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O ascetismo cristão encontra o capitalismo: as origens da empresa racional capitalista

1. RECONSTRUINDO OS CAMINHOS DO CAPITAL

1.1 O gêneses do capitalismo em Marx e em Weber

1.1.3 O ascetismo cristão encontra o capitalismo: as origens da empresa racional capitalista

Essa análise histórica da origem do capitalismo é o ponto de divergência que nos interessa aqui. Em Marx, nos ponta Grespan (2015), o capitalismo está intimamente ligado à noção de lucro que visa acumulação que, por sua vez, será revestida em capital em um processo cíclico. Tudo isso é possível a partir do trabalhador assalariado alienado que, apesar de produzir a mercadoria, precisa valer-se de seu diminuto salário para ter acesso ao objeto produzido por ele.

Voltemos ao capitalismo dito agrário de Wood (2001). Ele é mesmo capitalista? Ou o termo capitalismo é usado por ela de maneira indiscriminada? No capitulo 24 do primeiro volume de o Capital, que serviu, até aqui, de fonte para esses escritos, Marx (2013) dedica-se a esboçar suas ideias sobre a origem do capitalismo, mas nunca usa a expressão capitalismo agrário.

Algumas lógicas que sustentam a dinâmica capitalista industrial já estão presentes, como referido, em várias outras formas econômicas ao longo da historia. A especificidade do mercado no capitalismo industrial está na exploração do trabalho assalariado (GRESPAN, 2015).

Desta forma voltamos à questão. É possível usar a expressão capitalismo para referir-se as formas não industriais? Em Marx (2013), por exemplo, as mudanças na agricultura e a violência colonizadora são elementos que impulsionam o nascimento do capitalismo. A violência é, segundo os escritos de Marx, o principal fator na transição entre as economias pré-capitalistas e o capitalismo industrial. No entanto, lembremos que, mesmo para este autor, só podemos falar em capitalismo a partir da relação lucro e salário.

Esta ideia não contrasta com a definição que demos no inicio deste capitulo? A resposta é: sim e não. Sim, pois o capitalismo é necessariamente violento para Marx. Não, na medida em que aquela definição é visivelmente um misto entre as ideias de Marx e Weber, com algum privilégio ao pensamento deste último. Vamos, então, a este pensamento.

Weber (2001; 2006) parece sempre adjetivar o substantivo “capitalismo”. A expressão “o Capitalismo” é pouco recorrente entre suas ideias. O termo capitalismo parece se apresentar, para o autor, muito mais como a prática de um mercado racional pelas empresas capitalistas do que um processo evolutivo de mudanças históricas que culminaram em uma forma singular de exploração do trabalho assalariado.

Segundo Lowy (2014, p.19) Weber usa o termo capitalismo imperialista “para descrever formas de capital baseadas na violência que não são apenas vestígios do passado. Trata-se de interesses capitalistas cujas chances de lucro dependem da exploração direta da violência política coercitiva, de tendências expansivas”.

O capitalismo imperialista

em especial na forma de capitalismo de pilhagem colonial, baseado na violência direta e no trabalho forçado, produz lucros muito superiores a troca pacífica de bens. Daí a predominância dos interesses capitalistas imperialistas sobre os pacíficos, associados ao livre-câmbio. Portanto, o imperialismo não é uma “etapa” do capitalismo – a ultima segundo o famoso panfleto de Lenin – mas uma política imposta por setores específicos do capital. Weber afirma que o fenômeno “existiu desde sempre e por toda parte”, mas reconhece que um nível superior nas suas formas “especificamente modernas” de organização dos empreendimentos privados ou públicos. (LOWY, 2014, p.20).

Em Weber (2001; 2006), portanto, parece tratar-se menos de um processo evolutivo do capitalismo e mais de faces que coexistem sob determinadas contingências. Desta forma, a origem do capitalismo para esse autor esta ligada a pelo menos seis precondições.

Em primeiro lugar, à apropriação dos meios de produção. Em segundo, à busca por um tipo de liberdade de mercado fora das restrições irracionais à circulação como, por exemplo, as variações dos impostos, de um feudo para outro, baseadas na vontade dos senhores feudais. Em terceiro, à técnica racional do cálculo da produção. Um tipo de direito racional baseado no cálculo que possa legalizar a técnica. Em quinto lugar, ao trabalho livre e assalariado com pessoas que mesmo livres se veem obrigadas a vender sua força de trabalho e, por fim, a comercialização da economia, ou seja, a riqueza tem que ser posta em fluxo, trocada ou vendida no livre mercado. (WEBER, 2006).

É com base nessas precondições de existência que Weber (2001, p. 10) define minimamente capitalismo afirmando que “Chamaremos de ação econômica ‘capitalista’ aquela que se basear na expectativa de lucro através da utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro.”.

É visível a ênfase, da por Weber (2006), na ascensão de determinada forma de racionalidade como ponto de partida para o capitalismo e é sobre ela que nos deteremos. Vale ressaltar, porém que, em sua mais celebre análise, Weber (2001) foca-se na relação entre a Ética do protestantismo calvinista e o espírito que fundamenta o capitalismo. O que nos interessa, entretanto, não são os detalhes de sua sociologia da religião, mas a relação entre a racionalidade especifica que constitui, segundo sua analise, o espírito do capitalista.

Weber (2006) aponta que, para uma sociedade ser definida como capitalista é necessário que uma ampla cobertura geral das necessidades da vida social tenham uma orientação capitalista. O que o leva a dizer que

Embora encontremos capitalismo em diversas formas em todos os períodos da história, a cobertura nas necessidades cotidianas por meios capitalistas é peculiar apenas no ocidente, e ali, também, isso é a realidade normal apenas desde a segunda metade do século XIX. As antecipações capitalistas encontradas em séculos anteriores não passam de precursores e é possível tentar eliminar os poucos casos de empresas capitalistas do século XVI sem que o quadro geral sofra mudanças radicais (WEBER, 2006, p. 15).

É necessário, portanto, certa convergência da organização socioeconômica de uma época para que se possa pensar no capitalismo moderno e a essa convergência Weber (2001) chamou de espírito. O espírito é, em suma, segundo Boltanski e Chiapello (2009) a

ideologia, compartilhada pela sociedade capitalista, que justifica o engajamento no capitalismo.

Nas palavras de Weber (2001, p. 31)

Se puder ser encontrado algum objeto ao qual este termo possa ser aplicado com algum significado compreensível, ele apenas poderá ser uma individualidade histórica, isto é, um complexo de elementos associados na realidade histórica, que unimos em um todo conceitual do ponto de vista de um significado cultural.

Podemos traduzir essa tal individualidade histórica como sendo as motivações éticas que inspiram os capitalistas e justificam suas ações favoráveis a prática da acumulação. É, em outras palavras, um éthos coletivo que dirige e organiza as práticas de acumulação de capital e de exploração do trabalho assalariado (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Esse éthos, porém não poderia existir sem que o espírito do capitalismo adentrasse as já conhecidas instituições de governo da vida como, por exemplo, o direito, a administração pública, a ciência e a religião.

Para Weber (2001) tudo na racionalidade capitalista é colocado em termos de balança comercial. Desde a origem da “Empresa” até suas decisões mais complexas são baseados na lógica do cálculo. Existe, para ele, uma dependência direta da ciência e da técnica para que se efetue o cálculo racional. E essa dependência é uma co-dependência, pois o desenvolvimento da ciência é encorajado pelo desenvolvimento da economia.

Quanto ao direito e à administração nos diz Weber (2001, p. 15)

Entre os fatores de importância incontestável, encontram-se as estruturas racionais do direito e da administração. Isto porque o moderno capitalismo racional baseia-se, não so nos meios técnicos de produção, como num determinado sistema legal e numa administração orientada por regras formais. Sem esta, seriam viáveis o capitalismo mercantil aventuroso e especulativo, e ainda toda espécie de capitalismo politicamente determinados, mas não o seria possível empresa racional alguma sob iniciativa particular, com capital fixo e baseada num cálculo seguro.

Weber (2001), portanto, delineia a origem do capitalismo industrial em relação a um tipo de racionalidade especifica que surge a partir do século XVI sob influência direta da reforma protestante europeia. Dois elementos são interessantes para nós sobre a relação entre capitalismo moderno e ética protestante. A concepção de vocação e a de afinidade eletiva.

Segundo Weber (2001), a vocação, no sentido que a reforma protestante atribui a ela, está no centro da mudança de racionalidade do pensamento europeu. A reforma trás consigo um elemento só antes visto na antiguidade helenística: a supervalorização do trabalho secular aos olhos do pensamento religioso.

É lugar comum na historia a proposição de que na Idade Medida a divisão de classes entre clero, nobreza e plebe relegou o trabalho profissional ao lugar de uma atividade desprezível aos olhos do topo da pirâmide socioetária. O entendimento do trabalho como um chamado divino, que aparece primeiro no pensamento reformista de Martin Lutero, é desenvolvido principalmente por João Calvino. Outros movimentos reformistas como o pietismo, o metodismo, igreja batista também têm a noção de vocação como importante para o desenvolvimento de sua racionalidade capitalista. (WEBER, 2001).

Seguindo essa ideia, Weber (2001, p. 54) escreve que “o efeito da reforma, como tal, em contraste com a concepção católica, foi aumentar a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho secular profissional”. Essa, como já expressa, parece ser uma característica geral da reforma.

A reforma tira de dentro monastério o “ascetismo” cristão e lança-o na vida cotidiana produzindo um estado de vigília constante de condutas entre aqueles que professavam a fé reformada; mesmo para o calvinismo com seu princípio de eletividade da graça, ou seja, os salvos já foram eleitos antes de seu nascimento. Este estado de vigília constante de comportamento era fundamental, pois o eleito tinha que está a altura da graça a ele concedida.

O ascetismo cristão, ao encontrar o mercado, parece criar as bases da racionalidade capitalista.

Pois, quando o ascetismo foi levado para fora dos mosteiros e transferido para a vida profissional, passando a influenciar a moralidade secular, fê-lo contribuindo poderosamente para a formação da moderna ordem econômica e técnica ligada a produção em série através de máquina, que atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo individuo nascido nesse sistema, e não apensa daqueles diretamente atingidos pela aquisição econômica, e, quem sabe, o determinará até que a última tonelada de combustível tiver sido gasta. (WEBER, 2001, p. 118)

Mas, Weber (2001, p. 59) é atencioso quanto aos perigos de uma correlação direta e causal entre a “ascese” cristã e a conduta capitalista moderna. Segundo ele

Por outro lado, contudo, não se pode sequer aceitar uma tese tola ou doutrinária segundo o qual o “espírito do capitalismo” (sempre no sentido provisório que aqui usamos) somente teria surgido como consequência de determinadas influências da reforma, ou que, o Capitalismo, como sistema econômico, seria um produto da reforma. Já o fato de algumas formas importantes de sistema comercial capitalistas serem notoriamente anteriores a Reforma, seria bastante para sustar a essa argumentação.

O que é proposto, então, é a existência de um tipo de afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] entre a reforma protestante e o espírito do capitalismo. Existem, portanto, elementos análogos, por assim dizer, convergentes entre a “ascese” cristã reformada e a economia racional do capitalismo industrial, entre a valorização do trabalho enquanto chamado divino e a disciplina burguesa, entre o uso utilitário da riqueza e a busca racional do lucro. (LOWY, 2014).

Afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] pode ser entendida como as formas pelas quais os aspectos culturais, religiosos, intelectuais, políticos, econômicos, o estilo de vida e os interesses de um grupo social, a partir de uma escolha ativa, convergem e se influenciam mutuamente segundo suas semelhanças íntimas, suas afinidades ou seus sentidos.

É desta maneira, através de um sistema retroalimentativo de influências, que Max Weber parece sistematizar suas noções sobre a origem do capitalismo industrial. Ela é multifatorial e fortemente influenciada pelas mudanças econômicas e culturais ocorridas no final da Idade Media europeia com forte ênfase na Reforma Protestante.

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