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2. A liberalização do mercado de café: contextualização e perspectivas

2.2. O processo de liberalização

Desde a década de 1950 até a década de 1980, os governos da América Latina implementaram o modelo de substituição de importações como estratégia de desenvolvimento. Tal modelo era entendido como uma forma de corrigir falhas do mercado e induzir o desenvolvimento industrial, sendo o Estado o gestor desse processo, inibindo importações e criando facilidades de infraestrutura, crédito e treinamento. O modelo de substituição de importações encontrava respaldo na argumentação teórica de vertentes da economia keynesiana, que poderíamos identificar como ‘economia desenvolvimentista’, tal como nos trabalhos da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).

Nesse contexto histórico, o endividamento externo se tornou prática comum entre os países latino-americanos, até que a contração da liquidez internacional, a partir de 1979, levou à crise do endividamento internacional e consequentemente a uma crise do modelo de desenvolvimento vigente (SILVA et al., 2003, p. 292). Segundo os autores

[...] muitas das análises da crise enfrentada pela América Latina concluíram que o viés urbano e antiexportador da estratégia de desenvolvimento via substituição de importações aumentava a vulnerabilidade externa da região, ao invés de reduzi-la, como era previsto. Essa constatação era reforçada por análises que, confrontando o desempenho da região com o dos países asiáticos que praticavam a abertura econômica, concluíram pela superioridade desta estratégia (ROSENTHAL, 1996). Diante desse diagnóstico, a abertura econômica passou a ser defendida, inclusive pela Cepal, responsável pela implementação do modelo anterior, e teve início a mudança de estratégia desenvolvimentista que pôs fim a mais de meio século de protecionismo (SILVA et al., 2003, p. 293).

No Brasil, até a década de 1980, também predominou o modelo de política macroeconômica de industrialização por substituição de importações. A partir do início da década de 1980, o contexto econômico de crise internacional e nacional conduziu a política econômica em outro sentido, com uma política macroeconômica de ajuste à crise externa a partir dos modelos ditados pelo Consenso de Washington.

Segundo Nelson Giordano Delgado (2008), iniciou-se então uma fase de política macroeconômica recessiva com enorme contração dos gastos públicos, redução da oferta monetária com consequente aumento da taxa de juros e, portanto, redução do crédito, o que afetou enormemente a agricultura. Ainda, a partir da segunda metade da década de 1980 teve início o processo de abertura comercial da economia brasileira ao exterior, que deve ser desmembrada em dois componentes básicos: a liberalização comercial e a desregulamentação de alguns setores ou produtos antes sujeitos à intervenção estatal direta. Com a posse do governo Collor iniciou-se uma nova fase de liberalização, muito mais intensa e que afetou mais diretamente o setor agrícola. O autor trata especialmente da liberalização no complexo do trigo, mas as considerações se aplicam a outros produtos agrícolas, entre eles o do café. Além das políticas monetárias com efeitos sobre a agricultura, deve-se destacar a queda acentuada no crédito agrícola e nos investimentos em atividades de pesquisa e extensão rural na década de 1980, com estimativas de queda de 16% para 3% dos gastos orçados para a agricultura no período (DELGADO, 2008, p. 17). Com as políticas do governo Collor a partir do início da década de 90, pode-se falar de uma verdadeira crise agrícola e do desmanche do aparato estatal de extensão (Embrater), de agências estatais, como o IBC, corte de investimentos em pesquisa, entre outros. Desde a década de 1980, os policy-makers foram, então, capturados por um processo que Delgado (2008, p. 62) chamou de ajustamento constrangido à ordem econômica globalizada, o qual os obrigou a seguir um receituário de política macroeconômica submetido a pelo menos quatro restrições fundamentais: a redução dos gastos governamentais – para não pressionar a inflação e para aumentar a participação do setor privado na gestão da economia; a contenção da oferta monetária e a manutenção de taxas de juros elevadas – para controlar a inflação e atrair recursos externos; o monitoramento da taxa de câmbio real, valorizando-a para combater a inflação, desvalorizando-a para estimular as exportações; e a política de abertura comercial, para ajudar no combate à inflação, reduzir os gastos do governo, atrair recursos e investimentos externos, e não deixar dúvidas aos governos dos países desenvolvidos e aos organismos internacionais quanto à decisão do país de integrar-se à globalização.

Neste contexto macroeconômico e político podemos situar o fim do AIC em 1989, tendo como consequências a redução da participação dos Estados no setor cafeeiro, e nacionalmente a extinção ou transformação de agências de intervenção estatal. A regulação do mercado de café por meio do AIC durou basicamente de 1962 a 1989, com alguns períodos de interstício. Este acordo, assinado pelos países membros da OIC, tinha como principal instrumento de regulação mercantil o sistema de cotas de exportação que visava controlar e

elevar os preços do café no mercado internacional. No Brasil, o IBC, criado em 1952, se encarregava de toda a política cafeeira tanto interna quanto externamente. Neste último caso, o órgão representava o país na esfera das relações políticas e econômicas internacionais e se responsabilizava pelo cumprimento das cotas de exportação destinadas ao Brasil.

Em 1989, após uma intensa rodada de discussões no âmbito da OIC, o AIC não foi renovado. Estas discussões foram marcadas por pressões de países consumidores, sobretudo os Estados Unidos da América, que defendiam o livre mercado de café, e de alguns produtores, sobretudo da América Central, que questionavam as cotas destinadas a cada país. A partir de 1989, o mercado internacional de café passou a funcionar dentro dos parâmetros liberais, extinguindo-se o sistema de cotas e qualquer participação direta dos Estados sobre o comércio.

No Brasil, na década de 1980, em meio a uma forte crise do setor cafeeiro, tomaram espaço críticas às políticas adotadas pelo IBC e instalou-se uma forte controvérsia em torno da ingerência do Estado em tal setor e, consequentemente, sobre as possibilidades de fechamento ou reestruturação do IBC. O IBC foi extinto em 1990, no governo Collor, assim o Estado deixou a coordenação direta do setor cafeeiro e desarticularam-se as políticas públicas para a cafeicultura, acompanhando o fim do AIC.

As causas imediatas para o fim do AIC, segundo Robert Bates (1997), são encontradas entre os mesmos fatores explicativos para seu sucesso em um relativamente longo período de tempo, isto é, as coalisões políticas domésticas nos países produtores e em um dos principais países consumidores, os EUA. Bates possui um estudo referencial sobre a OIC, com ênfase em seu mais importante instrumento de atuação durante décadas, o AIC. Neste estudo, ele analisa a economia política do mercado mundial de café destacando a posição de seus dois principais produtores - Brasil e Colômbia - até o colapso da OIC, com a não repactuação do AIC. Bates situa sua pesquisa em uma agenda que busca uma estrutura analítica para o estudo sobre política em economias abertas. Busca assim contribuir para essa discussão focando nas políticas nacionais para o mercado internacional de café. O autor situa ainda seu trabalho no campo da economia política internacional propondo, contra a teoria econômica dominante neste campo – teoria dos bens públicos e da ação coletiva – que as políticas das nações no mercado internacional não são definidas por suas posições nesse ambiente, mas são definidas internamente, pelo processo político local, que é estruturado pelas instituições.

Do mesmo modo, ao analisar a OIC em sua origem e desenvolvimento, o autor propõe deslocar a perspectiva do nível internacional – onde a abordagem dominante baseada na teoria dos jogos interpreta a existência de tal tipo de instituição como o produto de interações

repetidas – para o nível local. Com isso, destacam-se os atores políticos domésticos que definem a formação de estratégias em nível internacional, sendo que a análise das decisões deve se basear na formação de preferências e em seus determinantes. Ao buscar tratar da política doméstica de uma perspectiva da economia aberta para a análise política, Bates rejeita as teorias estabelecidas nesse campo – a teoria da dependência, de inspiração marxista e a teoria neoclássica. Segundo o autor, ambas as perspectivas, a despeito de suas diferenças, compartilham uma visão determinista de tipo econômico sobre a política, encarando os atores políticos como representantes de interesses econômicos e as lutas políticas locais como condicionadas pelo contexto internacional, concedendo pouco espaço às instituições políticas. De outro modo, em sua abordagem, o enfoque recai exatamente sobre as instituições políticas como elemento explicativo do comércio mundial de café.

Bates visa responder a quatro questões relacionadas à OIC: 1) quais foram suas origens; 2) como ela funcionava; 3) qual teria sido seu impacto nas nações-membros; 4) porque ela entrou em colapso. Para produzir uma resposta, o economista transita pelo campo da economia política internacional e da ‘política do desenvolvimento’, enfocando a política doméstica nas duas principais nações-membros da OIC – Brasil e Colômbia. Considera, afinal, que a OIC teria funcionado, na medida em que teria conseguido restringir a arbitragem entre membros e não-membros no mercado e a competição entre os países produtores. As razões para o relativo sucesso da OIC apontadas por Bates seriam a liderança do Brasil com apoio do principal consumidor, os EUA, o eficaz controle dos preços pelo sistema de cotas e os acordos entre produtores e grandes empresas torrefadoras em nível internacional.

Como conclusão, Bates propõe uma abordagem baseada nas instituições em lugar dos interesses para o estudo da política em economias abertas. Igualmente, propõe que o foco analítico esteja no nível micro dos incentivos e restrições que as instituições impõem sobre os interesses. Se em um determinado momento, determinadas forças políticas domésticas foram essenciais para o surgimento e funcionamento do AIC, sua mudança e desestruturação teriam conduzido ao colapso da própria instituição criada no período anterior – a Organização Internacional do Café (BATES, 1997, p. 175).

John M. Talbot (2004, p. 87) considera a explicação de Bates para a não repactuação do AIC parcial, o que poderia ser justificado pelo fato de o economista ter se preocupado em analisar o surgimento e o funcionamento da OIC, mais que seu colapso. Talbot propõe então uma análise alternativa, sobretudo no que concerne às causas da mudança de posição dos EUA em relação ao acordo, em que o fim do AIC se relaciona ao avanço da globalização e do neoliberalismo não apenas nos EUA, com a consequente retirada de apoio do país, mas

também no Terceiro Mundo. O autor afirma que a mudança de posição dos EUA em relação ao acordo deve ser buscada na organização da política interna, tal como propõe Bates. Porém, Talbot (2004, p. 89) afirma que a mudança crucial teria sido a reestruturação ocorrida a partir do início da década de 1980, sob o governo Carter, que centralizou a coordenação da política comercial, aumentando o poder da United States Trade Representative (USTR). Essa mudança refletiria a ascensão do neoliberalismo no governo norte-americano e a consequente mudança na política comercial de modo geral, definindo as bases para a retirada de apoio ao AIC em anos posteriores. Bates, entretanto, consideraria que a mudança de posição do governo em relação ao acordo teria se dado posteriormente, no governo Regan.

No que concerne à orientação do governo americano em relação à política comercial, pode-se dizer que Talbot não faz mais que confirmar a proposta analítica de Bates, com sua ênfase na configuração da política doméstica. Sua afirmação de que esta seria apenas parcialmente correta, se sustenta apenas em identificar um processo de mudança na política econômica mais amplo e historicamente anterior e relacioná-lo analiticamente à transformação mais específica, concernente ao mercado de café, ocorrida no final da década de 1980. Certamente essa crítica não invalida em nada o argumento de Bates, que consideramos crucial para os propósitos de nossa análise, de que as causas das transformações econômicas no mercado de café devem ser buscadas nas dinâmicas políticas domésticas, com o qual, aliás, John Talbot concorda. Apesar disso, o ponto fundamental do argumento deste autor refere-se ao papel desempenhado pelo setor privado nos EUA e por alguns países produtores no processo de mudanças no mercado de café na década de 1980. Em relação aos EUA, Talbot afirma que a National Coffee Association (NCA), que representa os interesses da indústria, isto é, importadores e torrefadores, estaria dividida em relação à renovação do acordo no final da década. Enquanto Bates consideraria que a retirada do apoio desta organização foi um fator importante para o declínio do acordo, Talbot afirma que certos setores ainda permaneceram por algum tempo comprometidos com a regulação do mercado. As causas da mudança de posição da indústria americana estariam então relacionadas à globalização da indústria e ao avanço do neoliberalismo, sobretudo dentro do próprio governo americano que se mostra comprometido com o livre mercado (TALBOT, 2004, p. 91).

Quanto aos países produtores, segundo Talbot (2004, p. 92), há a formação de um grupo dissidente formado pelos ‘outros suaves’ e a Indonésia, que se compromete com a posição defendida pelos EUA de retirada de apoio ao AIC. A mudança de posição destes países em relação ao acordo estaria relacionada à sua produção superior às cotas, ao aumento na demanda internacional pelos cafés de tais regiões e por uma interpretação equivocada do

mercado, motivada pelo Banco Mundial, de que o fim das cotas viria a beneficiá-los. O avanço do neoliberalismo teria levado ao que o autor denomina ‘atomização do Terceiro Mundo’, com alguns países convertendo-se em New Industrialized Countries (NICs), enquanto outros enfrentavam profunda estagnação e crise, o que teria minado as possibilidades de ação coletiva entre tais nações (TALBOT, 2004, p. 96). Tais fatores explicariam as dificuldades de negociação do último acordo internacional envolvendo cotas que teriam levado a sua não repactuação e ao declínio da OIC.

Com uma argumentação mais próxima da defendida por Talbot, Daviron e Ponte (2005, p. 87) apontam como os principais fatores explicativos do fim do AIC o comportamento free rider de certos países e discussões sobre as cotas destinadas a cada um deles. Do mesmo modo, o crescente comércio com ou por meio de países não membros a preços mais baixos e a fragmentação da geografia da produção teriam contribuído para o desmantelamento do AIC. Ainda, a dificuldade de negociação das cotas, que tendiam a permanecerem fixas a despeito das mudanças na demanda serviu de fonte de insatisfação para muitos países produtores que se tornaram reticentes em cooperar. E, por fim, a mudança na política externa norte-americana na década de 1980, culminando com o fim da Guerra Fria, e pressões internas de setores da indústria levaram os EUA a retirar o apoio ao acordo.

O resultado imediato do fim das cotas, apontado por diversos analistas (BATES, 1997; TALBOT, 2004; DAVIRON; PONTE, 2005; AKIYAMA, 2001) foi a queda drástica nos preços do café no mercado internacional. As explicações para tal queda, contudo, variam bastante. De um lado, há certa interpretação que propõe que os países produtores considerando a possibilidade de um novo acordo, com renegociação das cotas, buscaram ampliar suas exportações efetivas, esperando conseguir uma participação maior na futura partilha do mercado (AKIYAMA, 2001). De outro lado, há a interpretação que considera como fator explicativo fundamental a transferência dos estoques dos países produtores para os consumidores, por meio das Transnacional Corporations (TNCs) que compraram a baixos preços os estoques acumulados nas agências estatais e empresas nos países antes signatários do acordo, aumentando seu controle sobre o mercado (TALBOT, 2004).

De modo geral, diversos analistas concordam que o período pós 1990 é caracterizado por uma crise geral na cafeicultura decorrente da queda acentuada nos preços e na desestruturação das políticas cafeeiras e dos instrumentos de apoio aos cafeicultores pelos Estados nacionais. Ainda que seja importante ressaltar a escala mundial dessa crise, é importante também enfatizar, seguindo a pista de Bates, o ambiente político interno. O contexto internacional, marcado pela ascensão do neoliberalismo no final do século XX,

constitui o pano de fundo histórico do processo de mudança institucional no mercado de café. Apesar disso, as formas como cada país e cada região produtora se adaptaram a este processo histórico mais geral são distintas, devido às estruturas políticas e burocráticas internas.

De modo similar, Daviron e Ponte (2005, p. 110), afirmam que as mudanças nas estruturas de governança e organizacionais da cadeia global de valor do café são, de alguma forma, mediadas pela política em nível nacional. Assim, afirmam os autores, não há uma trajetória única de liberalização ou desregulamentação, pois, conforme os diferentes graus e trajetórias de reforma (ou ausência de reforma), se definem diferentes consequências no nível nacional. Acompanhamos a seguir algumas trajetórias de países na América Latina visando levantar subsídios para a comparação com a situação do Brasil onde localizamos nosso estudo.

2.3. Os impactos da liberalização sobre as regiões produtoras e os cafeicultores