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3. Informação, conhecimento e trabalho

3.2 A cooperação e o trabalhador coletivo

Esse tópico se inicia com a apresentação de pontos de vista que questionam os que alegam que, atualmente, cada vez mais, o trabalho de cunho intelectual distancia-se do trabalho de produção física, cabendo ao primeiro a primazia nas dinâmicas socioeconômicas contemporâneas, especialmente em relação à criação de valor. Em seguida, buscamos, a partir das ideias de Marx (especialmente dos conceitos de cooperação e trabalhador coletivo), construir uma crítica a essa postura que tende a assumir um caráter dualista.

Jeon (2010, 2012) é um dos autores que advoga que o trabalho de concepção não é uma forma independente e distinta do trabalho de execução e a que lei do valor consegue dar conta de ambos os casos. O autor tece crítica àqueles que postulam uma suposta hegemonia do trabalho do conhecimento em detrimento do trabalho produtor de mercadoria e afirma que o trabalho cognitivo (concepção) e o trabalho industrial (execução) não são formas distintas e independentes de trabalho. E explica que

Essa distinção entre concepção e execução é ontológica. [...] Apesar dos

feedbacks dos processos de 'aprender fazendo', a concepção sempre precede

a execução, mas, por sua vez, só pode se realizar através da execução (JEON, 2012, p.184).

Antunes (2005, 2007, 2009a, 2009b) e Amorim (2009) também apresentam contrapontos àqueles que flertam com visões dicotomistas segundo as quais, cada vez mais, o trabalho intelectual (concepção), que estaria em processo de dissociação do trabalho que produz bens físicos (execução), se tornaria a fonte exclusiva de valor.

Antunes (2009a, p.11) reconhece que as formas de aparecimento do trabalho imaterial, tomadas como manifestações do trabalho vivo contemporâneo, “são partes cada vez mais presentes e constitutivas do processo de valorização do valor”. No entanto, o autor nega dicotomias simplistas ao postular que, atualmente, o saber científico e o saber laboral inter- relacionam-se com crescente intensidade e que a potência criadora do trabalho vivo ainda tem “a forma dominante do trabalho material, em clara e crescente articulação com o trabalho imaterial”.

Segundo ao autor, Marx foi premonitório em sua abordagem da produção não material, considerada por ele uma forma muito limitada naquela época. Se na atualidade ela se hipertrofiou acentuadamente, prossegue Antunes (2009a), isso ocorreu como parte da engrenagem do capital, subsumida e dependente das formas dominantes dadas pela materialidade.

O autor defende que, atualmente, a imbricação entre trabalho material e imaterial é crescente e que ela se fortalece com a expansão das atividades dotadas de maior dimensão intelectual. Essa tendência, no entanto, não elimina a lei do valor, mas acrescenta a ela novos mecanismos:

A crescente imbricação entre trabalho material e imaterial, fortalecida pela ampliação das atividades dotadas de maior dimensão intelectual, tanto nas atividades industriais, quanto nos serviços ou nas tecnologias de informação e comunicação, conformam os elementos constitutivos da vigência contemporânea da lei do valor e seus novos mecanismos (ANTUNES, 2009a, p.11).

Voltemos à obra de Marx, buscando apreender como ele aborda o trabalho eminentemente intelectual, como o de concepção, e o trabalho de execução, voltado para a produção física.

Marx (1980a, p.202) reconhece a diferença entre esses dois tipos de trabalho na conhecida passagem em que compara o trabalho humano com o de outras espécies, atribuindo exclusivamente ao homem a capacidade de concepção prévia do trabalho a ser executado28.

Porém, apesar dessa distinção entre o trabalho de concepção e de execução, podemos afirmar que, segundo Marx, estes dois momentos formam uma unidade, tanto no nível do indivíduo produtor, como no sentido mais amplo da produção capitalista, ou seja, quando a produção e o trabalho são tomados em suas dimensões sociais.

No plano do indivíduo, o filósofo afirma que todo trabalho, independentemente do tipo de ofício, representa um esforço simultaneamente físico e intelectual:

Por mais que se diferenciem os trabalhos úteis ou atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são funções do organismo humano e que cada uma dessas funções, qualquer que seja seu conteúdo ou forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. humanos (MARX, 1980a, p.80).

Em diferente passagem, o autor volta a expor ideia semelhante sobre o processo de trabalho no nível puramente individual. Marx afirma que “o homem isolado não pode atuar sobre a natureza, sem pôr em ação seus músculos sob o controle do deu cérebro. Fisiologicamente, [...] o processo de trabalho conjuga o trabalho do cérebro e das mãos” (MARX, 1980b, p.584).

28

Segundo Marx (1980a, p.202), "Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais do que um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador".

Ao abordar a dimensão social da produção e do trabalho, o filósofo apresenta os conceitos de ‘cooperação’ (MARX, 1980a, 2010a) e de ‘trabalhador coletivo’ (MARX, 1980a, 1980b, 2004), que estão inter-relacionados.

A categoria cooperação é definida pelo autor como "a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos" (MARX, 1980a, p.374).

Marx afirma que, nesse caso, não se trata da simples ampliação da força produtiva individual, mas sim da criação de uma nova força produtiva, designada força coletiva, que transforma a produção, pois "o trabalhador coletivo tem olhos e mãos em todas as direções e possui, dentro de certo limite, o dom da ubiquidade”. Com a cooperação, “concluem-se ao mesmo tempo diversas partes do produto que estão separadas no espaço" (MARX, 1980a, p.376).

Marx destaca que, na cooperação, a produtividade da jornada de trabalho coletiva é a força produtiva social do trabalho ou a força do trabalho social. Alega também que o trabalho coletivo permite a ampliação da produtividade por vários motivos, em que estão incluídas também razões de ordem simbólica e motivacional:

A jornada coletiva tem essa maior produtividade ou por ter elevado a potência mecânica do trabalho, ou por ter ampliado o espaço em que atua o trabalho, ou por ter reduzido esse espaço em relação à escala de produção, ou por mobilizar muito trabalho no momento crítico, ou por despertar a emulação entre indivíduos e animá-los, ou por imprimir às tarefas semelhantes de muitos o cunho da continuidade e da multiformidade, ou por realizar diversas operações ao mesmo tempo, ou por poupar os meios de produção em virtude do seu uso em comum, ou por emprestar ao trabalho individual o caráter de trabalho social médio (MARX, 1980a, p.378).

Importante destacar que, segundo o ponto de vista do autor, a cooperação não se faz presente apenas no capitalismo, mas também em outros modos de produção anteriores, inclusive na antiguidade. Porém, a plena exploração da cooperação se dá no modo de produção capitalista, quando passa a atuar, simultaneamente, um "grande número de trabalhadores, no mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadoria, sob o comando do mesmo capitalista" (MARX, 1980a, p.370).

Nota-se que a cooperação abordada por Marx (1980a, 2010a) pode ser confrontada com a tese daqueles que afirmam que o trabalho levado a cabo por meio das redes sociotécnicas contemporâneas fomenta uma crise capitalista e traz a perspectiva real de emancipação do trabalho sobre o capital.

Em direção contrária, a análise de Marx sugere que, no capitalismo, o poder e a força do trabalho cooperativo pertencem ao capitalista, atue ele isoladamente ou "como capitalista coletivo em associações como a sociedade anônima" (MARX, 1980a, p.383).

Segundo ele, o modo de produção capitalista se apresenta como necessidade histórica de transformar o processo de trabalho em um processo social para ampliar a força produtiva do trabalho e, a partir daí, gerar mais lucro (MARX, 1980a, p.384).

Já a categoria trabalhador coletivo (MARX, 1980a, 1980b, 2004) estabelece relevante diálogo com a noção de cooperação e acrescenta importantes aspectos ao debate, pois expõe um prisma, segundo o qual, no trabalho, estão integrados tanto o labor intelectual, quanto o físico, dentro de uma lógica voltada para a produção de valor. De acordo com concepção de trabalhador coletivo, a força de trabalho inclui a capacidade de realizar trabalho procedente de diferentes categorias profissionais, que vão desde as atividades manuais até as atividades em que predomina o uso do intelecto e da cognição humana.

O produto deixa de ser o resultado imediato da atividade do produtor individual para tornar-se produto social, comum, de um trabalhador coletivo, isto é, de uma combinação de trabalhadores, podendo ser direta ou indireta a participação de cada um deles na manipulação do objeto sobre o qual incide o trabalho (MARX, 1980b, p.584).

Segundo Marx (2004), esse caráter social do trabalho, característico do modo de produção especificamente capitalista, surge na medida em que o capitalista requer maiores valores para seus empreendimentos e precisa ser proprietário dos meios de produção numa escala social, numa quantidade de valor que perde toda a relação com a produção individual ou familiar. Com o aumento da quantidade de valor do capital, este atinge dimensões sociais, ou seja, fica despojado de todo e qualquer caráter individual. Nos termos do autor,

A categoria trabalhador coletivo está inserida no contexto em que se acentua o crescimento da produção, exigindo um maior volume do capital e uma grande massa de operários ocupados simultaneamente. Surge, assim, uma força produtiva do trabalho objetivado, em oposição às atividades laborais mais ou menos isoladas dos indivíduos dispersos (MARX, 2004, p.93).

Assim, o operário individual não será mais agente real do processo de trabalho no seu conjunto, sendo substituído pelo trabalhador coletivo e sua capacidade de trabalho socialmente combinada (MARX, 2004).

Segundo essa definição marxiana, as diversas capacidades de trabalho cooperam e formam a máquina produtiva total. Elas participam do processo produtivo de diferentes maneiras, pois nele estão incluídos diversos agentes que lidam não só com o trabalho manual,

mas também com o trabalho intelectual, a exemplo do diretor, do engenheiro, do técnico, do capataz e do servente (MARX, 1980b, 2004).

Conforme explica Paula (2011a), com a categoria trabalhador coletivo, Marx enfatiza que o sujeito do trabalho produtivo não é uma massa homogênea de trabalhadores manuais. O trabalhador coletivo representa um corpo coletivo heterogêneo e complexo em que estão incluídos vários trabalhadores que se envolvem de diferentes maneiras com as atividades manuais e intelectuais, como o peão do chão de fábrica, o ajudante, o auxiliar, o gerente, o supervisor e o engenheiro. No trabalhador coletivo, estão incorporados necessariamente empregados que têm formação superior e qualificação técnica, sem que haja exclusão entre os trabalhadores manuais e intelectuais.

Marx (2004) destaca o caráter dinâmico do processo de constituição do trabalhador coletivo, ao qual são incorporadas, cada vez em maior número, as funções da capacidade de trabalho e seus diferentes agentes. Sugere, assim, que o trabalhador coletivo não tem composição estática, sendo antes um corpo social dinâmico em permanente transformação.

Nesse âmbito do trabalho tomado em sua dimensão social, o autor afirma que o trabalho do cérebro e o trabalho das mãos “se apartam e acabam por se tornar hostilmente contrários” (MARX, 1980b, p.584). Em outra passagem, ao abordar o desenvolvimento da indústria fundamentada na maquinaria, Marx afirma que surge “a separação entre as forças intelectuais do processo de produção” (MARX, 1980a, p.484).

No entanto, apesar do que sugerem essas duas citações, é possível afirmar que, para Marx (1980b, 2004), tanto os trabalhos em que predomina a atividade manual, quanto aqueles em que predomina o uso do intelecto, compõem uma unidade dentro do conceito de trabalhador coletivo. Nos termos de Marx, a atividade combinada do trabalhador coletivo

realiza-se materialmente e de maneira direta num produto total que, simultaneamente, é uma massa total de mercadorias e aqui é absolutamente indiferente a função deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto (Marx, 2004, p.110).

Marx (1980b, p. 584) afirma ainda que os conceitos de trabalho produtivo e trabalhador produtivo se ampliam em virtude do caráter cooperativo do processo de trabalho. A produtividade do trabalho independe de qual das funções fracionárias o trabalhador individual executa quando ele é apenas um dos órgãos do trabalhador coletivo:

Para trabalhar produtivamente não é mais necessário executar uma tarefa de manipulação de um objeto de trabalho; basta ser órgão do trabalhador coletivo, exercendo qualquer uma das suas funções fracionárias (MARX, 1980b, p.584).

Podemos afirmar, portanto, que Marx, ao abordar o trabalho e a produção capitalista, nega visões dicotômicas que apartam o trabalho braçal do trabalho mental, tanto no nível da produção individual, quanto da produção social.

A essa visão unitária do trabalho, que destaca a integração entre produção física e produção intelectual, Marx acrescenta algumas importantes reflexões sobre a expansão do emprego da ciência no processo imediato de produção, que se dá com a evolução do capitalismo.

O autor destaca que uma das características fundantes do modo de produção especificamente capitalista é a incorporação da ciência - produto intelectual coletivo do desenvolvimento social - à produção. Mas, para o filósofo, o conhecimento científico estava sendo, em seu tempo, incorporado à produção como força produtiva do capital e não do trabalho. E quando a ciência é incorporada ao trabalho, as potências intelectuais do processo laboral tornam-se estranhas ao trabalhador, ou seja, tornam-se alienadas do sujeito que executa o trabalho e não mais lhe pertencem (MARX, 1980a, 1980b, 2004).

Neste aspecto, é possível afirmar que Marx (1980a, p.414) concordava com Thompson (1824):

a ciência, em vez de permanecer em poder do trabalho, em mãos do trabalhador para aumentar suas forças produtivas em seu benefício, colocou- se contra ele em quase toda parte... O conhecimento torna-se um instrumento que pode se separar do trabalho e se opor a ele (THOMPSON, 1824, p. 274).

Esse ponto de vista de Marx se mostra distante dos argumentos daqueles que discutem as relações de produção atuais sem enfatizar devidamente os conflitos e desarmonias que giram em torno da informação e do conhecimento. Evidencia o fato de que a esfera do trabalho tem sido historicamente marcada por interesses divergentes e contradições que exigem a ação política consciente das classes sociais.

Podemos afirmar, portanto, que o conceito de trabalhador coletivo privilegia questões que não têm recebido a merecida ênfase nas teorias do trabalho imaterial e do capitalismo cognitivo. Essas teorias, ao privilegiarem o caráter emancipatório da informação do conhecimento no mundo atual, distanciam-se da realidade conflituosa e desigual da sociedade em que vivemos. Relegando essa contradição capitalista para o segundo plano, acabam por propalar a crença de que uma suposta livre circulação da informação e do conhecimento por meio das redes eletrônicas coloca o capitalismo em crise e induz a emancipação do trabalhador, numa espécie de autodestruição espontânea desse modo de produção.

Divergindo desse posicionamento, Paula (2011a) afirma que, com o capitalismo, nasce um problema que continua plenamente vigente na atualidade: a informação e o conhecimento permanecem hoje submetidos ao capital e ao interesse da produção. Torna-se necessário, portanto, fazer do conhecimento não um reforço e uma reiteração de relações de dominação, mas sim uma chave para abertura de novas possibilidades que se impõem como forma de emancipação do trabalho e, em consequência, da sociedade. Segundo o autor, Marx nos coloca a questão de como organizar esse corpo coletivo de trabalho para superar as contradições do capitalismo, apesar das diferenças de qualificação, formação e acesso ao conhecimento que ele guarda. Mas essa questão não está no plano material, pois todos os trabalhadores, sejam eles qualificados ou não qualificados, são parte do mesmo corpo coletivo de trabalho.

Esse ponto de vista enseja um resgate histórico e uma análise do contraditório papel da informação e do conhecimento no universo do trabalho e, em especial, seu papel no controle do trabalho e da produção.