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O nível local: os processos de formação de organizações de produtores nas

4. Desregulamentação e mudança institucional: burocracias públicas e

4.3. A estrutura institucional da política cafeeira no pós-IBC

4.3.3. O nível local: os processos de formação de organizações de produtores nas

Com a desregulamentação ocorreu uma abertura do processo decisório para as organizações privadas e uma descentralização das políticas públicas para a cafeicultura. Com isso, há em tese mais espaço para a participação dos cafeicultores, representados por suas organizações, nas decisões que influenciam em sua atividade. Pode-se assim dizer que o processo de abertura política e de mudanças na sociedade civil, com maior permeabilidade do Estado e a constituição de espaços de participação e deliberação juntamente com as burocracias públicas, criou incentivos para a formação de organizações de representação política dos produtores. Assistiu-se então a partir de 1990 a uma proliferação destas organizações nas diversas regiões do país.

De todo modo, as pressões e incertezas do mercado globalizado criam estímulos para que os produtores busquem formas de articulação comercial, que se dá principalmente por meio das cooperativas de produção. As cooperativas já existiam e são muito importantes no mercado de café desde a época do IBC em muitas regiões produtoras. Apesar disso, surgem no presente contexto novas organizações inclusive em regiões onde não havia uma tradição de organização cooperativa, como é o caso das Matas de Minas. Há também um florescimento do cooperativismo de crédito, principalmente após a criação do Pronaf. As cooperativas de crédito passam a ser importantes agentes financeiros no nível local e atuam muitas vezes conjuntamente com as cooperativas de produtores e associações nos processos de fortalecimento das organizações e de desenvolvimento local.

O ambiente institucional, constituído por regras e condicionantes mais gerais em uma sociedade, como a esfera legal e o Estado, influencia no desenvolvimento das organizações. Se as organizações de produtores estão abarcadas por um ambiente institucional comum, constituído no processo de desregulamentação mercantil com a saída do Estado de certas funções e uma abertura dos espaços decisórios para a sociedade civil, também se definem por uma pluralidade de situações histórico-culturais distintas, que podem auxiliar a compreender as suas diferenças no nível local. Aliás, o nível local das organizações é também o nível da ação coletiva, onde a existência, a forma e o funcionamento de cada organização depende de sua história, de sua trajetória, do processo interno que levou à sua emergência e que define sua atuação.

As formas de organização dos produtores são distintas por região produtora. No Cerrado, os produtores se organizam e representam principalmente por meio de associações

de abrangência municipal que se congregam na Federação das Associações dos Cafeicultores do Cerrado. Esta organização representa os cafeicultores, atua na comercialização interna e exportação do ‘Café do Cerrado’ e é responsável legal pela Denominação de Origem da região. No Sul de Minas, há uma presença maciça de cooperativas de produtores de café, que se encarregam de boa parte da comercialização, além de outras atividades relacionadas à produção e à representação dos produtores.

Nas Matas de Minas, por sua vez, há poucas cooperativas e associações. As formas de organização dos produtores são ainda incipientes, encontrando-se, por outro lado, dispersão e baixo nível de capital social. Há ainda um histórico de algumas cooperativas que foram fechadas por má administração, fraudes, entre outros fatores, o que ocorreu nas décadas de 1980 e 1990, principalmente; lesando muitos produtores e gerando desconfiança em relação às atuais organizações. As Matas de Minas têm vivido atualmente um momento de florescimento de organizações, principalmente associações e cooperativas de produção e crédito, a despeito de seu histórico de baixo nível associativista e de insucesso de organizações. Contudo, o nível organizacional desta região ainda está aquém das demais áreas produtoras e as organizações atuantes hoje são recentes e dificilmente poderíamos avaliar seu nível de estabilidade e as possibilidades de sucesso40.

As cooperativas fundadas nas Matas de Minas nas décadas de 1970 e 1980 contextualizavam-se em um momento em que a produção encontrava estímulos e que o próprio cooperativismo era incentivado pelo IBC. Porém, entre as cooperativas que surgiram naquele contexto na região, quase todas foram fechadas, o que pode ser explicado, ao menos parcialmente, pelas dificuldades históricas de organização dos agricultores da região. Além do mais, a estrutura do mercado local, com forte presença de intermediários, que em muitos casos não recolhem devidamente suas obrigações fiscais, cria um ambiente de concorrência desigual para as cooperativas, dificultando sua sobrevivência41. As únicas duas cooperativas fundadas naquele contexto que permanecem atuantes são a Cooperativa dos Cafeicultores da Região de Lajinha (Coocafé) e a Cooperativa dos Cafeicultores da Região de Caratinga (Coopercafé).

40Apresentamos nos anexos um breve histórico das principais cooperativas e associações da cafeicultura das

Matas de Minas.

41A persistência dos intermediários como figuras centrais do mercado local nas Matas provavelmente se

relaciona com as dificuldades de organização dos produtores e a deficiência de cooperativas. No entanto, não temos pretensões de explicar porque as cooperativas não dão certo nas Matas de Minas, mas descrever e analisar as estruturas atuais do mercado local. Com relação ao insucesso das cooperativas, é provável que esteja relacionado à constituição histórica da cafeicultura da região e a processos do tipo path dependence, mas, para tratar em profundidade desta questão, seria necessária uma pesquisa histórica cuidadosa.

Em um contexto distinto, no momento pós-liberalização, surgiram novas organizações. A partir da década de 1990, houve um processo de constituição de associações de produtores nas Matas de Minas. Mais recentemente, a partir dos anos 2005, aproximadamente, surgiram algumas cooperativas na região. Em geral elas foram criadas onde os produtores buscaram formas de comercialização alternativas aos intermediários locais, para poder acessar diretamente o mercado externo ou para viabilizar a comercialização de cafés especiais.

As associações e cooperativas podem ser distinguidas primeiramente por suas funções na cadeia do café. Enquanto as cooperativas são entidades mercantis que atuam na comercialização de café entre outros produtos agropecuários, as associações são criadas essencialmente como organizações políticas, visando a representação de seus membros na esfera política, a interlocução com o Estado, a participação em políticas e o acesso a serviços públicos, entre outras atribuições similares. Esta distinção entre cooperativas e associações em termos de suas atribuições é apenas formal. Algumas cooperativas cumprem um papel importante de organização e representação de produtores na esfera política, não sendo meros agentes de comercialização de café ou não tendo como único objetivo atuar na comercialização de café. As associações seriam organizações de representação política dos produtores, mas muitas acabam por resumir suas atribuições a questões pontuais, como a compra coletiva de insumos, sendo o engajamento dos produtores muito baixo. Em alguns casos, as associações são vistas por muitos produtores como um ambiente de aprendizado ou de ganhos imediatos. Assim, estes produtores entram para as associações para obter ganhos, como descontos na compra de adubos ou para aprender novas técnicas de produção, deixando a associação quando não há benefícios imediatos e não estando dispostos a arcar com os custos da ação coletiva. Nestes casos, a vida destas associações tende a ser curta.

Procuramos identificar alguns processos que ocorrem nas Matas de Minas nas últimas décadas e que têm levado à emergência de associações e/ou de cooperativas. Em geral, tanto cooperativas quanto associações surgem de uma base comum, de um mesmo meio social ou das mesmas fontes de capital social que se constituem nos processos de organização de produtores. Portanto, é bastante frequente que em municípios onde há uma organização de produtores, como uma associação ou sindicato, possa emergir uma cooperativa.

O primeiro processo que identificamos que levou à emergência de organizações de produtores é aquele que teve origem na atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Este levou inicialmente à formação dos sindicatos de trabalhadores rurais o que, em alguns municípios, contribuiu para a constituição, posteriormente, de associações de agricultores familiares e/ou cooperativas. Em alguns municípios há atualmente uma proximidade muito

grande entre diferentes organizações, como sindicatos, cooperativas e associações, de modo que os próprios membros e dirigentes tem dificuldades em distinguir atribuições de cada uma delas. Em geral, há também uma aproximação destas organizações com movimentos sociais e organizações da sociedade civil que promovem a agricultura orgânica e agroecológica e a economia solidária. Observamos este tipo de processo em alguns municípios das Matas de Minas, como Manhuaçu, Espera Feliz, Araponga e Divino. Há nestes municípios uma sinergia entre sindicatos de trabalhadores, cooperativas de crédito, cooperativas de produtores, associações de agricultores familiares, organizações da sociedade civil, entre outros agentes que propiciam o desenvolvimento local. Essas organizações, por sua vez, dependem também de apoios e incentivos do poder público, articulando-se principalmente às políticas de crédito e comercialização destinadas à agricultura familiar, de que trataremos adiante neste capítulo.

Em alguns destes municípios, como Espera Feliz, Divino e Araponga, houve um processo de organização de agricultores familiares por influência das CEBs e influência posterior do Centro de Tecnologias Alternativas (CTA) no desenvolvimento da agricultura agroecológica. No entanto, muitos produtores abandonaram a produção agroecológica e, principalmente, a orgânica. Em Manhuaçu, há uma cooperativa – a Coorpol – que emergiu de processo semelhante a partir da atuação das CEBs. Atualmente, por meio das associações de produtores ou cooperativas, os agricultores têm conseguido acessar programas institucionais como o PAA e o Pnae, além de outras alternativas de comercialização, como os ‘mercadinhos’ locais e feiras livres.

Outro processo de emergência de organizações que identificamos é caracterizado pela formação de associações ou cooperativas fundadas por produtores que buscam soluções para questões específicas, principalmente buscar novos canais de comercialização e obter vantagens na compra de insumos agrícolas. É o caso das cooperativas de Ervália e Canaã, criadas recentemente (a partir de 2010). Estas cooperativas de produtores em geral foram criadas para possibilitar uma forma de comercialização alternativa ao mercado local e buscam reunir produtores para facilitar sua produção, seja pela compra conjunta de insumos, uso comum de infraestrutura, etc.

Identificamos ainda outro processo que levou e tem levado à emergência de organizações e que se refere à crescente demanda por cafés especiais. Neste caso, constituíram-se algumas associações que reúnem produtores com perfil comum e em geral trabalham para o aperfeiçoamento da qualidade, para a busca de canais de comercialização específicos e para o aprendizado e para a troca de informações sobre cafés especiais. A principal associação com este perfil nas Matas de Minas é a Specialty Coffee Association of

Minas Gerais (SCAMG), fundada em 2001. Outras organizações que se aproximam deste

perfil foram fundadas na região do município de Araponga, reconhecidamente uma região propícia à produção de cafés especiais, mas todas foram fechadas ou se tornaram inativas. A ACARC do município de Caratinga também parece ter sido criada reunindo produtores com perfil semelhante, mas atualmente encontra dificuldades em se manter ativa. Todas estas associações não realizam comercialização, mas funcionam muitas vezes como um espaço de troca de informações entre os associados. Além das mencionadas, poucos produtores da região das Matas de Minas são também membros da principal associação de cafés especiais no Brasil, a BSCA. Além das associações, os produtores mais modernos da região e os produtores de cafés especiais se conhecem, muitos são amigos e ex-colegas de faculdade (muitos ex-alunos de agronomia da UFV), e em geral trocam informações sobre produção e comercialização entre si.

No atual contexto do mercado de café, há uma valorização das origens produtoras que tende a reforçar os processos de construção de identidades coletivas referenciadas a uma área e/ou a um grupo de produtores. Há uma forte tendência de formação de organizações de representação de produtores vinculados a determinado território, e em alguns casos visando o reconhecimento de indicações geográficas. Este processo de organizacional territorial vem fortemente articulado ao processo de construção de cafés especiais, na busca de inserção do produto regional em nichos de mercado que pagam preços superiores pelos cafés diferenciados. Nas Matas de Minas, este tipo de processo levou à constituição do Conselho das Entidades do Café das Matas de Minas, em 2012. Este conselho tem buscado criar mecanismos de sinergia entre as organizações locais, uma maior articulação destas organizações com o poder público e criar uma nova imagem da região, associada a uma produção sustentável de cafés de qualidade. Atualmente, o grupo de organizações de produtores reunido no Conselho busca levar adiante um projeto de criação de uma indicação geográfica para os cafés das Matas de Minas.

Os processos que identificamos são aqueles que pudemos observar e que apresentam maior generalidade nas Matas de Minas. Contudo, não pretendemos que eles representem todos os casos na região estudada. Um caso um tanto quanto distinto é o do Centro Comunitário da Conceição, uma comunidade rural do município de Carangola. Esta organização não se enquadraria bem em qualquer dos tipos mencionados, mas tem se relacionado cada vez mais ao processo de diferenciação do café pela qualidade nesta localidade. Os membros deste centro comunitário iniciaram recentemente a comercialização do café torrado e moído de produtores da comunidade. Ainda, têm participado das reuniões do

Conselho das Entidades do Café das Matas de Minas, contando ainda com o apoio do Sebrae para o desenvolvimento de sua marca de café torrado. Esta organização estaria assim se aproximando do modelo das associações de cafés especiais.

De modo geral, o que percebemos é que os processos de formação de organizações locais possuem relação com o contexto institucional, sendo que as mudanças na dimensão institucional iniciadas com a extinção do IBC, com a consequente descentralização da política cafeeira e abertura da esfera política para organizações de representação de interesses setoriais, estimularam a formação de organizações locais. Isso juntamente com as condições de um mercado liberalizado que tende a pressionar os produtores, levou-os a buscar formas de proteção e fortalecimento por meio de suas organizações. E ainda, muitas das organizações que se formaram estão relacionadas ao processo de mudança no sentido da construção social da qualidade dos cafés, que tem um papel importante na mudança nas Matas de Minas, de que trataremos no próximo capítulo.

4.4. A construção de políticas para a cafeicultura no contexto pós-IBC e sua