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2. A liberalização do mercado de café: contextualização e perspectivas

2.4. Perspectivas analíticas sobre a liberalização

2.4.2. A crítica do neoliberalismo

Em um sentido diametralmente oposto à perspectiva neoliberal, há estudos que procuram mostrar que a liberalização teria afetado a vida de agricultores familiares e camponeses que se encontram em condições desfavoráveis em mercados cada vez mais controlados por poucas e grandes empresas multinacionais. Nesse sentido, destacam-se as análises que se pautam pelo contexto dos mercados agrícolas globalizados, sobretudo a partir de um viés analítico devedor do marxismo. Esta linha de investigação tende a enfatizar o papel das redes transnacionais de produção, transferência e acumulação de valores, destacando os papéis de diversos agentes, além dos Estados, sobretudo as Transnational

Corporations. Algumas orientações teóricas são presentes nesse campo, destacando-se a Global Commodity Chain Analysis (GCC) ou análise de cadeia global de mercadoria, que

recentemente tem sido apresentada como Global Value Chain Analysis (GVC) ou análise de cadeia global de valor, com o intuito de enfatizar o processo de produção e apropriação de valor, mais que simplesmente a circulação de mercadorias (DAVIRON; PONTE, 2005, p. 27). Tais perspectivas tendem a se contrapor ao neoliberalismo no plano teórico e no plano de uma crítica política, orientando-se por diversos matizes do marxismo e da economia política. Deste modo, as abordagens de GCC e GVC remetem mais ou menos diretamente ao trabalho de Wallerstein sobre os world-systems ou sistemas-mundo. E uma referência

fundamental, sobretudo no que concerne aos mercados agrícolas, são os estudos produzidos sobre food regimes ou regimes alimentares por Harriet Friedmann e Philip McMichael a partir da década de 1980.

Em um texto de 1982, Friedmann considera que um conjunto estável de arranjos internacionais é construído a partir da década de 1950, ao qual denomina ‘ordem alimentar internacional do pós-guerra’ e considera um ponto de virada estrutural, responsável pela crise alimentar subsequente. Essa ordem manteve a oferta de grãos superior à demanda por cerca de duas décadas, com consequências sobre os baixos preços dos produtos agrícolas e, consequentemente, sobre as nações agrícolas e possibilitando a concentração de população nas áreas urbanas. Na década de 1970 essa ordem se desfaz e dá início a um período de grande instabilidade e desabastecimento, com grande parte da população nos países pobres vivendo em áreas urbanas, com baixos rendimentos e os preços dos alimentos elevados.

A perspectiva teórica de Friedmann destaca a ordem e a desordem internacional como não apenas consequência, mas causa das transformações ocorridas em nível nacional. Sua análise, segunda ela, requer a consideração de três fatores mutuamente dependentes, mas analiticamente distintos: as relações internacionais ou Estado-Estado; processos econômicos transnacionais, como a circulação de capital e mercadorias; e mudanças nas classes e estruturas setoriais dentro das nações (FRIEDMANN, 1982, p. 253). No que concerne especificamente ao “segundo regime” abordado neste texto, a autora concede especial atenção ao papel desempenhado pelos Estados Unidos na definição das políticas internacionais relativas à agricultura mundial neste período.

A definição de regimes alimentares e sua periodização são precisadas pelos autores em textos posteriores. Em um artigo referencial de 1987, Friedmann e McMichael abordam o desenvolvimento da agricultura em relação aos Estados nacionais a partir de 1870, e para tanto, partem da definição de “regimes alimentares” (food regimes). Segundo os autores, cada regime alimentar vincula relações internacionais de produção e de consumo de alimentos a formas históricas de acumulação capitalista. O poder do capital para organizar e reorganizar a agricultura reduziria a capacidade do Estado de direcionar a agricultura para fins nacionais por meio de suas políticas. A agricultura é pensada então no contexto de relações internacionais e não no contexto das políticas internas. Neste artigo, Friedmann e McMichael definem dois regimes alimentares, o primeiro deles iniciado em 1870 e que perdurou até 1914 e o segundo iniciado após a Segunda Guerra, cada qual com suas características particulares.

O primeiro regime alimentar corresponde ao período de hegemonia britânica e de expansão do capitalismo no mundo a partir da Revolução Industrial. Neste período, como nos

mostra Clarence-Smith (2003, p. 118), ocorre também uma grande mudança na cadeia internacional do café, com a decadência da produção na Ásia, em algumas regiões produtoras da África e em algumas ilhas do Pacífico, e a emergência da América como o grande produtor mundial, além de uma mudança nos padrões de consumo internacionais, onde os EUA começam a despontar como um grande consumidor e importador.

O segundo regime alimentar é marcado pela hegemonia americana e pela forte intervenção estatal e pela regulação da economia mundial. No caso do café, este período é marcado pela formação da OIC e assinatura dos acordos internacionais para regulação do mercado. Os EUA se consolidam como os maiores consumidores no mercado internacional e uma potência no âmbito da OIC. Neste período ainda, o Brasil e a Colômbia consolidam sua posição de maiores produtores mundiais e de potências políticas no âmbito da OIC, desenvolvendo nacionalmente estruturas de regulação do setor cafeeiro, sendo o IBC no Brasil e a Fedecafé na Colômbia.

Mais recentemente, McMichael (1993) aborda a reestruturação do sistema alimentar sob a ordem definida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e pelo General

Agreement on Tariff and Trade ou Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), o que

poderia indicar o processo de constituição de um terceiro regime alimentar. Segundo o autor, a partir da rodada do Uruguai do GATT, desenvolve-se uma forte ênfase na liberalização do comércio agrícola. As propostas atuais do GATT mais que representarem uma simples defesa do livre comércio, com uma agenda expandida, poderiam institucionalizar um novo sistema regulatório na economia mundial privilegiando as firmas transnacionais.

A dificuldade de conclusão dos acordos no GATT reflete, segundo McMichael (1993), a importância do que está em jogo, que possui duas dimensões. Em primeiro lugar, a formulação de políticas em âmbito nacional é desafiada por interesses globais, por meio dos quais as regras universais do GATT poderiam substituir a regulação político-econômica nacional. Em segundo lugar, como um primeiro defensor do movimento atual do GATT, os EUA buscariam defender sua influência em uma nova ordem econômica mundial liberal. O GATT seria, portanto, o espaço que simbolicamente expressa o conflito atual entre duas tendências que deverão definir o destino da estrutura espacial e institucional do capitalismo. Conforme o autor, as reformas propostas pelo GATT estariam negociando uma profunda transição que toma lugar na economia mundial. Uma transição entre um princípio nacional residual derivado de um período de relativo controle sobre o comércio e o movimento do capital e um emergente princípio global de relativa liberdade de comércio e circulação de capital (MCMICHAEL, 1993).

No caso do café, este período correspondente ao terceiro regime alimentar, marcado pela globalização da economia mundial, se situa o processo de liberalização do mercado, com o fim do AIC e, no caso brasileiro, a extinção do IBC e da regulação do Estado sobre o setor.

De um modo geral, as pesquisas recentes sobre mercados agrícolas levam em conta o novo contexto mundial definido pela liberalização comercial e da agricultura, onde a OMC e o GATT são instituições centrais. O que pretendemos mostrar é que certa linha de investigação nesse campo se configura de modo geral como uma economia política da agricultura no âmbito da globalização. Esta conduz a análises referenciadas no contexto global ou transnacional, acompanhadas da crítica política do liberalismo intelectual e político- econômico. No caso específico do mercado de café, destacamos as análises realizadas por John Talbot (2004) e Daviron e Ponte (2005). Ambos os autores utilizam uma abordagem de ‘cadeias de commodities’ aplicada ao caso do café no período da regulamentação e principalmente no momento posterior ao fim do último AIC.

Talbot busca analisar o modo como a cadeia internacional do café é organizada sob o regime de regulação e posteriormente a ele, focando sobretudo a produção e apropriação de valor desigual ao longo da cadeia e as consequências para o desenvolvimento dos países produtores. Ao tratar das consequências da liberalização, o autor afirma que a questão não se refere ao livre mercado, simplesmente, mas a quais agentes organizam a cadeia de atividades e quais se beneficiam dela (TALBOT, 2004, p. 2). Segundo Talbot, a resposta para este questionamento indica a proeminência das grandes corporações transnacionais no mercado de café nas últimas décadas que se apropriam de grande parcela do valor produzido na cadeia. Por outro lado, os países produtores seriam os grandes prejudicados no regime de livre mercado. Como nos mostra Talbot, a distribuição dos ganhos ao longo da cadeia do café se alterou nas últimas décadas, o que pode ser visto na representação gráfica abaixo:

Gráfico 1 – A distribuição dos ganhos na cadeia do café.

Fonte: Saes (2007) adaptado de Talbot (1997).

Pode-se observar claramente a queda nos preços pagos ao produtor no período considerado por Talbot. Estes resultados são contraditórios com aqueles apresentados por Russel et al. (2002), que discutimos anteriormente17. Sendo assim, o autor busca conciliar sua análise da cadeia do café a uma defesa da regulação do mercado internacional. Segundo ele, ao menos para o café, a análise histórica demonstraria que o mercado sob o regime regulatório é preferível ao livre mercado da perspectiva dos produtores.

Daviron e Ponte (2005) identificam a questão em relação ao mercado internacional de café como um coffee paradox, definido pelo boom do consumo nos países desenvolvidos e pela crise nos países produtores. A explicação para o paradoxo residiria no fato de que a identidade do café é construída ao longo da cadeia, sendo que o que é produzido em países pobres ou em desenvolvimento não é o mesmo produto vendido nos países desenvolvidos, onde se incluem atributos simbólicos. Daviron e Ponte (2005, p. XVII) assim propõem uma estrutura analítica que considera que o poder de mercado não se fundamenta simplesmente no controle da divisão do próprio mercado, mas se relaciona à habilidade de definir a linguagem e as referências valorativas que determinam a produção de normas e os padrões de qualidade.

As análises apresentadas por Talbot (2004) e Daviron e Ponte (2005) apresentam o novo cenário mundial com especial ênfase nos países do antigo terceiro mundo que despontam como novas forças e, principalmente, na indústria transnacional, que seria a grande potência no novo contexto. A abordagem pautada no esquema das ‘cadeias de commodities’,

17Não discutimos as diferenças metodológicas implicadas nas análises contraditórias apresentadas por Russell et

al. (2002) e Talbot (1997, 2004). No caso de Russel et al. (2002), trata-se de um modelo econométrico que procura incorporar quebras estruturais representadas por mudanças em políticas econômicas. No caso de Talbot, não é explicitada a metodologia utilizada, mas seus dados se referem principalmente a históricos de preços indicadores produzidos pela OIC.

como apresentada pelos autores, tem se mostrado bastante influente no campo de estudos sobre os mercados agrícolas no contexto liberal e permite avançar na compreensão dos efeitos de transformações políticas e econômicas globais sobre os contextos nacionais. Contudo, para compreender a nova fase do mercado de café, consideramos que a dinâmica política interna e o ambiente institucional devem ocupar um espaço maior no esquema analítico que o concedido por esses autores. Retornaremos a essa discussão quando da apresentação do

framework deste trabalho e da análise dos dados produzidos.

Tanto as interpretações na vertente GVC e GCC, quanto aquelas marcadas pelo receituário neoliberal, que discutimos, buscam fazer uma avaliação dos efeitos da