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Adorno e Hokheimer: a positividade ideológica da indústria cultural

3. A(S) IDEOLOGIA(S) E SUA(S) CRÍTICA(S)

3.2 Para além do binômio verdadeiro/falso: a Ideologia em sua forma cultural

3.2.2 Adorno e Hokheimer: a positividade ideológica da indústria cultural

Se pudéssemos afirmar que existe uma teoria geral da ideologia em “A dialética do esclarecimento” de Adorno e Horkheimer (1985), esta já nos é apresentada nas primeiras páginas do livro. Precisamente no prefácio, onde os dois autores dedicam-se a uma breve apresentação da cada capítulo da obra. Assim, escrevem eles,

O segmento sobre a “indústria cultural” mostra a regressão do esclarecimento a ideologia, que encontra no cinema e no rádio sua expressão mais influente. O esclarecimento consiste ai, sobretudo, no cálculo da eficácia e na técnica da produção e da difusão. Em conformidade com seu verdadeiro conteúdo, a ideologia se esgota na idolatria daquilo que existe e do poder pelo qual a técnica é controlada. (ADORNO; HOKHEIMER, 1985, p. 15)

Demoremos-nos um pouco sobre esta breve, mas complexa citação. Dois pontos podem ser extraídos, da análise dessas poucas linhas, para nos ajudar a entender a noção de ideologia para esses dois autores: 1) O esclarecimento regride a ideologia quando este subsume-se a técnica; 2) O poder da ideologia reside na inflação dos conteúdos positivos da realidade.

A partir desses dois pontos é possível apresentar dois momentos da ideologia que são complementares. O primeiro momento é a ideologia em sua dimensão de “indústria cultura”. O segundo, melhor redigido por Adorno (2009) em sua “Dialética negativa”, é a dimensão positiva da ideologia.

Para Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural aplica aos bens imateriais, a lógica da produção industrial. O esclarecimento, ou seja, aquilo que propiciou o surgimento da técnica converte-se em instrumento de dominação na medida em que, dialeticamente, justifica-se a partir da própria técnica. Assim, para esses autores, o progresso, no capitalismo, é diretamente proporcional à regressão do espírito. “O preço da dominação não é meramente alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a cosificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo”. (ADORNO; HOKHEIMER, 1985, p. 35).

A regressão do espírito é, nesse sentido, um tipo de “desindividuação”. A regressão produz uma massa amorfa e sem heterogeneidade no corpo social. O espírito, produto da indústria, é tal qual a mercadoria fordista. Todas idênticas e saídas da mesma esteira de montagem. A representação máxima desta regressão do espírito é a transformação da cultura em lucro. Os dois filósofos fazem uma alusão específica à indústria radiofônica e a cinematográfica, pois ali, final dos anos de 1940, se iniciava a expansão dos meios de comunicação de massa. O que, como já mostrado no primeiro capítulo, seria chamado de mídia por Marcuse (2015).

O ponto central da crítica ideológica, que toma como base a indústria cultural, todavia, reside na produção, em escala industrial, da verdade. Dito de outra forma, na identificação entre a produção da indústria cultural com a ideia de verdade. De imediato, a informação produzida por essa indústria, fundada sob a égide do esclarecimento, é tomada como sinônimo de verdadeiro.

Assim, a identificação, conceito central para a psicanálise, aparece para Adorno e Horkheimer (1985) como a arma absoluta da ideologia da indústria cultural. Para Freud (1996/1920), a identificação é o mecanismo psicológico pelo qual a individuação da personalidade ocorre. É ao se identificar com os objetos da cultura em sua pluralidade que o “ego” torna-se uma região psíquica marcada por idiossincrasias e particularidades. O pai da psicanálise confere a identificação o poder de torna o “eu” uma instância única de cada indivíduo. Adorno e Horkheimer (1985), por outro lado, vão indicar que no capitalismo tardio a identificação tem a função de massificar as individualidades.

Segundo Rouanet (1986, p. 123),

A diferença entre a concepção freudiana de identificação como fator individualizante e a concepção de Adorno e Horkheimer, para a qual o conceito descreve o desaparecimento do particular no universal Iluminista, reflete uma simples entre duas etapas do capitalismo. No período de ascensão da burguesia, a individualização era importante pelo menos em uma parte da sociedade – a estrutura

competitiva burguesa só poderia funcionar pela interação de personalidades relativamente autônomas, que correspondia ao ideal, hoje, anacrônico, do “ruged individualism”. As leis do todo exigiam a autonomia relativa do particular. A teoria freudiana da formação da personalidade corresponde a essa etapa.

Sob a égide da indústria cultura, as identificações não buscam mais preencher o espaço deixado pela substituição das formas modernas de governo pelas formas capitalistas. Fenômeno que, talvez, explique a importância dada por Freud às identificações na constituição do psiquismo. O capitalismo do mundo administrado busca a manutenção e a reprodução de sua própria ordem. “Sua ideologia é o lucro. A verdade em tudo isso é que o poder da indústria prove de sua identificação com a necessidade produzida (...)” (ADORNO; HOKHEIMER, 1985, P. 113).

A inversão em relação ao sentido freudiano ocorre, precisamente, neste ponto. Se para o freudismo as identificações marcam o processo de produção das novas formas de necessidades humanas a partir da cultura capitalista nascente. Na indústria cultural, o que ocorre é, meramente, a reprodução infinita dessas formas. Segundo Rouanet (1985), no capitalismo tardio, o sistema não quer correr o risco de ser contestado. Com isso, produz uma infinidade de necessidades em “loop”. Não há uma escolha possível em relação aos objetos da identificação. O desejo passa a ser explorado como elemento fundamental da propaganda.

Não é possível refletir sobre o consumo. Este passa ser um imperativo de felicidade. Se o objeto de identificação por excelência é a felicidade, essa só pode se conquistada através de sucessivas identificações com objetos que prometem a felicidade. Nesse ponto o freudismo é evocado novamente. Freud (1996/1930) aponta que o próprio interior da cultura é estruturalmente marcado pela interdição do prazer total. O desejo não pode ser realizado, pois, para o freudismo, o desejo é sempre contraventor em relação à ordem instituída. O mal-estar aparece como um elemento fundamental para a cultura. Não há paridade possível entre o desejo individual e a moral cultural.

No capitalismo do mundo administrado, a promessa de realização plena do desejo e de superação do mal-estar se torna slogan propagandístico. Assim, “A indústria cultural, ao contrário da grande arte, que não promete nada , mas alimenta a consciência da privação, promete tudo e não realiza nada, e nessa promessa inibe a crítica emancipatória, que poderia levar a uma reflexão sobre o fracasso necessário do desejo” (ROUANET, 1985, p. 127).

Para Adorno e Horkheimer (1985), a própria arte, e aqui devemos entender esta como a produção espiritual humana, se torna elemento da ideologia na medida em que perde a dimensão poética do fazer crítico e tenta antecipar o gozo estético que irá proporcionar ao expectador. Por essa via, a cultura entra no campo da administração. Ela torna-se uma técnica

administrativa que totaliza aquilo que mesmo veicula. Este cálculo do gozo é absolutamente fundamentado na técnica.

Adorno e Horkheimer (1985, p. 120) escrevem que “A ideologia se esconde no cálculo de probabilidade”. Não é preciso pensar, sob a égide da totalização, a técnica pensa pelo consumidor. Ela apresenta um cálculo probabilístico de felicidade. Essa felicidade é genérica, pois se aplica a todo indivíduo sem levar em conta a individualidade do “eu”. Pela “indústria cultural” o ideal de felicidade se torna universal e todos devem ser felizes do mesmo modo.

Sobre a técnica na indústria cultural Adorno (1994a, p. 95) escreve que

O conceito de técnica na indústria cultural só tem em comum o nome com aquele válido para as obras de arte. Este diz respeito à organização imanente de cada coisa, a sua lógica interna. A técnica da indústria cultural, por seu turno, na medida em que diz respeito mais a distribuição e a produção mecânica, permanece ao mesmo tempo externa ao seu objeto. A indústria cultural tem seu suporte ideológico no fato de que ela se exime cuidadosamente de tirar todas as consequências de suas técnicas em seus produtos.

A ideologia se traveste, então, de uma simples sugestão técnica de como viver a melhor vida possível. Ela é “reduzida a um discurso vago e descompromissado nem por isso se torna mais transparente e, tampouco, mais fraca”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 122). A verdade industrializada é uma verdade “fast food”. Feita para consumo imediato e amplamente descartável. Na indústria cultural, o pensamento como forma de tencionar a verdade é tomado, paradoxalmente, como ideologia. Segundo Adorno (1994a) a indústria cultural passa a formar a consciência de seus próprios consumidores.

O lugar da verdade, no mundo da transformação da cultura em lucro, é o lugar da positividade. Do pensamento imediato. Do valor instituído. Mas, para Adorno (2009) pensar já é, antes de tudo, resistir a essa ideologia. Já na introdução de sua “Dialética Negativa”, este autor lança a tese de que a ideologia é um modo de incentivo à positividade, do fato instituído, enquanto objeto imediato do pensamento tomado como verdade. Assim escreve ele “Se hoje mais do que nunca a ideologia incita o pensamento a positividade, ela registra astutamente o fato de que justamente essa positividade é contrária ao pensamento (...)” (ADORNO, 2009, p. 25).

O telos final de qualquer ideologia é a positividade do pensamento. A negação da negação. Em última instância, a afirmação da cultura instituída. Para Adorno (2009) não há paridade entre palavra e coisa. A cultura não é, mas pode ser. O momento ideológico ocorre nessa positivação. Coisas e palavras identificam-se e tornam-se equivalentes. Assim, a cultura

instituída se torna a única cultura possível, pois ela se assume enquanto paridade entre a verdade e a forma da verdade enunciada por ela.

Poderiamos dizer, que o próprio conceito de vida entra nesse jogo ideológico. Aqui a vida e a forma de vida vendida pela indústria cultural se tornam sinônimos. Com isso Adorno e Horkheimer (1973, p. 202) escrevem que a ideologia da indústria cultural poderia ser descrita pela simples máxima “converte-te naquilo que és”. Tal máxima, segundo os autores, marca a reprodução e a ratificação da situação já existente.

Desta maneira, o caráter positivo da cultura instituída se torna ideológico. A ideologia, não se torna, na indústria cultural, sinônimo de uma verdade qualquer, mas de uma realidade vivida e experienciada como verdade. A ideologia já não é mais uma mentira sobre o mundo. Para Adorno e Horkheimer (1973) é o mundo que é uma mentira. Sobre isso os autores escrevem,

Entretanto, precisamente, porque a ideologia e a realidade correm uma para a outra: porque a realidade dada, a falta de outra ideologia mais convincente, converte-se em ideologia de si mesma, bastaria ao espírito um pequeno esforço para se livrar do manto dessa aparência onipotente, quase sem sacrifício algum. Mas esse esforço parece ser o mais custoso de todos. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 203).

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