• Nenhum resultado encontrado

2. Economia da informação e do conhecimento

2.9 Em defesa da teoria do valor

Conforme mostra o percurso teórico trilhado até aqui, na arena da Economia Política da Informação e do Conhecimento, muitos autores argumentam que a teoria do valor concebida por Marx assim como as abordagens da Economia Política clássica têm perdido a relevância e o caráter explicativo. Para sustentar essa afirmativa, alegam que supostas revoluções nas premissas do capitalismo estariam sendo catalisadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação e pela expansão da produção e da circulação de intangíveis.

23

O princípio da neutralidade da rede, incorporado à Internet em seus primórdios, estabelece que os responsáveis pela infraestrutura da rede e seus serviços não podem discriminar conteúdos que nela circulam, nem aplicar filtros que discriminem parâmetros como a identificação do usuário, origem e destino da transmissão, conteúdo transmitido, software e hardware adotados. Segundo essa concepção, que também é chamada de princípio da não discriminação, todos os conteúdos devem ser tratados com isonomia pela infraestrutura da rede e seus usuários devem estar livres de interferência (MARQUES, KERR PINHEIRO, 2014).

Contra esse ponto de vista, levantam-se autores que têm se debruçado sobre essa problemática e seguem defendendo a importância da teoria do valor marxiana e seu mérito como instrumento revelador da essência do modo de produção capitalista.

Paula (1984) destaca que não é novo o esforço para se desvendar o enigma do valor, nos termos de Marx (1980a), dos bens que satisfazem "o estômago ou a fantasia". O embate entre os defensores do ponto de vista de Marx e seus críticos está inserido numa polêmica que, historicamente, tem se dividido em duas correntes, a objetiva e a subjetiva:

Desde a sua gênese, a problemática do valor se tem debatido a partir de dois grandes veios: a vertente objetiva e a vertente subjetiva na explicação do valor. [...] De um lado, os que pretendem estar o valor ancorado na subjetividade da apreciação individual dos objetos. De outro, os que entendem o valor como realidade anterior à exposição no mercado, que veem no valor a expressão da produção social, do trabalho humano (PAULA, 1984, p.114).

Segundo o autor, muitos dos argumentos daqueles que se opõem a essa teoria de Marx refletem uma postura estritamente clássica posto que, ao abordá-la, fica-se preso à dimensão da medida, da magnitude. Contra esse tipo de postura científica, Paula (1984) defende que

Os que cobram do valor equivalência perfeita e absoluto equilíbrio estão como que prisioneiros da ideia das formas perfeitas. Não se dão conta de que as deformações [...] são tão "bons" sistemas de referência quanto os sistemas das formas perfeitas. Os permanentes desvios dos preços com relação aos valores só são problemas para os que querem o valor como forma perfeita. A realidade do valor produz e reproduz estes desvios, eles não maculam qualquer ordem perfeita, equivalência absoluta, senão que expressam o próprio movimento do valor, são na verdade os motores do processo de movimento do capital, da distribuição de capital e trabalho, da reprodução material da sociedade (PAULA, 1984, p. 131).

Paula (1984) advoga a atualidade e a pertinência da teoria do valor desde que respeitados os contornos para os quais ela foi concebida. Aplicar a teoria do valor fora do universo da mercadoria representa, segundo o autor, empregá-la em uma esfera na qual ela não tem caráter explicativo. Portanto, de acordo esse ponto de vista, é preciso definir o complexo conjunto de exigências que permite que seja atribuído a um bem o status de mercadoria. Esse rol de exigências estabelece os limites dentro dos quais a lei do valor funciona plenamente.

O autor argumenta que, segundo as concepções de Marx, para que um bem assuma o caráter de mercadoria, algumas condições devem ser satisfeitas: (i) o bem tem que ser útil e essa utilidade é socialmente definida; (ii) tem que ser produzido pelo trabalho humano, o que exclui o ar, a água dos rios, matas nativas, terras não cultivadas, etc; (iii) deve ser produzido para o mercado, o que exclui os bens produzidos para o autoconsumo; (iv) tem que ser

produzindo segundo relações capitalistas de produção, isto é, segundo as regras do modo de produção capitalista, por meio da troca de trabalho por capital, eliminando, por exemplo, os bens produzidos pelo Estado (PAULA, 1984).

Paula (1984) adota como referência a obra de Preobrajensky (1979) ao defender que a plena expressão da lei do valor somente se dá na presença de algumas exigências: liberdade de circulação das mercadorias, existência de mercado de trabalho livre, mínima intervenção e participação do Estado, inexistência de mecanismos de regulamentação de preços, plena liberdade de concorrência. No entanto, como a realidade econômica contemporânea difere dessas condições, a vigência da lei do valor é constrangida e expande-se a produção de riqueza a partir das rendas de monopólio:

Estas exigências, o sabemos, não são respeitadas hoje no chamado "capitalismo monopolista". Forte protecionismo impede a livre circulação de mercadorias, também o livre fluxo de trabalhadores é bloqueado por exigências legais nos casos migratórios, por problemas de localização das atividades econômicas. O Estado é hoje tanto grande produtor quanto tem uma ampla gama de funções normativas interventoras, além de grande comprador, tem assim grande influência sobre a demanda global. Ao nível dos preços vigora a cartelização formal ou informal, vigora a ação das grandes corporações e sua capacidade de administrar preços, há também a ação dos sindicatos que em muitos países e períodos são capazes de afetar os níveis salariais. Finalmente, a realidade do capitalismo contemporâneo é a presença hegemônica dos monopólios, dos oligopólios, a concentração e a centralização do capital. Tais novas condições não significam a eliminação da concorrência, senão que sua transformação não mais se processará através da guerra de preços. A face do capitalismo contemporâneo revela os traços de um novo caráter, o gigantismo das grandes empresas, dos conglomerados, a extraordinária presença do Estado na economia, a formidável expansão do capital financeiro. Abalada, bloqueada a lei do valor se limita, incapaz de exercitar suas funções (PAULA, 1984, p.132).

Amorim (2009) alega que grande parte das críticas à concepção de Marx sobre o valor reflete interpretações que enxergam nela a perspectiva de quantificar exatamente o valor incorporado às mercadorias, mensurá-lo matematicamente e fazer predições sobre ele. Essas leituras pressupõe que Marx apresenta um tipo de cálculo contabilístico do valor do trabalho e, partindo dessa premissa, afirmam que esse cálculo não seria mais possível hoje, pois a geração de mais-valia estaria a cargo dos agentes que executam trabalhos não manuais, ditos cognitivos ou imateriais (AMORIM, 2009, p.27).

No entanto, destaca Amorim (2009, p.29), essa perspectiva não foi desenvolvida por Marx. Restringir a análise do valor de Marx "a um esquema objetivista da determinação das relações sociais que fundamentam a produção do tipo capitalista seria reduzi-la a uma teoria economicista do capitalismo". A intenção de Marx, com a crítica da Economia Política

clássica, foi a superação de visões naturalizadoras e monetaristas acerca do capitalismo. Negando o economicismo, Marx contestou "o princípio da neutralidade da ciência positiva, que pretendia mostrar como as relações capitalistas estruturavam-se objetivamente, bem como de que forma operavam" (AMORIM, 2009, p.30). Para o filósofo alemão, a explicação das relações econômicas exige ir além da esfera econômica.

Ao analisar as teorias do trabalho imaterial, Santos (2013) concorda com os autores que alegam não ser viável quantificar, do ponto de vista da mensuração empírica, os elementos envolvidos no processo de trabalho imaterial. No entanto, o autor contradiz essa corrente teórica24ao afirmar que Marx não desenvolveu uma teoria quantitativista do valor. Ao contrário, ele rompeu com o quantitativismo que marcava a economia política clássica, a exemplo das abordagens de Adam Smith e David Ricardo. Adicionalmente, Santos (2013) afirma que Marx não pressupõe a necessidade de o valor existir em mercadorias materiais. Esses argumentos fundamentam a defesa que esse autor faz da pertinência da lei do valor marxiana para análise do trabalho imaterial contemporâneo.

Essa controvérsia não é nova. Nas primeiras décadas do século XX, Rubin (1987) teceu críticas àqueles que discutiam a teoria marxiana do valor apenas em termos quantitativos, sem levar em conta sua dimensão qualitativa. Segundo o autor, enquanto os predecessores de Marx voltaram sua atenção para o aspecto quantitativo do conteúdo do valor (o trabalho e a magnitude do valor), o filósofo alemão avançou ao destacar em sua análise o aspecto qualitativo do trabalho e do valor, considerando esse um aspecto específico da economia capitalista. Para Rubin (1987, p.136), “é precisamente a análise da ‘forma-valor’ que confere um caráter sociológico e traços específicos ao conceito de valor”.

De acordo com o autor, a grandiosidade da teoria do valor concebida por Marx decorre do fato de que ele forneceu uma síntese de duas definições de valor. Por um lado, o valor é tomado como “expressão material das relações de produção entre as pessoas” e, por outro lado, o valor é tomado como “uma magnitude determinada pela quantidade de trabalho ou tempo de trabalho” (RUBIN, 1987, p.135).

Em semelhante direção, Lima (1999) afirma que grande parte das críticas endereçadas às teorias de Marx se fundamentam em concepções reducionistas da natureza do trabalho e acabam por apresentar Marx como continuador de Smith e Ricardo, na medida em que ele é acusado de buscar uma medida objetiva do valor e das trocas econômicas.

24

Santos (2013) cita os textos de Lazzarato, Negri (2001), Gorz (2005), Hardt, Negri (2002), Lazzarato (2006), dentre outros.

Segundo esse autor, as críticas a Marx desvirtuam a natureza da categoria força de trabalho, pois reduzem a complexidade do seu conteúdo a uma simples medida do valor, mais próxima do trabalho abstrato do que do trabalho concreto. A categoria força de trabalho, prossegue Lima (1999, p.1), não deve ser tomada como uma simples categoria econômica que expressa a domínio do capital sobre o trabalho, mas como "um lugar de contradições entre o processo de valorização e os aspectos subjetivos do processo de trabalho".

A análise rigorosa do texto de Marx revela que a discussão sobre a quantificação do valor da força de trabalho e sua manifestação na forma de salário não justificam que a força de trabalho seja tomada como uma categoria exclusivamente econômica. Assim, seria infundada a afirmativa de que a medida do valor deixou de valer, pois essa medida não teria nunca existido efetivamente (LIMA, 1999).

De fato, o valor nunca foi mecanismo efetivo de regulação, na medida em que categorias econômicas não podem ser realmente ativas. Deste modo, não pode deixar de ser efetivo algo que nunca o foi. O que falta neste contexto é uma exata compreensão de como interagem as categorias que estão em oposição no interior de uma unidade contraditória (LIMA, 1999, p.4).

A respeito da incompreensão das categorias econômicas desenvolvidas por Marx, Rosdolsky (2001) destaca que elas representam relações reais e não foram deduzidas por meio de um tratamento meramente lógico, mas também por uma análise do desenvolvimento histórico. Seguindo esse princípio metodológico que Marx adota em várias passagens da sua obra, a dedução lógica é oferecida em paralelo com a dedução histórica, e os resultados da análise abstrata são confrontados com o desenvolvimento histórico efetivo.

Rubin (1987) defende que a força da teoria marxiana do valor não reside tanto na sua consistência lógica interna, mas sim no fato da sua teoria ser fundamentada em um complexo e rico conteúdo socioeconômico que tem origem na realidade e é enriquecido pelo pensamento abstrato. Na obra de Marx, “um conceito transforma-se em outro não em termos do poder de desenvolvimento lógico imanente, mas pela presença de uma série completa de condições socioeconômicas concomitantes” (RUBIN, 1987, p.105-106).

Amorim (2009) e Antunes (2009a) condenam ainda as formulações que ficam presas ao aspecto tecnicista das transformações socioeconômicas em curso no capitalismo. Os autores tecem críticas às teorias que constroem suas hipóteses a partir de fragmentos dos

Grundrisse, sem, no entanto, incorporar o princípio de que a emancipação do trabalho é

A possibilidade de liberação do trabalhador coletivo das amarras do tempo de trabalho, argumenta Amorim (2009, p.25), só seria viável a partir de uma transformação geral da sociedade capaz de instituir "uma transformação radical dos interesses das classes em presença, o que, portanto, caracterizaria a necessidade de reorganização da política, dos objetivos políticos gerais que orientam a construção da sociedade”.

Amorim (2009) rejeita a adoção do conceito de pós-grande indústria no sentido de um novo quadro revolucionário-libertador da classe trabalhadora. O autor reconhece que a socialização crescente das forças produtivas e os limites das relações produtivas no capitalismo geram as bases para uma eventual ruptura. No entanto, enfatiza Amorim (2009, p.49), o problema estaria em “analisar formações sociais específicas, cujas classes sociais pudessem tomar proveito dessas contradições econômico-sociais hoje presentes”.

O autor afirma que é um equívoco pressupor que as formas de libertação do trabalho possam se consolidar ainda na sociedade capitalista. Ele nega também a existência de uma determinação intrínseca à ruptura, ou seja, nega a possibilidade de autorruptura do sistema, pois para tal seria necessária “a constituição de sujeitos revolucionários, num quadro de antagonismo direto entre as classes sociais, ou de um movimento social organizado em torno de um programa político revolucionário” (AMORIM, 2009, p.51)

Segundo o ponto de vista desse autor, também endossado por Antunes (2009), a adoção dos Grundrisse como referência para qualquer construção teórica exige o emprego simultâneo da teoria da luta de classes, pois, do contrário, estaríamos diante de um pensamento marxista desfigurado.

Lima (1999) acrescenta, como fonte de desacertos cometidos pelos críticos de Marx, a incompreensão da forma de exposição e do método de investigação do filósofo alemão. A abordagem do capital no nível abstrato, apresentada nos capítulos iniciais d'O Capital, privilegia as relações e mecanismos econômicos em sua forma pura, segundo a lógica imanente do valor, sem os efeitos perturbadores que são incorporados à construção teórica na medida em que avança a exposição de Marx. Portanto, falsas conclusões e críticas a Marx surgem quando a parte é tomada pelo todo, ou seja, quando algumas passagens descontextualizadas do conjunto da obra marxiana são sobrevalorizadas, especialmente quando o autor privilegia a dimensão abstrata.

Em suma, a defesa da pertinência e da atualidade da lei do valor pode ser sustentada pelos diferentes pontos de vista dos autores aqui analisados. Apesar das particularidades destacadas por cada um deles, nota-se um ponto em comum que une essas reflexões: todos

eles alegam que as críticas endereçadas à lei do valor marxiana se baseiam em leituras limitadas ou distorcidas do arcabouço teórico de Marx e das suas categorias analíticas.

O debate sobre a vigência da lei do valor na era da informação coloca-se como um desafio para a Economia Política da Informação e do Conhecimento. Essa questão voltará a ser objeto da nossa análise no próximo capítulo, quando discutiremos as metamorfoses do trabalho no século XXI. Antes de atingir essa questão, porém, será necessário trilhar um percurso expositivo que aborda diferentes interlocuções entre os temas informação, conhecimento e trabalho.