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A Crônica de D Duardos: narrador e personagens.

A certo ponto do livro, buscando justificar a incrível coincidência que reunira vários dos principais personagens da obra em certa paragem remota, o narrador faz uma longa digressão metanarrativa que principia do seguinte modo:

Verdadeiramente que bem concideradas as couzas, que escrevemos, a variedade dos cazos, a grandeza dos dezastres, a novidade dos sucessos, que mais parecerà que fazemos rellação curioza de fabulas sonhadas, que Choronica grave de Historias verdadeiras. Eu pello menos não quero obrigar a maior credito aquem ler esta nesta lingoa, do que me ficou della quando a li na em que Henrrique Frusto a compos, porque não cei certo como partindo havia tanto tempo D. Duardos da Floresta das tres Fontes, e Albaizar algũ despois de Constantinopla, Vasperaldo da Ilha de Dramusiando, D. Floris de Napoles, se vierão a ajuntar por varios caminhos em occazião tão forçoza, em hũ mesmo dia, em hũa mesma paragẽ e em hũ Mesmo Navio (45,4-13).

Estão presentes no trecho algumas das características mais comuns aos livros de cavalarias quinhentistas, a começar pela atribuição da autoria do texto a um suposto escritor estrangeiro, neste caso chamado Henrique Frusto104. A maior parte dos livros de cavalarias foram apresentados como meras traduções de crônicas supostamente históricas: Montalvo, por exemplo, declara ter traduzido o Amadís de Gaula de texto encontrado numa ermida em Constantinopla e trazido à Espanha por certo mercador húngaro.

Por outro lado, no entanto, verifica-se nessa passagem uma dissociação incomum entre as duas instâncias narrativas, a do “tradutor” e a do suposto “autor” da crônica original. Ao admitir não saber como se teria produzido o acontecimento relatado por Henrique Frusto, o tradutor-narrador dá mostras de não se conformar com o papel

104 Os códices BNL 12904 e 620 trazem no título referência a “Guilherme Frusto, Athor Hibernio”, como

vimos acima (cf. item 1.3). Trata-se de um erro, pois no interior do texto da Crônica de D. Duardos, todas as cópias (inclusive as duas mencionadas) referem-se apenas a Henrique Frusto. Este nome não é criação do autor desta Crônica, pois já havia sido mencionado ao final do Palmeirim de Inglaterra (cap. 172) como um dos cronistas que teriam relatado as aventuras posteriores à guerra com as tropas de Albaizar: “Joannes d´Esbrec, que compôs a crônica daqueles tempos, Jaimes Biut e Anrico Frusto, autênticos escritores, afirmam que...”. O motivo da eleição deste último para suposto autor das continuações manuscritas não é claro, sobretudo se atentarmos para o fato de, poucas linhas à frente, o Palmeirim desautorizá-lo: “Jaimes Biut e Anrico Frusto confessam que (...): parece que nisto Joannes d´Esbrec seja o mais certo, porque em tudo se lhe dá mais autoridade. E na crônica do segundo Dom Duardos, que sai deste livro, e ainda não é trasladada...”.

de trasladar fielmente o original e, por meio de seus comentários, acrescenta um novo ponto de vista à narrativa. Assim, ele submete a seu juízo os fatos que teria encontrado no texto de Henrique Frusto, refletindo sobre a pretendida veracidade do livro que diz traduzir. Entre as opções extremas – a do texto ser um fiel retrato da realidade (“Choronica grave de Historias verdadeiras”) ou de tudo não passar de invenção (“rellação curioza de fabulas sonhadas”) – o tradutor escolhe a alternativa intermediária, fingindo especular acerca dos motivos que poderiam ter levado o “autor” original a afastar-se da realidade:

E se por ventura [as couzas que logo recitaremos] forão verdadeiras só em parte, que he o que mais verisimel me parece, persuadido estou, que o que tocca a o dezastre de Albaizar foi invenção sonhada por Hẽrrique Frusto, com raiva, e inveja de lhe ver merecer com ageneroza, enão accostumada magnanimidade, (...) porque vós crede que ha gente para quem he muito maior materia de inveja merecer hũ homẽ muito inda que possua pouco, que possuir tudo não merecendo nada (45, 29-35).

A cisão entre as duas vozes narrativas na Crônica de D. Duardos parece destoar da tipologia das intervenções do suposto tradutor nos livros de cavalarias, que, segundo Isabel Adelaide de Lima e Almeida, atendem a três objetivos principais: 1. servir de “realce da narração” e articulação entre episódios narrados; 2. chamar a atenção do leitor, lançando “pontes entre o mundo fabuloso e o real”; 3. corroborar a matriz, “comentando o intuito e a virtude da narrativa”; mas em nenhum dos casos, diz a pesquisadora, “se põe em causa o ‘original’ ou o ‘coronista’”105. Ora, é precisamente

isto o que ocorre na Crônica de D. Duardos, onde o tradutor declara acreditar que sua fonte não seria inteiramente fidedigna. Ainda assim, diferentemente do que ocorre no D.

Duardos Segundo, em cujo prólogo o autor confessa que sua obra não passa de “história

fingida”106, o resultado do questionamento do suposto original na Crônica de D.

Duardos só faz confirmar no leitor a crença de que o texto de Henrique Frusto tenha de

fato existido, reforçando a pseudo-historicidade do livro.

105 Isabel Adelaide de Lima e Almeida, op. cit., p. 671-676. Note-se que a autora afirma serem pouco

freqüentes as intromissões do “tradutor” nas continuações impressas do Palmeirim de Inglaterra.

106 Diogo Fernandes, prevenindo as críticas de quem o acusaria de estar compondo “cousas fabulosas”,

escreve no prólogo “folgaria que lhe lẽbrasse, que o intento de quẽ as faz não he acreditar fabulas que todos tẽ por essas”.

Em outra passagem, este desenvolto tradutor toma a liberdade de preencher o que é apresentado como lacuna do original. Quando, no capítulo 35, Carmélia manifesta o desejo de partir de Constantinopla juntamente com seu pai, as demais princesas começam a especular sobre as possíveis causas de sua decisão. É o ensejo para que o tradutor manifeste novamente seu ponto de vista:

Varias oppiniões ouve entre as Princezas da resolução de Carmellia, e não faltou quem cuidasse que se queria ella ir a parte onde sem o embaraço de sua companhia pudesse occupparce nos pensamentos que lhe imaginava a dona deste discurso; mas eu que não achey escritto em Henrique Frusto a verdadeira cauza, fundandome nas rezistencias que ella fazia àquelles pensamentos, e nas calidades de sua pessoa conhecidas, eobservadas della, mais cuido que foi quererce apartar da Occazião que lhe faria algũa força em que a Natureza podia so ser a culpada ficando a vontade sem culpa (35, 26-33).

Esta alternância de vozes narrativas não é gratuita. O autor joga sabiamente com os diferentes pontos de vista para avançar hipóteses explicativas sobre certos acontecimentos narrados (no exemplo das páginas anteriores) e sobretudo para sondar as motivações interiores de personagens, como é o caso da passagem referente a Carmélia e de outro episódio, no qual a mesma princesa, incomodada com notícias recebidas sobre o Cavaleiro do Sol (que ela crê ser D. Duardos), pede a D. Floris que vá até o reino de Boêmia a fim de descobrir sua identidade. Após D. Floris aceitar a tarefa, diz o tradutor-narrador, “a Princeza lho agradeceu, e o despedio, não sei se ja arrependida do que lhe tinha pedido que mui de ordinario acontece a quem se precepita depressa não durar muito em hũa detreminação” (73, 39-41). As intromissões do tradutor – que se repetem em outros passos do livro, ainda que não de modo tão significativo como nos já lembrados107 – relacionam-se àquele que talvez seja o traço mais significativo da obra: a tentativa de retratar o universo psicológico dos personagens, aspecto a que os livros de cavalarias quinhentistas são normalmente alheios. A observação de Bohigas Balaguer sobre o Amadís de Gaula pode ser aplicada à grande maioria dos livros de cavalarias que se lhe seguiram:

Parecida a la ausencia de color local es la falta de caracterización o la simplicidad psicológica de los personajes del Amadís. La mayor parte

107 Veja-se outras intromissões do tradutor nas seguintes passagens: 37,36; 62,26; 72,72 e 77,69. Alguns

han sido pensados según modelos que les habían precedido. (...) El autor, seguiendo en esto a sus más importantes modelos, tampoco trabaja mucho la psicología de estos amantes [Amadis e Oriana]108. A caracterização dos personagens nas obras do gênero dificilmente vai além da repetição de traços convencionais, alusivos a modelos abstratos e preexistentes. Em primeiro lugar, define-se o rasgo básico de seu caráter: o personagem será bom ou mau, marco que definirá à partida muitas de suas características. Os heróis serão invariavelmente leais, corajosos e corteses; seus inimigos são as mais das vezes ambiciosos, arrogantes e impiedosos109. Raras são as ocasiões em que esses contrastes nítidos e inapeláveis dão espaço a alternativas intermediárias. No Palmeirim de

Inglaterra há apenas duas exceções: Dramusiando, o gigante que raptou D. Duardos

para em seguida converter-se a sua amizade, e Targiana, cujo ódio a Floriano do Deserto não impede que ela alerte o Imperador de Constantinopla da traição urdida pelo Sultão da Babilônia, seu marido. Até mesmo a oposição entre os irmãos Amadis e Galaor (o primeiro representando o protótipo do amante leal e submisso e o segundo, o cavaleiro insensível ao verdadeiro amor, que se entrega a seguidas aventuras amorosas superficiais) foi convertida em modelo e reproduzida por João de Barros (Clarimundo e Dinarte) e Francisco de Morais (Palmeirim e Floriano).

A superficialidade no delineamento psicológico dos personagens, predominante nos livros de cavalarias, contrasta com o tratamento dado a alguns dos protagonistas da

Crônica de D. Duardos. Embora a maioria dos heróis do livro (como os príncipes D.

Duardos, Primaleão e Vasperaldo) não apresentem particularidades que os diferenciem entre si e da maioria dos cavaleiros de obras congêneres, outros personagens da obra possuem traços individualizadores mais definidos. Este talvez seja o maior mérito de D. Gonçalo Coutinho, a se confirmar a hipótese de a Crônica de D. Duardos ser obra sua: ter criado personagens com caracterização mais rica, sutil e consistente que na maioria dos demais livros de cavalarias da época.

108 Pedro Bohigas Balaguer. La novela caballeresca, sentimental y de aventuras, in: DÍAZ-PLAJA,

Guillermo. Historia general de las Literaturas Hispánicas. Vol. II: Pre-Renacimiento y Renacimiento. Barcelona: Barna, 1951, p. 229.

109 Mais parcimoniosas ainda costumam ser as informações acerca do aspecto físico dos personagens. Os

heróis e suas amigas são sempre tidos por extremamente belos, mas trata-se de uma beleza abstrata que quase nunca é pormenorizada. No caso da Crônica de D. Duardos, por exemplo, o único registro concreto sobre as donzelas da corte é relativo à cor dos olhos e dos cabelos (curiosamente inferida a partir das sobrancelhas) de Carmélia e Valeriza: enquanto aquela teria os cabelos louros e olhos azuis, esta tem os olhos e cabelos pretos (72, 46-47).

Dois dos perfis delineados com mais nitidez na obra são de cavaleiros oriundos da Península Ibérica, ambos de extração social inferior à dos demais protagonistas do livro, cuja maioria é formada por reis e príncipes poderosos. O primeiro é D. Floris de Lusitânia, o irmão menor de Miraguarda, dama que desempenha papel de destaque no

Palmeirim de Inglaterra, que herda do Conde Arláo, seu pai, o castelo de Almourol, às

margens do Tejo; o outro é Braceliano que se apresenta como vassalo de Beroldo, rei da Espanha (cf. 62, 42).

Desde sua primeira aparição na obra, D. Floris demonstra ser dono de temperamento voluntarioso e opiniões invulgares, impressionando Dramusiando por seu “humor Extraordinario” (5, 122). Embora fosse “bẽ nascido”, como diz o narrador, D. Floris tinha uma “desconfiança natural” que não lhe permitia sentir-se à vontade em meio aos príncipes de Constantinopla.

Mas porque nas perfeições humanas não se achão nunca virtudes puras, não lhe faltàrão a D. Floris couzas, que o fizerão ser menos amado de algũns, do que se as não tivera acontecera, porque primeiramente sendo tão bẽ nascido, que incluhia em si dos melhores sangues de Hespanha, sendo tão esforçado, e tão entendido, como no discurso desta Historia veremos, la teve hũa desconfiança natural, que o fazia não converçar com os Princepes de seu tempo de boa vontade, particularmente com os da caza de Grecia, dos quais se aborrecia de maneira, que athe de seu proprio sobrinho Primaleão se apartava, e de Florendós ainda mais, dando por razão desta esquivança, que porque elles não cuidassem que folgava elle com aquelles parentescos (6, 52- 61).

Em outra ocasião, ele justifica sua altivez e independência alegando estar convencido que “seetros, e coroas farão mais ricos os homẽns, mas não fazem mais nobres os animos” (20, 34-35). Por isso, observa o narrador, D. Floris “era em extremo bem quisto dellas [das donzelas e princesas da corte], mais que dos cavaleiros” (23, 104-105).

Não obstante protagonizar um único episódio no livro (capítulos 58 a 62), Braceliano também sobressai aos demais personagens da Crônica de D. Duardos, inclusive porque expõe sua história, dúvidas e hesitações em primeira pessoa. Certa noite, enquanto procurava abrigo para descansar de suas deambulações por terras de Espanha, Trineo (filho de Vernau, Imperador da Alemanha) vê dois homens atravessar um rio a nado e, curioso, põe-se a segui-los. O narrador, assumindo habilmente o ponto

de vista de Trineo, transcreve o saboroso diálogo entre os dois nadadores a partir do momento em que o príncipe pôde começar a acompanhá-lo, de modo que Trineo (e os leitores) não o compreendem bem. A cena, repleta de pormenores incomuns em livros de cavalarias (Braceliano e seu companheiro queixam-se do frio após sair da água e mudam de roupas, enquanto continuam a debater sobre seu caso), é descrita com a naturalidade de um observador presencial e arquitetada com grande destreza, aguçando a curiosidade do leitor. Mais tarde, depois de travar amizade com Trineo, Braceliano esclarece a situação, narrando seu envolvimento amoroso com Daraja, filha de seu vizinho. A história é apresentada com grande riqueza de detalhes: o início quase involuntário da paixão, a hesitação, os pretextos encontrados para justificar o erro e finalmente a dor de quem é ludibriado por moça tão jovem. Mesmo humilhado, Braceliano não encontrava forças para afastar-se dela: naquela mesma noite, atravessou o rio para vê-la e, como de hábito, Daraja faltara ao encontro. A complexidade do caso deixa o ouvinte perplexo:

Egraduadas as couzas assim como Trineo as Entendia, não sabia que julgasse das acções da quelle homẽ rezolvendoce emfim que nas Materias que com circunstancias mudão calidade, não podẽ ser bons juizes os que as vem defora, e devẽ so nestes cazos sello as partes (61, 52-55).

Certa casuística cortesã, que permite às damas e cavaleiros exibirem dotes retóricos e agudeza intelectual, é comum nos livros de cavalarias quinhentistas110. A singularidade da passagem em exame reside no fato de narrador e personagem não conseguirem formular uma conclusão acerca do problema proposto, deixando a questão em aberto. O caso se afigura mais incomum quando se tem em conta que a natureza do debate envolve uma grave questão moral, cuja solução é deixada a critério do leitor. Comentando um episódio semelhante do D. Duardos Segundo, de Diogo Fernandes,

110 Com efeito, um dos traços definidores da cavalaria no séc. XVI é sua aproximação ao tipo mais

representativo da época, o cortesão. O gosto pela eloqüência impõe ao cavaleiro renascentista a necessidade de dominar a arte da oratória, como notou Alberto del Río Nogueras: “Este planteamiento tiene también su consecuencia palpable en el campo de la caballería, que va tendiendo progresivamente hacia su entronque con el tipo humano del cortesano, dado a las letras y a la conversación. Y es que el caballero, por estas calendas, debe atender a algo más que a guerrear y debe completar sus habilidades con el desenvolvimiento en las artes del trato palaciego, entre las que destacan especialmente las de la charla amena” (Del caballero medieval al cortesano renacentista: un itinerario por los libros de caballerías, in: Nascimento, Airas e Ribeiro, Cristina A. (orgs.). Literatura medieval. Actas da Associação

Isabel Adelaide de Lima e Almeida observa que eles são excepcionais num gênero em que predominam “os contrastes nítidos, as esclarecedoras antíteses, o recorte franco entre bons e maus”, ocorrendo apenas nas tardias continuações impressas do Palmeirim

de Inglaterra. Segundo a estudiosa, tais episódios são “sinais de crise no paradigma que

estas narrativas persistentemente cultivam”, pois fazem periclitar “o vigor e a certeza que constitui o esteio maior do género”111.

D. Floris e Braceliano, no entanto, não são os únicos personagens que se destacam pela relativa nitidez de seu perfil: a algumas das princesas da Crônica de D.

Duardos também são atribuídos traços mais precisos e alguma sutileza de sentimentos,

incomuns à maioria das donzelas de outros livros de cavalarias. O fato acarreta conseqüências no modo como o livro retrata a convivência na corte, espaço ocupado quase unicamente por mulheres durante as aventuras dos cavaleiros, e no desenvolvimento dos relacionamentos amorosos.

O ambiente da corte costuma desempenhar nas narrativas cavaleirescas a função de espaço ideal112, que atrai para si os ânimos mais nobres e todos os acontecimentos relevantes. Sua harmonia é rompida apenas por aventuras que se lhe apresentam ou por ameaças externas. Se as aventuras (damas que vêm à procura de socorro ou aventureiros que desafiam os cavaleiros ali reunidos a fim de provar seu valor) apenas legitimam seu papel de modelo e garantia da ordem universal, a corte também estimula a cobiça de verdadeiros inimigos (invejosos sedentos de vingança, gigantes, mouros) que desejam destruí-la. Assim, verifica-se nos livros de cavalarias uma nítida oposição entre o idealizado mundo da corte, em permanente beatitude, e o mundo “exterior”, em que freqüentemente reina a deslealdade e a violência. Ainda que tal contraste seja reproduzido na Crônica de D. Duardos, importa ressaltar que neste livro a corte de Constantinopla não é desprovida de tensões internas.

Diversamente do que ocorre em outras obras do gênero, e inclusive nas continuações impressas do Palmeirim de Inglaterra, a Crônica de D. Duardos apresenta a corte de Constantinopla como palco de permanentes conflitos e desencontros de

111 Op. cit., p. 302-303. A passagem do D. Duardos Segundo a que a autora se refere está no cap. 48 da

terceira parte da obra, entre os fólios 60r e 63r da edição de 1604 (note-se que a numeração dos fólios desta edição apresenta numerosos erros: apresentamos aqui a numeração corrigida).

112 A propósito do roman courtois do séc. XII, Erich Köhler já afirmava que “la cour d´Arthur est le lieu

opiniões, especialmente entre as princesas Carmélia, Valeriza, Flérida e Gridônia113. Além da constante disputa sobre qual seria mais bela (e da inveja que todas sentiam de Carmélia, cuja formosura era tida como inigualável)114, acrescentam-se as desavenças

amorosas: ao ver como os sentimentos de D. Duardos eram desprezados por Carmélia, Flérida vinga-se no irmão dela, Vasperaldo, que a cortejava; mais tarde observa-se que Flérida “não deixava occazião de se atravessar com Carmellia” (cf. 22, 47-50 e 77, 23). Os conflitos mais agudos, no entanto, ocorrem entre Carmélia e Valeriza, que desaprova seu alheamento a pensamentos amorosos (cap. 18) antes de protagonizar com a amiga uma áspera discussão durante serão no paço (cap. 25). Mesmo depois de feitas as pazes, as duas voltam a se desentender (cf. caps. 72, 96 e seg. e 75, 59-66).

A atenção conferida aos acidentes da vida interior, especialmente no caso das princesas, faz com que o relacionamento do principal par amoroso (D. Duardos e Carmélia) sofra um desenvolvimento em certa medida incomum nos livros de cavalarias. É certo que o leitor, acostumado com as linhas gerais do gênero cavaleiresco, pressente que os dois jovens estão como que destinados um ao outro, pois a única recompensa digna do cavaleiro mais extremado só pode ser a donzela mais formosa de que se tem notícia. E, como de hábito, o caminho a percorrer até a união final dos amantes será repleto de percalços, situações em que os sentimentos do casal são ao mesmo tempo postos à prova e refinados. Ainda que muitas vezes os cavaleiros padeçam os cruéis rigores de suas altivas e aparentemente insensíveis senhoras (o exemplo mais notório desta situação é o episódio da Penha Pobre, no Amadís), não é incomum que as vicissitudes do relacionamento amoroso sejam compartilhadas pelo casal (como ocorre entre D. Duardos e Flérida, no Primaleón)115 enquanto os

empecilhos que impedem a união dos amantes e a realização do matrimônio não sejam

113 É oportuno notar que o mesmo sucede entre os personagens do reino de Boêmia (Fidélia, Enáclia e

Pleonido), embora não creiamos necessário estender nossos comentários a esta outra corte, que desempenha papel secundário na obra.

114 Quando as princesas se reúnem em Constantinopla pela primeira vez, o narrador comenta: “assi vivião

todas com tamanhos ciumes de si mesmas nos primeiros dias, que não era necessario menos que seu juizos, e descrições, para encobrirem o que cada hũa sentia” (7, 28-30). Adiante, comenta-se que Carmélia tinha “hũa certa vaidade natural, que a não fazia ser mui amadas daquellas senhoras” (18, 38- 39).

115 Não se deve confundir esses personagens com seus netos (o príncipe D. Duardos e a princesa Flérida),

que estão entre os principais protagonistas da Crônica de D. Duardos. Ao consultar o quadro genealógico dos personagens do ciclo, em anexo a este volume do trabalho, o leitor terá uma visão mais clara da

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