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2. Economia da informação e do conhecimento

2.7 Capitalismo imaterial

Herscovici (2014) tece críticas a alguns autores que defendem a chamada economia criativa, corrente teórica que ressalta que as atividades imateriais têm peso crescente na economia e são a principal fonte de crescimento econômico. Para o autor, essas teorias não dão conta dos atuais mecanismos micro e macroeconômicos envolvidos na economia do intangível.

Herscovici (2010) também contrapõe seus argumentos aos dos autores que, a exemplo de Antônio Negri, afirmam que a economia do conhecimento representa a superação do capitalismo, haja vista que a informação e o conhecimento estariam atualmente acessíveis a todos os cidadãos.18

O autor nega visões apologéticas acerca da sociedade da informação ao afirmar que ela "não produziu rupturas sociológicas, antropológicas e econômicas radicais em relação ao modo de produção capitalista". A sociedade da informação corresponderia apenas "às modificações sociológicas e econômicas necessárias em função das novas necessidades do sistema" (HERSCOVICI, 2003a, p.42 e 56).

O termo ‘capitalismo imaterial’ é proposto por Herscovici (2014) para designar a realidade atual, quando a extensão da lógica capitalista avança cada vez mais para áreas da

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produção social até então não reguladas pela lógica mercantil. Nesse cenário, “os elementos econômicos que eram considerados específicos aos bens culturais e imateriais durante o fordismo estão se generalizando para a maior parte das atividades econômicas” (HERSCOVICI, 2014, p.77).

O capitalismo imaterial, também designado pelo autor capitalismo pós-industrial, é a fase avançada do capitalismo, durante a qual o "general intellect se manifesta pela produção de bens e ativos intangíveis, ou seja, imateriais" (HERSCOVICI, 2014, p.93). Segundo o autor, o capitalismo pós-industrial, assim como o capitalismo pré-industrial, apresentam algumas características em comum. Ambos representam cenários marcados por mecanismos aleatórios de valorização, forte dimensão especulativa, ausência de relação entre custos e preços, bem como ausência de preços reguladores.

Herscovici (2010, 2014) afirma que, na economia digital, uma parte relevante da produção escapa da lógica de mercado, como, por exemplo, na economia “solidária” e cooperativa. Nesse mesmo sentido, Herscovici e Bolaño (2005) explicam que a intensificação da socialização dos processos produtivos evidencia o surgimento de

outras modalidades de organização social da produção e do consumo ligadas às estruturas cooperativas ou semissolidárias, as quais permitem uma internalização forte das externalidades produzidas por esse tipo de atividades (HERSCOVICI, BOLAÑO, 2005, p.23).

Os desenvolvimentos de softwares livres como Linux e das licenças de copyleft ilustram essa perspectiva. A criação e o desenvolvimento deste tipo de programa evocam uma redefinição da dicotomia entre o mercantil e o não mercantil, ou seja, traz a possibilidade de novas articulações entre o elemento econômico e o extraeconômico. Em tese, essas iniciativas correspondem à publicização da informação e poderiam desestabilizar os oligopólios existentes (HERSCOVICI, 2003a; 2004; 2005; HERSCOVICI E BOLAÑO, 2005).

No entanto, essas formas não diretamente mercantis se desenvolvem no seio de uma lógica de acumulação capitalista particularmente excludente, que caracteriza o momento atual e que limita, obrigatoriamente, as modalidades de apropriação desses bens e serviços (HERSCOVICI, BOLAÑO, 2005, p.23).

Herscovici (2010) ressalta que, no atual desenvolvimento capitalista, a lógica do mercado está em expansão. Mas esse avanço, prossegue ele, é implementado “fora a forma mercadoria”, ou seja, estaríamos “presenciando o fim do reino e da generalização da mercadoria, no sentido definido por Marx” (HERSCOVICI, 2014, p.93).

O autor adota as reflexões de Braudel (2009) para sustentar a tese de que, na atual fase do capitalismo, a lógica de apropriação privada que permite a valorização do capital dinheiro

não estaria necessariamente ligada à produção de mercadorias. A análise braudeliana nega que o capitalismo seja intrinsecamente industrial, destacando que ele teria se tornado efetivamente industrial apenas no século XIX. Durante o renascimento, o capitalismo não se desenvolvia através das atividades ligadas à produção material, mas sim, das atividades ligadas às relações comerciais e às finanças internacionais.

A análise do pós-fordismo, defende Herscovici (2014), exige a construção de novas ferramentas analíticas, novas categorias e novas hipóteses que vão além do arcabouço teórico concebido por Marx. Trata-se de ir além dos limites da teoria do valor apontados pelo próprio Marx nos Grundrisse.

Herscovici (2014) advoga a historicidade da teoria do valor, ou seja, defende que ela é aplicável à fase industrial do capitalismo. Tanto na fase pré-industrial quando na fase pós- industrial, a teoria do valor não seria capaz de explicar a produção e a distribuição do valor.

Surgem atualmente modificações radicais em relação às modalidades de criação de valor na economia do imaterial, em que são desenvolvidas diferentes formas de capital intangível. O valor estaria se tornando cada vez mais abstrato, pois não pode ser avaliado a partir de uma base objetiva. O trabalho teria deixado de ser a fonte de riqueza, ou seja, "o trabalho abstrato deixa de determinar o valor dos bens, e a produção social (que Marx chama de riqueza) se manifesta na forma de capital intangível, por natureza, imaterial" (HERSCOVICI, 2014, p.93).

Em boa parte da produção imaterial, a exemplo da produção cultural 19, não há relação entre custo de produção e preço ou receita. A valorização econômica assume um caráter aleatório, ou seja, ela não depende da quantidade de trabalho empregado na sua produção.

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No livro Economia da Cultura e da Comunicação (HERSCOVICI, 1995), o autor aborda a problemática do valor na economia da cultura e nos trabalhos artísticos. O autor concorda com outros comentadores da obra de Marx, ao reconhecer que a teoria do valor não foi concebida para ser aplicada a uma obra de arte considerada única. A aleatoriedade da valorização econômica de um bem cultural é atribuída ao seu valor de uso, ou seja, ao capital simbólico, conforme definido por Bourdieu. Nos termos Herscovici (1995, p.167): “O valor de uso do produto cultural, sua capacidade de atender ou de criar uma necessidade, provém do funcionamento do campo e, portanto, das modalidades de acumulação simbólica. Um criador só conseguirá criar valores de usos sociais na medida em que conseguir “fazer um nome”, ou seja, criar uma necessidade para seus produtos. O valor de uso e o preço são aleatórios na medida em que não podemos prever se tal efeito de diferenciação aparecerá ou se provocará um processo de legitimação/deslegitimação. Da mesma forma, não é possível determinar o tempo necessário para o eventual aparecimento deste tipo de processo. Este último ponto explica a especulação que ocorre no mercado das Artes Plásticas e que é proveniente dessas defasagens temporais”. Herscovici (1995, p.169-170) afirma também que, mesmo no caso de um produto cultural que seja reprodutível industrialmente, este não adquire o status de mercadoria, pois: (i) o trabalho abstrato contido nesse produto não explica sua valorização econômica; (ii) os produtos culturais podem adquirir a forma mercadoria ou a forma preço, ainda que não possuam valor de troca, ou seja, a forma preço torna-se autônoma em relação à forma valor; (iii) a lei do valor não regula a economia cultural. A ação anárquica da oferta e da demanda determina os preços de mercado. Não existe relação entre o nível dos preços de produção e os custos de produção; (iv) trata-se de um processo que “se insere numa tendência mais geral, em que o capital social, para poder resolver suas contradições, desenvolve formas não capitalistas onde predomina o valor de uso”.

Nesse caso, o trabalho socialmente necessário, ou trabalho social, não explicaria mais os mecanismos de valorização (HERSCOVICI, 2014).

No âmbito da “economia digital”, afirma Herscovici (2014), “a partir dos mecanismos econômicos próprios à economia das redes, a criação de valor está diretamente ligada à criação de efeitos de redes, ou seja, de utilidade social". Esse tipo de utilidade social surge quando

um número mínimo de usuários a partir do qual o serviço apresenta uma certa utilidade para cada consumidor. Uma vez alcançado um número mínimo de usuários/consumidores, a rede pode rentabilizar sua atividade valorizando as diferentes modalidades de acesso aos usuários (HERSCOVICI, 2010, p.7).

O exemplo da venda de espaço publicitário nas redes, como no Google, ilustra essa modalidade de valorização, que é apropriada pela firma proprietária ou controladora da rede (HERSCOVICI, 2010, 2013, 2014).

O autor destaca a centralidade do direito de propriedade intelectual no capitalismo pós-industrial como exemplo de uma extensão da lógica capitalista para áreas sociais que antes pertenciam à vida material. Segundo Herscovici (2014), surge aí um paradoxo, pois o direito de propriedade limita o consumo individual de usuários e, consequentemente, limita as dinâmicas de criação de valor. Adicionalmente, a legislação voltada para a restrição do acesso à informação e ao conhecimento que circulam na Internet, dado seu caráter cumulativo, tem como implicação a diminuição do progresso científico e tecnológico, pois limita as externalidades positivas geradas neste tipo de atividades (HERSCOVICI, 2004; HERSCOVICI E BOLAÑO, 2005).20

Herscovici (2012) destaca que, de acordo com a jurisprudência norte-americana e europeia, os direitos de propriedade intelectual se relacionam com processos definidos genericamente (sem aplicações previsíveis ou identificáveis). Nesse cenário, agravado pela natureza cumulativa do conhecimento e pela fragmentação dos direitos de propriedade intelectual, intensifica-se a “incerteza ligada à valorização desses ativos intangíveis” e “a “valorização torna-se particularmente aleatória” (HERSCOVICI, 2012, p. 671 e 672)

A adoção das ideias de Braudel (1987, 2009) permite que Herscovici sustente que, na atual fase do capitalismo, os mercados, cada vez menos concorrenciais, são dominados por atividades capitalistas marcadas pela assimetria de informação. Neste cenário, o fortalecimento do sistema de direitos de propriedade intelectual privado possibilita a expansão

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Nota-se que essa argumentação guarda semelhança com o 'paradoxo do capitalismo cognitivo' descrito por Albagli e Maciel (2012), Moulier-Boutang (2011a) e Cocco (2012).

de diferentes "modalidades de apropriação privada do conhecimento produzido coletivamente" (HERSCOVICI, 2014, p.90).

Em relação à esfera do trabalho, o autor alega que, com a emergência do capitalismo imaterial, as formas de subsunção do trabalho ao capital estariam em um processo de modificação. Ganha importância o conhecimento tácito dos trabalhadores, que permite que eles empreguem o conhecimento codificado embutido no capital constante, tornando a subsunção do trabalho meramente formal (HERSCOVICI, 2014).

O conhecimento tácito está fundamentalmente ligado ao trabalhador que o detém e não pode ser utilizado sem sua participação e mediação, enquanto o conhecimento codificado - fixado em suportes como livro, compact disc (CD), computador, algoritmo de software ou a Internet - é despersonalizado e descontextualizado (HERSCOVICI, 2004, 2005; HERSCOVICI E BOLAÑO, 2005).

Supondo que o conhecimento tácito corresponde ao conceito de trabalho vivo e o codificado ao trabalho morto, Herscovici (2010) argumenta que a criação de valor decorre da aplicação do conhecimento tácito ao conhecimento codificado. Parafraseando Marx, Herscovici e Bolaño (2005, p.20) alegam que, "no processo produtivo, o trabalhador precisa ‘pôr em movimento’, ou seja, decodificar, uma quantidade crescente de informação".

Concordando com Marx, os autores afirmam que o capital constante não cria valor, mas apenas transmite seu valor para o produto final através do trabalho vivo. Partindo dessa premissa, afirmam que o conhecimento cristalizado em máquinas ou informação (conhecimento codificado) é capital constante e não produz valor em si. Alegam que apenas o trabalho vivo, aplicado ao capital físico ou informacional, é capaz de criar valor. O conhecimento codificado, destacado do sujeito, não é considerado propriamente conhecimento, mas apenas um conjunto de dados armazenados. Esses dados somente se valorizam por meio da mobilização do trabalho vivo que os atualiza, criando linguagens, métodos e interfaces que permitem a manipulação do conhecimento estratégico pelos trabalhadores intelectuais que executam o trabalho informacional.

O dado bruto, em si, não tem valor nenhum, no sentido capitalista; o trabalho informacional classifica e organiza esse universo, permitindo a sua utilização produtiva. É o trabalho produtivo, portanto, que valoriza os bancos de dados e faz a informação circular. O trabalho de prospecção dos pesquisadores acrescenta outra parte do valor da informação que circula. Nesse momento ela tem valor. Quando para, transforma-se em dado e se desvaloriza instantaneamente. Torna-se parte do acervo da humanidade (HERSCOVICI, BOLAÑO, 2005).

De acordo com o ponto de vista dos autores, as dinâmicas socioeconômicas atuais buscam a codificação do conhecimento tácito existente, o que desencadeia a criação de novo conhecimento tácito que será necessário para interpretar códigos, linguagens e o uso estratégico de novos conhecimentos produzidos.

Porém, segundo Herscovici (2014), alguns motivos impedem que a mutação socioeconômica em curso seja interpretada como uma forma de socialismo digital ou como uma superação do capitalismo.

Em primeiro lugar, se por um lado a produção de conhecimento se dá por meio de processos de socialização crescente, por outro lado as formas de apropriação permanecem privadas por meio dos mecanismos de direito de propriedade. Em segundo lugar, enquanto o salário representa a forma de remuneração do capitalismo industrial, que é marcado pela generalização da forma mercadoria, no capitalismo imaterial cada vez mais trabalhadores são remunerados por uma parte das rendas de monopólio que advêm do direito de propriedade privado. Adicionalmente, embora a riqueza social não se expresse mais pela produção de mercadorias e o conceito de mais-valia esteja perdendo relevância, permanece vigente "a contradição entre o desenvolvimento social da produção e suas modalidades de apropriação privada", especialmente através de um sistema de direito de propriedade. Por fim, a natureza do progresso técnico teria se modificado radicalmente. Com a crescente heterogeneização dos bens e serviços, que configuram uma "economia da variedade", os componentes qualitativos passam a ser cada vez mais componentes deste progresso técnico. Ao contrário da propagação do progresso técnico para o conjunto da sociedade conforme vislumbrado por Marx nos

Grundrisse, na atualidade, esse progresso é limitado pelo sistema de propriedade privada

(HERSCOVICI, 2014).

No atual progresso técnico capitalista, reside uma contradição entre a publicização e a privatização crescente da informação. Essa contradição advém da dupla natureza da Internet. Por um lado, o progresso tecnológico oferece aberturas para a reaproriação social da informação e do conhecimento, tendo em vista a possibilidade de disseminação de informações via Internet, que poderia, em tese, instituir um novo espaço público habermasiano. Por outro lado, simultaneamente, na economia atual, na qual informação e conhecimento têm papel chave, existem mecanismos econômicos que limitam as modalidades de acesso e a apropriabilidade social destes fatores intangíveis, pois a livre e gratuita troca de informações via Internet é parcialmente incompatível com a nova economia. Os incentivos para que as empresas atuem no mercado dos bens intangíveis exigem que sejam impostos limites, via direitos de propriedade, ao acesso e ao uso da informação e do conhecimento,

ainda que, paradoxalmente, o setor privado seja beneficiário das externalidades positivas produzidas pelo conjunto da sociedade por meio da web (HERSCOVICI, 2003a, 2004; HERSCOVICI E BOLAÑO, 2005).

Portanto, conforme afirmam Herscovici e Bolaño (2005), a contradição apontada evidencia que essas oportunidades de reapropriação social da informação e do conhecimento somente poderão se efetivar pelo estabelecimento de determinadas combinações entre os fatores econômicos e extraeconômicos.

O elemento jurídico-político determina, neste caso, a estrutura concreta do mercado, no bojo de um processo complexo de construção da hegemonia, a um tempo nas esferas política e econômica (HERSCOVICI, BOLAÑO, 2005, p.5).

Trata-se de uma lógica que não é puramente tecnológica ou econômica, mas eminentemente política, pois as modalidades de apropriação da informação e do conhecimento continuarão a ser determinadas no nível político. Não há espaço nesse embate para critérios "técnicos" ou puramente econômicos, pois o que está em jogo é o "produto das relações de força e das mediações realizadas na sociedade, em determinado momento histórico" (HERSCOVICI, BOLAÑO, 2005, p.14).21

Podemos afirmar que a perspectiva desses autores tem o mérito de evidenciar a importância do elemento político nestes cenários conflituosos. Ademais, revela também que a evolução da técnica não está associada necessariamente à emancipação humana. As lições que a humanidade tem acumulado ao longo da sua história mostram que a emancipação não é alcançada por meio da transformação harmoniosa e sem os conflitos. É preciso, portanto, tecer críticas às construções teóricas que flertam com o determinismo tecnológico e suas armadilhas.