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A crítica à alienação: sobre a passagem da essência à história

3. A(S) IDEOLOGIA(S) E SUA(S) CRÍTICA(S)

3.1 Marx, o marxismo e a crítica à falsa consciência: da alienação à ideologia

3.1.1 A crítica à alienação: sobre a passagem da essência à história

Voltemos um pouco aos “Princípios da filosofia do direito” de Hegel (1997a). É lugar comum para os estudiosos da filosofia hegeliana afirmar que esta obra foi escrita sob forte influência da Revolução francesa. Baseando-se nisso, Vasconcelos (2010, p. 93) escreve que Hegel

[...] em termos estritamente sucintos, buscou conciliar a esfera dos interesses e personalidades individuais, inconciliáveis no âmbito da sociedade civil, com o interesse comum representado pela mediação de um Estado que se colocou acima das classes sociais, e que garantiria a liberdade que se manifesta espontaneamente

nas vidas econômica e privada e suas instituições civis, constituindo-se em um âmbito superior de racionalidade universal e absoluta.

Para Marx (2010), o direito hegeliano inverte as relações, tal como na ideia geral de alienação. O Estado é elevado à condição de sujeito da ação. A sociedade civil é colocada como produto do Estado, com isso o povo perde seu conteúdo genérico (lembremos-nos da noção de gênero já mencionada) e o vetor da ação política se torna o Estado. Para Vasconcelos (2010) a consequência dessa inversão hegeliana na crítica de Marx é que o povo é impedido de legislar, uma vez que esta se torna função estrita do sujeito Estado.

A este processo Marx (2010) denominou, indiretamente, de “alienação política”. Segundo Enderle (2010, p. 21)

Para Marx, o Estado político, a constituição, representa a separação do povo em relação à sua própria essência, sua “vontade genérica”. O povo é o “Estado real”, a base da constituição. Ele é o “todo”, o poder constituinte; a constituição é a “parte”, o poder constituído. A alienação política tem lugar no momento em que o povo, ao se submeter à sua própria obra, perde seu estatuto fundante e as posições são invertidas. O que era o todo passa à posição de parte, e vice-versa. O povo, antes o “Estado real”, é privado de seu conteúdo genérico, que se vê então hipostasiado na esfera política. Com isso, dá-se a separação e a oposição entre Estado (constituição) e sociedade civil, Estado político e Estado não político.

A alienação, portanto, aparece em Marx (2010) como um processo de depósito no Estado onde o conteúdo deste é o poder de legislar. Algumas frases atrás foi sugerido que a origem da “alienação política” é a propriedade privada. Esta é o elo de todo processo de alienação. Marx (2004) aponta que na economia smithiana a “propriedade privada” é produto do trabalho. O trabalho, porém, está alienado a uma condição de que seu produto é estranho ao trabalhador e comum à economia nacional, em outras palavras, ao Capitalismo.

Já afirmamos que para Hegel (1997b) a “propriedade privada” é a manifestação da vontade individual que deve ser mediada pelo Estado para a manutenção da coesão da vida em sociedade. Nas palavras do autor

É a minha vontade pessoal, e portanto como individual, que se torna objetiva para mim na propriedade; esta adquire por isso o caráter de propriedade privada, e a propriedade comum, que segundo a sua natureza pode ser ocupada individualmente, define-se como uma comunidade virtualmente dissolúvel e na qual só por um ato do meu livre-arbítrio eu cedo a minha parte. (HEGEL, 1997, p. 47).

É função do Estado, nessa filosofia do direito, mediar os interesses individuais e os interesses coletivos. Devemos lembrar, porém que a filosofia hegeliana é tida como idealista. Nela tudo se passa sob as condições ideais para realização efetiva da Razão na história. O direito a “propriedade privada” em Hegel (1997b) é conhecido como direito

abstrato. A “alienação política” encontra sua fundamentação final na tese de que o Estado ideal estabeleceria as condições ideias para o uso-fruto do trabalho materializado na “propriedade privada” enquanto manifestação da vontade. No capitalismo, porém, as condições materiais concretas estão longe de ser as analisadas por Hegel. É na sua crítica a ideologia que Marx submete tais questões ideias ao crivo da história concreta que se materializa nas reais relações de produção.

Esse movimento, o de submeter à realidade ao crivo da história, é, também, um movimento de desnaturalização do direito. Este deixa de ser universal e abstrato para se tornar um produto da legislação das classes dominantes. Engels (1984), por exemplo, buscou nos primórdios das organizações sociais da antiguidade a origem da propriedade privada.

Para esse autor a origem desta, nas sociedades clássicas, esta intimamente ligada aos desenvolvimentos de modos de comercialização.

A aparição da propriedade privada dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o germe da revolução subseqüente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos, desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia ser feito dos produtos, nem se algum dia (conforme se tornou possível) estes seriam utilizados contra os produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos. ( ENGELS, 1984, p. 124)

Engels (1984) apresenta, em sua tese uma situação diametralmente oposta ao do direito natural ou a da vontade abstrata. A incorporação da noção de “propriedade privada”, para ele, é posterior ao direito. Ainda na antiguidade clássica, analisa o autor, esta noção surge posterior às formas de organizações gentílicas. Sobre a constituição do estado Ateniense ele escreve

Introduzia-se agora, portanto, um elemento novo na constituição: a propriedade privada. Os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam e, na medida em que ia aumentando a influência das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas corporações consangüíneas. A constituição gentílica sofria outra derrota. Entretanto, a gradação dos direitos políticos segundo a propriedade não era uma dessas instituições sem as quais o Estado não pode existir. Por maior que seja o papel representado na história das constituições dos Estados por essa gradação, grande número deles, e precisamente os mais desenvolvidos, prescindiram dela. (ENGELS, 1984, p. 128)

O final desta última passagem é muito caro ao pensamento de Marx. Engels (1984) afirma categoricamente a possibilidade de uma dissociação entre a noção de Estado e a noção de propriedade privada. Marx e Engels (1998, p. 42) escrevem que “O executivo, no Estado moderno, não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”.

O que esta posto aqui é uma antropologização e uma historicização do conceito de “propriedade privada”. A conclusão imediata destas é que tal noção tem cumprido seu papel de alienação do trabalho historicamente, atingindo seu ápice no capitalismo, pois neste o “Estado capitalista” passa a propiciar as condições para tal legislando em favor das classes dominantes.

Tais conclusões são à base dos fundamentos da crítica à ideologia. Tentemos, pois, nos reorganizar metodologicamente uma vez que parece que demos o prenuncio da crítica sem esclarece diretamente o destinatário desta. Tratemos, pois do conceito em si tal qual descrito na obra “A ideologia alemã”.

3.1.2 O conceito de ideologia propriamente dito: uma crítica das representações à luz do

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