INTRODUÇÃO

I.2. PERCURSO DIACRÓNICO PELA LITERATURA DE TEMA HISTÓRICO

I.2.3. O Feliz Independente: a utilidade da História

Pretendemos, neste capítulo, reflectir acerca da inserção de um fundo histórico numa obra de carácter doutrinário, como nos parece ser O Feliz Independente (1779). Não iremos ocupar-nos das várias questões levantadas pela obra – como a da Felicidade ou a dos tratados de educação dos príncipes –, entendidas no quadro das Luzes em Portugal e na Europa, mas apenas, tal como é, aliás, o objectivo desta parte introdutória da dissertação, levantar alguns tópicos de reflexão que nos possam ajudar a clarificar o ambiente literário vivido em Portugal nas vésperas da génese do romance histórico.

Por que motivo estudar, então, este texto de Teodoro de Almeida? Antes de mais, pela sua longevidade. Bem dentro do século XIX, na altura em que as novelas francesas e o romance histórico ocupam o espírito dos leitores, ou talvez mais das leitoras..., O Feliz Independente continua a ser recomendado como leitura apropriada a um público essencialmente feminino: o Cónego Fernandes Pinheiro, em 1862, considera a obra “ leitura preferìvel (...) à d‟essas mirìades de novelas, com que quotidianamente invade o nosso mercado a literatura estrangeira, principalmente a francesa”, obra que “o mais escrupuloso pai de famìlia [pode] confiar às suas filhas”.1

Mais claras provas da popularidade desta narrativa são o número de reedições em pleno século XIX – 1835 (terceira edição), 1844 (quarta edição) e 1861 (quinta edição) – e as várias referências a ela que podem ser rastreadas até ao início do século XX.2

Iniciemos, pois, a nossa reflexão pela leitura do Prólogo que acompanha a obra. Logo no primeiro parágrafo, Teodoro de Almeida declara que aquilo que o motivou foi o “bem da humanidade”, a quem oferecia uma “Filosofia Moral” conducente à “verdadeira alegria”. No entanto, o autor verifica a necessidade de tornar essa leitura mais agradável:

“Contudo, pareceu-me que seria mais agradável, e por isso mais útil, o dar esta obra no estilo em que a ofereço ao público, atendendo a muitas circunstâncias que assim

1 Fernandes Pinheiro, Curso Elementar de Literatura Nacional, 1862, citado em Zulmira C. Santos, “O

Feliz Independente... do Pe. Teodoro de Almeida: a teoria literária como forma de cultura no século XVIII”, separata da Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, Anexo I, 1987, p.181.

2 João Gaspar Simões, Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa. Das Origens ao Século XX, Lisboa,

Publicações D. Quixote, 1987, p.246; Pe. Teodoro de Almeida, O Feliz Independente, ed. Zulmira C. Santos, («Obras Clássicas da Literatura Portuguesa – Século XVIII»), Porto, Campo das Letras, 2001 [1779], “Introdução”, pp.13-14.

mo fizeram esperar. (...) Assim desejei eu fazer, disfarçando a austeridade das máximas

evangélicas com a beleza e flores da razão e da poesia.”3

No parágrafo seguinte, depois de declarar que toma a obra de Fénelon,

Télémaque, como modelo, conta como abandonou o projecto de escrever em “verso

rimado”, justificando-se deste modo:

“levava-me então do ditame de Horácio que dá a palma a quem souber misturar com o suave o útil; e queria embriagar de sorte o espírito dos meus leitores com a doçura do metro, que tragassem, sem o perceber, a medicina salutífera da alma. Via-os desprezar com tal frenesi tudo o que cheirava a devoção e virtude, que me parecia forçoso o enganá-los felizmente, dourando-lhes as pírolas, ou pondo a doçura do mel na

borda dos vasos, onde se lhes deviam ministrar as medicinas amargas.”4

A mesma “utilidade” é convocada para justificar o abandono do verso livre e a adopção da prosa: “(...) e sacrificando toda a beleza do metro, que só podia recrear, à muito importante força e energia dos argumentos, que devem ferir e prostrar, principiei de novo a obra. (...), mas na liberdade da prosa”.5 Está, assim, patente a obediência ao princípio horaciano utile dulci, tantas vezes convocado também pelos romancistas históricos, como teremos oportunidade de observar mais adiante. A necessidade de tornar agradável o texto prende-se com a sua finalidade didáctica: por isso, ao perceber que a poesia só podia recrear, isto é, desviar a atenção do útil para o deleite (delectare) associado à forma, Teodoro de Almeida concentra-se naquele que é o objectivo fundamental da obra, o ensinar (docere), e convoca uma forma que não ameace a clareza da exposição da sua doutrina.6

Justificada, pois, a forma, o autor explica por que motivo escolheu um personagem histórico para herói da sua história:

“Ora esta pintura da felicidade (...) convinha que eu lha pusesse diante dos olhos, e bem perto, para que a cressem possível; e a não reputassem puro fantasma da

imaginação, mas realidade, tocando-a quase com as mãos. Por este motivo, busquei um

herói verdadeiro na história, ao qual esta pintura quadrasse; porque, deste modo, os

3 O Feliz Independente, “Prñlogo”, p.35. 4 Idem, “Prñlogo”, pp.35-36.

5

Idem, “Prñlogo”, p.36. Sublinhado nosso.

dissuadia sem violência do erro comum, com que se busca a felicidade pelo caminho do vício; e fazia entrar os leitores na verdadeira entrada da alegria: (...)

Era-me logo indispensavelmente preciso um herói, em que fizesse brilhar a virtude, (...) e assentei que o devia buscar entre os príncipes cristãos, para que ninguém pudesse suspeitar que eu fazia nascer a felicidade das máximas independentes da religião romana (...). Este ponto era essencialíssimo para que não confundisse ninguém

a minha filosofia com a filosofia pagã”.7

A escolha do herói obedece a um princípio de verosimilhança, que, segundo Zulmira Santos, constitui mais um elemento na estratégia de aproximação ao leitor.8 A teorização literária do século XVIII segue na linha das preocupações clássicas em torno do verdadeiro, do possível e do verosímil, que pudemos tratar no capítulo precedente. Por isso, Teodoro de Almeida não deixa de reflectir sobre elas, embora n‟ O Feliz

Independente atribua maior importância às categorias do verdadeiro e do verosímil,

“não sñ porque traduzem, de forma mais clara, o Belo, mas fundamentalmente porque se instituem como mais convincentes.”9

Assim, o texto será tanto mais credível quanto mais próximo da verdade se mostrar. Para tal, contribui também a “cronologia”, “sendo a história daqueles anos cheia de inumeráveis factos em que a curiosidade se interessa”10

: a História funciona, assim, como a garantia da verdade do texto, a legitimação da história, tornando inquestionáveis as doutrinas veiculadas que a ela se associam. Além disso, como conclui o próprio autor, a utilitas é também servida pela presença da História na intriga, uma vez que prende a atenção do leitor e ajuda a “disfarçar” a vertente pedagñgica do texto:

“Tudo isto [factos histñricos] fornecia à ficção poética mil episñdios que podiam ser úteis à intriga; a qual serve não só para fazer ver as paixões, em toda a sua força, mas para trazer a alma do leitor em contínuo, mas diferente e agradável movimento; achando-se estimulada com a curiosidade de ver o bom ou mau êxito dos sucessos: o que dá lugar a que a filosofia insinue insensivelmente todas as suas máximas e com gosto se veja sempre que nos heróis a razão triunfa das paixões e a virtude do crime.”11

7

O Feliz Independente, “Prñlogo”, p.36. Sublinhado nosso.

8 Artigo citado (1987), p.186.

9 Zulmira C. Santos, artigo citado (1987), pp.186-187. 10

O Feliz Independente., “Prñlogo”, p.37.

A preocupação com a verosimilhança está, também, patente num outro passo do Prñlogo, no qual, além disso, o autor define o “género” em que se filia a sua obra:

“Necessitava a virtude da contraposição do vìcio; (...). Para isto, era-me necessário outro personagem contemporâneo, para que não dissesse alguém que degenerava em novela, o que era poema (ainda que pudesse tomar a licença que

tomaram Vírgilio, Tasso e outros, valendo-se de personagens que não coexistiram); e

achei o conde de Morávia”.12

Assim, Teodoro de Almeida rejeita o anacronismo13 praticado por nomes maiores da épica, e que consistiria em fazer contracenar personagens de épocas diferentes, de modo a não deixar o seu texto cair nos defeitos normalmente imputados à novela e mantendo o alto padrão de exigência estética do “poema épico em prosa”, classificação reivindicada para esta obra quer pela assunção do modelo prestigiante do

Télémaque, quer pela defesa de Antñnio das Neves Pereira no “Discurso Preliminar”,

apenso à segunda edição (1786). Mas, apesar disso, o oratoriano altera conscientemente a História nalguns passos, como observa Maria de Fátima Marinho14. Citamos, em seguida, mais um passo do Prólogo que exemplifica como essa alteração submete a Histñria a um propñsito moralizador: “A esta princesa, pois, suponho desgostosa da corte numa casa de campo sobre o Niester, onde é o encontro do herói. Dei-lhe por meio-irmão o conde da Morávia, para que a estreiteza do parentesco fizesse decente

toda a familiaridade que me era indispensável (...).”15 Neste passo, podemos ver sintetizado o grande dilema que enfrenta o escritor nos séculos XVII e XVIII: a conjugação do respeito à verdade (a verosimilhança histórica) com a exigência de moralidade e a defesa do decoro.16

Ao evitar a designação de novela, Teodoro de Almeida reflecte o pouco prestígio de que o género gozava, sendo criticado essencialmente pelas suas faltas contra a verosimilhança e pelo perigo de ordem moral que a sua leitura acarretava,

12

Idem, “Prñlogo”, p.37. Sublinhado nosso.

13 Teodoro de Almeida mostra possuir alguma consciência do anacronismo e, logo, da verosimilhança

histñrica, quando no Tomo II, Livro XVII, escreve na nota 5: “Não se apontam aqui as Américas, porque no princípio do século XIII, em que se supõe esta conversação, ainda se não tinham descoberto, pois só o foram por Cristñvão Colombo, em 1492.” (O Feliz Independente, p.333).

14

Um Poço sem Fundo. Novas Reflexões sobre Literatura e História, Porto, Campo das Letras, 2005, p.48.

15 O Feliz Independente, “Prñlogo”, p.38. Sublinhado nosso. 16

Celia Fernández Prieto, Historia y Novela: Poética de la Novela Histórica, Pamplona, EUNSA, 1998, p.67.

especialmente pelos modelos de conduta veiculados, considerados impróprios para um público jovem e/ou feminino.17 Além disso, as preocupações com a verosimilhança do texto e com o seu afastamento do género “novela” levaram o autor a acrescentar inúmeras notas ao longo dos três tomos, especialmente na segunda edição, talvez numa tentativa de contornar as críticas de que a obra fora alvo em 1779. Nessas notas, remete para as fontes bibliográficas que corroboram o que afirma (com destaque para a Histoire

de Malthe, do Abade Verthot, e Anedoctes de Pologne), para passos da Bíblia, e para

explicações de carácter científico. Como conclui Zulmira Santos, o oratoriano

“parece ter querido prender O Feliz Independente simultaneamente à Sagrada Escritura, à “Histñria” e à “Ciência”, (...), como se pretendesse provar, em simultâneo, que se a redacção do “Poema” implicava uma gestão rigorosa de todos estes “saberes”, também não era independente deles. Revelava-se fiel à Sagrada Escritura, afastando presumìveis suspeitas de excessivo “estoicismo”, de que as primeiras censuras o tinham acusado. Ancorava a “diegese” na Histñria, aumentando o efeito de verosimilhança, ao contribuir para que o “Poema” não corresse riscos de confusão com as “novelas” que cruzavam o século. Patenteava uma erudição “cientìfica” que contribuìa para esse efeito de “verdade”, na medida em que cortava as amarras com efabulações criticáveis em outro tipo de textos.”18

Mas, ao lermos a obra, rapidamente concluímos que, apesar do esforço do Pe. Teodoro de Almeida e do Pe. Neves Pereira, muitos elementos criticáveis nas novelas também estão presentes n‟ O Feliz Independente. Logo no Tomo I, Livro II, assistimos à animização das Fúrias, que se reúnem para discutir a forma como hão-de perder o conde da Morávia, já em risco de conversão por Misseno19. Mais adiante, no Livro III, Misseno entra numa caverna de onde sai uma “luz estranha”; resolvido a “examinar a maravilha”, o protagonista descobre um “venerando velho, imñvel e de joelhos”, morto, rodeado por uma “inscrição pasmosa” (“Tu, Ulasdilau, darás a meu corpo sepultura; e nesse livro encontrarás o teu prémio e o teu modelo”), e um livro que conta as aventuras

17 Como vimos no capítulo respeitante às narrativas de cavalaria. Cf. Zulmira C. Santos, “Discurso do

Passado, Discursos do Presente: os cruzamentos da “histñria” em O Feliz Independente (1779) de Teodoro de Almeida”, in Maria de Fátima Marinho (org.), Literatura e História – Actas do Colóquio Internacional, Porto, Faculdade de Letras do Porto, Departamento de Estudos Portugueses e Românicos, 2004, vol.II, pp.217-219.

18 Zulmira da C. T. G. M. C. Santos, Literatura e Espiritualidade na obra de Teodoro de Almeida (1722-

1804), s/l., Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2007, pp.349-350.

de um herñi, “o mais famoso que viram os séculos”20

, na melhor tradição dos livros de cavalaria. No Livro V, vemos o tirano que governa Constantinopla procurar “o seu oráculo nos infernos”; para isso entra numa “subterrânea caverna, alta noite” e presta-se a um ritual de “horrores” digno de um romance gñtico...21

Mas voltemos ao Prólogo e, mais concretamente, à penúltima citação que apresentámos.Se a novela é descartada, como vimos, pela inverosimilhança em que cai frequentemente, o “poema em prosa” é valorizado pela utilidade do discurso, uma vez que salta à vista, como foi já dito, o carácter doutrinário do texto. Mas não só. Como explica Zulmira Santos, era “da natureza do poema épico, ainda por esses «iluminados» anos, essa intervenção ética sobre a realidade”, daì que o objectivo de Teodoro de Almeida fosse de “intervenção social, visando a circulação de modelos comportamentais, pautados pelas virtudes cristãs”22, e esse objectivo não era, de acordo com a crítica da época, cumprido pelas novelas. Pelo contrário, o poema épico estava apto a ensinar “doutrinas” de carácter moral: “dentro da noção setecentista de arte como técnica e método susceptível de melhorar a natureza, no sentido de ambiência humana, contribuindo para a ordem e utilidade social, o poema épico revelava-se, ainda, um instrumento privilegiado de intervenção reguladora.”23

Assim, de acordo com o raciocìnio de Neves Pereira, no “Discurso Preliminar”, o recurso a entidades alegñricas, a soluções “deus ex machina” e ao uso da “imaginação” para acrescentar à “histñria”, desde que pautados pela regra da obediência à verosimilhança, seriam processos legítimos no poema épico em prosa porque o seu objectivo final era fornecer um modelo de comportamento.24 Estavam, assim, justificados os momentos inverosímeis que apontámos acima.25 Então, e para concluirmos este assunto, as diferenças entre “novela” e “poema épico” não se centram apenas na questão da verosimilhança, mas abrangem também a dimensão moral, como se percebe pela pergunta de Zulmira Santos: “e que haveria de mais potencialmente «moralizador», desse ponto de vista [intervenção reguladora sobre a realidade], que os acidentes da vida e os estados de alma de um

20 Idem, pp.97-98.

21 Idem, p.138. 22

O Feliz Independente, “Introdução”, p.19.

23 Idem, “Introdução”, p.20.

24 Cf. Zulmira Santos, O Feliz Independente, “Introdução”, p.20. 25

Zulmira Santos, op. cit. (2007), p.352: “«prosa poética», que permite o recurso ao «maravilhoso», patente na animização das «Fúrias».”

príncipe que tinha sido rei e que voluntariamente optara pelo silêncio dos bosques da Silésia em detrimento da voracidade das cortes?”26

Concentremo-nos, agora, em alguns aspectos da narrativa. Para além da escolha de um protagonista com existência efectiva, de várias notas que atestam a veracidade do narrado e da referência a acontecimentos reais, de que outra forma convivem a História e a ficção neste texto? O primeiro tomo apresenta uma longa analepse na qual Misseno, um príncipe polaco exilado que vive sob uma identidade falsa nos bosques da Silésia, relata a sua história pessoal / a História em que foi interveniente, aos seus ouvintes, a princesa Sofia, viúva do ex-imperador de Constantinopla, e seu irmão, o conde da Morávia. Este relato é frequentemente interrompido para dar lugar a reflexões de carácter moral, que explicam a conversão do protagonista através da leitura das Sagradas Escrituras, particularmente do Livro de Job, e procuram conduzir as outras personagens ao caminho do “perfeito contentamento”27

. Rapidamente concluímos que a História acaba por servir como fonte de exemplos que Misseno pode indicar aos seus “discìpulos”, e de ponto de partida ou pretexto para a doutrinação. De entre todos os exemplos, destaca-se, em nosso entender, o de Aleixo, imperador de Constantinopla, e de Isaac Lange, imperador deposto e aprisionado28. A partir destas duas figuras, pode Misseno reflectir acerca da tirania e, logo, do mau uso do poder, e acerca da ingratidão dos homens. Logo aqui se instaura, pois, aquele que será o fio condutor que se “revela também o tema nuclear da narrativa: a reflexão sobre as várias formas de exercício do poder – legítimas e ilegítimas –, e as considerações daí decorrentes: os perigos das cortes, as “misérias” dos generais, a guerra justa, as controvérsias sobre a beleza feminina, o excessivo amor da glñria...”29

Este assunto é tratado de forma recorrente ao longo da narrativa, sendo transmitida uma imagem negativa do exercício do poder, mesmo quando é apresentada a diferença entre os maus e os bons validos, corporizada em Gowarek, modelo único de governação ideal presente n‟ O Feliz Independente30

, e Neucasis, valido mau, cuja acção governada por paixões tumultuosas conduz, em última análise, o conde da Morávia ao suicídio (Tomo III).

26 Idem, p.351.

27 O Feliz Independente, p.72. 28

Não referimos outros assuntos abordados neste tomo e que se prendem com a natureza da obra em questão, como, por exemplo, a oposição campo/ cidade (corte) (Livro II), a legitimidade das cruzadas (Livro IV), a glória ou miséria dos generais (Livro V), porque se afastam do nosso objecto principal.

29

Zulmira Santos, op. cit. (2007), p.354.

Assim, o uso do passado pode ser entendido como um espelho do presente, ou como o exemplo que legitima o presente,31 em vários aspectos: o afastamento de Vladislau devido a intrigas no seio da corte pode remeter para a deposição de Stanislas Leszczynsky após a guerra da sucessão (1733-1738)32; além disso, a Polónia viu-se confrontada, na primeira metade do século XVIII, com várias guerras e conflitos religiosos que aqueles retratados na narrativa de certa forma ecoam. Mas o exílio do protagonista pode ser visto, de certo modo, como autobiográfico, uma vez que o próprio Teodoro de Almeida teve de se exilar, primeiro no Porto, em 1760, depois em França, em 1768, vítima da perseguição do Marquês de Pombal. Ora, a esta mesma luz podemos interpretar a reflexão em torno dos maus validos, se tivermos em conta que, segundo a opinião dos Jesuítas, Sebastião José de Carvalho e Melo favoreceria as paixões de D. José e aconselhá-lo-ia mal.33 O comportamento do soberano seria, então, também, negativo, porque um rei tinha a obrigação de dominar as paixões e conhecer a natureza humana, de forma a não se deixar enganar por falsos validos. Vai neste sentido a conclusão de Zulmira Santos quando vê no texto “uma espécie de manifesto anti- pombalino”:

“Tantas considerações sobre os maus validos que exaltavam as paixões dos senhores em vez de contribuírem para o seu domínio, sobre os reis ingratos para com os súbditos, sobre poderes pautados pela violência sobre os povos, redigidos em anos em que T. de Almeida esperava pacientemente, mas como vimos, sujeito a uma enorme melancolia, a queda de Pombal, não podiam deixar de ser lidas, pelos contemporâneos, como marcas de uma opção crítica que aliás a reivindicação do Télémaque como modelo já fazia esperar.”34

Posto isto, e em conclusão, podemos, então dizer que neste tratado acerca da Felicidade, tema tão versado no século XVIII, se cruzam três “Histñrias”: a da Polñnia,

31

Nas palavras de Zulmira Santos, artigo citado (2004), p.221.

32 Zulmira Santos explica por que forma a devoção ao Sagrado Coração de Jesus aproxima Teodoro de

Almeida deste rei católico deposto. Veja-se o artigo citado (2004), pp.220-221.

33 Zulmira Santos, op. cit. (2007), p.361. Veja-se, a título de curiosidade, o que diz uma fonte da época:

“El-rei que em príncipe foi inclinado a divertimentos, os continuou depois de subir ao Trono. Sebastião José lhos facilitava, porque enquanto se entretinha neles, não ouvia, nem pensava em cousas de Estado, nem nos sucessos que aconteciam.” (José Mindlin, fl.340, citado em Nuno Gonçalo Monteiro, D. José. Na Sombra de Pombal, («Colecção Reis de Portugal»), Lisboa, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2006, p.212.)

a do próprio autor e, de forma implícita, a de Portugal naquele tempo.35 Mas estamos ainda longe do romance histórico oitocentista que valoriza a aprendizagem do passado glorioso de uma nação; O Feliz Independente convoca um tempo e um espaço longínquos e estranhos para o leitor português da época e não se demora na sua reconstituição. Em vez disso, o passado serve apenas de pano de fundo a uma obra cuja