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4. Desregulamentação e mudança institucional: burocracias públicas e

4.2. A intervenção governamental na cafeicultura

Segundo Bacha (1992), no final do século XIX, o Brasil era o café e o café era o Brasil, situação que estaria na origem da política governamental de valorização do produto, que pode ser considerada “o mais importante marco de política econômica continuada da história moderna do Brasil” (BACHA, 1992: 15). O café respondia por cerca de 70% das exportações brasileiras no final do século XIX e permaneceu como o principal produto da pauta de exportações durante boa parte do século XX. Além disso, o café brasileiro tinha uma participação fundamental nas exportações desse produto. Nesse contexto e somando-se as pressões dos cafeicultores, o governo brasileiro passou a executar políticas de valorização do produto, alegando a defesa dos interesses maiores da sociedade brasileira, bem como a necessidade de controle da oferta devido à irregularidade e à sazonalidade da produção e o fato da exportação se concentrar em algumas firmas estrangeiras (RUFINO, 2006: 35).

A política intervencionista sistemática teve início em 1906 por meio do Convênio de Taubaté. Este plano de valorização consistia basicamente na compra de café excedente pelo governo a partir de empréstimos estrangeiros assegurados por um imposto sobre as exportações. Paralelamente, definiu-se uma política cambial que visava desvalorizar a moeda brasileira. Os preços do café permaneceram elevados devido a esta política até 1912, quando experimentaram uma queda e depois nova elevação devido à escassez do produto posteriormente à Primeira Guerra e devido a uma forte geada no Brasil em 1918. Durante a década de 1920, a política de defesa dos preços do café teve continuidade sob a liderança do estado de São Paulo. A partir da década de 1930, a política cafeeira se deslocou para a esfera

federal, o que se consolidou com a criação do Departamento Nacional do Café em 1933. Em face da situação de crise no mercado internacional do café e dos amplos estoques brasileiros, o governo federal instituiu uma política de desestímulo da produção e de destruição de parte dos estoques acumulados, o que perdurou até meados da década de 1940 (RUFINO, 2006: 40).

4.2.2. O IBC

Em 1952 foi criado o Instituto Brasileiro do Café pelo governo federal. Apesar de este órgão ter substituído outros anteriores que cuidavam da política cafeeira, sua criação representou o início da intervenção sistemática do governo na cafeicultura por meio da formulação de um programa político específico para o setor31. Com a criação do IBC, o governo manteve a política de defesa dos preços do café brasileiro no mercado internacional que já vinha sendo desenvolvida, mas buscou também atuar de forma direta em todos os segmentos da cadeia produtiva e comercial do café.

O IBC se encarregava de toda a política cafeeira tanto interna quanto externamente. Neste último caso, o órgão representava o país na esfera das relações políticas e econômicas internacionais. Uma década após a criação do IBC, com a assinatura do Primeiro Acordo Internacional do Café, o órgão passou a ter um papel ainda mais importante externamente, já que se responsabilizava pelo cumprimento das cotas destinadas ao Brasil. Assim, o IBC programava medidas internas necessárias ao cumprimento do AIC, as quais se articulavam com a política econômica nacional.

Internamente, as funções do IBC eram a proposição e acompanhamento da política econômica relacionada diretamente ao café. Isso incluía o controle dos preços, o que era feito por meio da definição de preços de garantia e preços mínimos de registro, controle de estoques e das exportações, incluindo a arrecadação da quota de contribuição ou confisco cambial. A política de controle dos preços internos do café é anterior ao próprio IBC e constituiu o cerne da política brasileira de defesa do café durante décadas. Sua existência se justificou pela importância do café para a economia nacional, que foi o principal produto de exportação durante boa parte dos séculos XIX e XX, apesar de ter implicado em altos custos para o governo. Uma das medidas adotadas para o controle dos preços nacionais foi o estabelecimento de preços mínimos de garantia para compra feita diretamente dos produtores.

31O órgão que antecedeu imediatamente o IBC foi o DNC (Departamento Nacional do Café), que foi criado pelo

Esta medida visava oferecer apoio aos produtores contra as oscilações do mercado e constituía importante estímulo à produção, já que em alguns momentos os preços de garantia estiveram acima dos preços do café no mercado internacional. Os preços de registro de vendas estabelecidos para as exportações de café brasileiro, juntamente com o confisco cambial e a política de controle dos estoques, cumpriam o papel de regular o fluxo de café brasileiro para o exterior. Tais medidas conjuntamente influenciavam nos preços internacionais do café e estavam fortemente atreladas à política cambial do país. O confisco cambial foi instituído em 1953 como uma taxação sobre as exportações de café que se inseria no sistema de taxas múltiplas de câmbio instituído pelo Ministério da Fazenda naquela data e visava aumentar as receitas do governo e equilibrar a balança cambial (BACHA, 1992, p. 73).

Além da política econômica cafeeira, o IBC investia em pesquisa aplicada à cafeicultura, desenvolvia assistência técnica aos produtores e orientava e acompanhava a aplicação de crédito agrícola. A inter-relação entre estas três últimas atividades – pesquisa, assistência técnica e crédito – permitiu que o órgão direcionasse a produção cafeeira, definindo onde e como se produzia café no Brasil. Devido ao fato de que pesquisa, extensão e crédito para a cafeicultura dependiam direta ou indiretamente da atuação do IBC e este órgão concentrava o planejamento e direcionamento das políticas nestas áreas, havia uma grande integração entre as atividades governamentais de apoio e sustentação para a cadeia do café. A pesquisa se integrava com a extensão que passava as tecnologias aos produtores que, por sua vez, recebiam crédito via Banco do Brasil, principalmente. Os técnicos do IBC orientavam e fiscalizavam a aplicação do crédito pelos produtores. Além da integração de diversas atividades no IBC, foi fundamental a proximidade que os técnicos do órgão tinham com os produtores para o desempenho da política cafeeira. Tais aspectos são ressaltados em relatos de ex-técnicos:

Pra você ter uma ideia, eu vou falar mais dessa região que é onde eu conheço, eu tenho os dados na cabeça. Então, por exemplo, lá naquela região, nós somos [éramos] 22 funcionários, em cada escritório tinha um ou mais agrônomos, um ou mais técnicos agrícolas, de acordo com a concentração de café naquele município. Então, às vezes você tinha 2 municípios, você tinha um agrônomo, e tinha mais café, e tinha essa coordenação regional. E daí nós começamos a fazer o tripé que eu considero o mais importante do desenvolvimento do café, que foi o aspecto financeiro, a pesquisa e a assistência técnica. Então o que que é, o dinheiro, o IBC colocava o dinheiro, pesquisava e dava assistência técnica. Então isso estava interligado, então o cara tinha que fazer aquilo ali (entrevista realizada com ex-técnico do IBC que atuou em diversas regiões e ex-coordenador da regional de Caratinga, em 09/01/2014).

O entrevistado ressalta, a partir das memórias de sua experiência profissional, que a atuação do instituto junto ao setor produtivo se fez sobre o tripé da pesquisa, assistência técnica e crédito orientado. Esta atuação do IBC junto aos produtores é relatada pelos ex- técnicos como tendo sido caracterizada por um forte ‘direcionismo’, já que o órgão definia as variedades, as técnicas e as áreas para cultivo do café. Isso só foi possível devido à atuação constante dos técnicos de campo junto aos produtores e o controle dos recursos para pesquisa em cafeicultura e para crédito agrícola e assistência técnica.

A forte influência que o instituto exerceu sobre a produção é evidenciada em dois planos aplicados pelo órgão e que foram fundamentais para os rumos que a cafeicultura tomou no país e que influenciaram também o comércio mundial – o Plano de Erradicação de Cafezais (PEC), de 1962 a 1967, e o Plano de Renovação e Revigoramento de Cafezais (PRRC), de 1969 a 1970 – executados pelo Grupo de Racionalização da Cafeicultura (GERCA), criado dentro da estrutura do instituto para gerenciar as medidas de controle da produção. Por meio do PEC foram oferecidos amplos incentivos, através de créditos subsidiados, pelo governo para que os produtores erradicassem os cafezais de baixa produtividade e para a implantação de novos cultivos. Na década de 1970, ocorreu uma série de elevação dos preços do café no mercado internacional que estimulou a ampliação do parque produtivo em todo o mundo. No Brasil, o IBC programou uma nova política para o setor com o PRRC. Mais uma vez, por meio do IBC, o governo nacional destinou um montante significativo de recursos para a cafeicultura por meio de crédito e financiamento para a ampliação das áreas cultivadas e aumento da produtividade. Esse período é lembrado por um ex-funcionário do IBC em seu relato:

Paralelamente a isso, seria o setor de assistência do qual eu fui chefe da regional aqui de 70 até 76, e nós assistimos a assistência integral mesmo ao produtor, estimulando a plantar café, que no caso tinha saído a erradicação e com a ferrugem era pra acabar com o café no Brasil (sic). Aí através das pesquisas e da assistência as tecnologias foram avançando, tanto é que o polo cafeeiro não só na Zona da Mata, como no Brasil todo, com o Gerca também, houve uma expansão das áreas pioneiras que é o caso do Triângulo Mineiro, do norte de Minas, Rondônia, diversas regiões brasileiras que não produziam café através das pesquisas foram sendo regionalizadas, foram levantadas regiões onde o café se adaptaria. Foi uma expansão fantástica da cafeicultura nacional, e a alta tecnologia, tudo isso graças ao IBC e ao Gerca. As pesquisas eram paralelas junto com o próprio órgão Gerca que coordenava, era assistência técnica integrada com a pesquisa, não só na parte de variedades como de defensivos, tudo que envolvia parte de desenvolvimento da cafeicultura através das pesquisas e era paralelo com a assistência técnica. O IBC acompanhava desde a formação de muda até o plantio, até a colheita, aquilo era perfeito. Eu não sou suspeito pra falar, porque a verdade era essa realmente, na verdade era uma assistência que chamava até de insistência técnica, o produtor recebia toda a orientação

necessária, um por um (sic). Além disso não faltava recurso também para financiar. Tinha tudo, ele que fazia os projetos, acompanhava desde o plantio, aquele financiamento, recebia recurso para plantar café, crédito orientado, recebia a orientação pra fazer aquilo, aquilo era seguido à risca. No mínimo cada produtor recebia, na pior das hipóteses, uma visita a cada dois meses, na pior das hipóteses. Se ele não seguisse rigorosamente aquele projeto que foi feito, o projeto ficava sujeito a ser cancelado, ter que devolver o dinheiro (entrevista com ex-técnico do IBC que atuava na região de Caratinga, realizada em 26/11/13).

Argumentamos que o efetivo controle que o IBC exerceu sobre a produção de café no Brasil durante toda sua existência, evidenciada nos períodos de vigência do PEC e do PRRC, só foi possível devido à interdependência da pesquisa, extensão e crédito, além, é claro, do controle de mercado, dentro do próprio órgão. Esta interdependência se efetivava na prática cotidiana de trabalho dos inúmeros técnicos do órgão que conseguiam estabelecer uma relação muito próxima de acompanhamento dos produtores individualmente.

Em 1989, encerrou-se o último AIC, que não foi renovado, sobretudo, por pressões de países consumidores, como os EUA. A partir de então, o mercado internacional de café passou a funcionar dentro dos parâmetros liberais, extinguindo-se o sistema de cotas e qualquer participação direta dos Estados sobre o comércio.

No âmbito nacional, na década de 1980, em meio a uma forte crise do setor cafeeiro, tomaram espaço críticas às políticas adotadas pelo IBC. Por conseguinte, no final desta década, instalou-se uma forte controvérsia entre aqueles que defendiam a permanência do IBC – dirigentes de cooperativas cafeeiras, antigos técnicos do instituto, produtores descapitalizados, integrantes de autarquias federais ligados à agricultura, etc. –, outros – parte do setor produtivo – que desejavam sua reestruturação, com consequente redução da ingerência do governo no setor cafeeiro, com a transferência de algumas de suas atribuições para os governos estaduais e municipais e ainda para a iniciativa privada, e aqueles – alguns produtores mais modernos e o setor exportador – que defendiam seu fechamento e a saída definitiva do Estado deste setor econômico, com a completa liberalização do mercado (ANDRADE, 1994). Em tal contexto de liberalização internacional do mercado de café e de pressões internas do próprio setor cafeeiro sobre o governo, o IBC foi extinto em 1990, conduzindo a uma mudança em que o Estado deixou a coordenação direta do setor e desarticularam-se as políticas públicas para a cafeicultura.