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Dentre os diversos livros de cavalarias portugueses do séc. XVI que permanecem inacessíveis ao grande público e virtualmente desconhecidos – seja porque não são reeditados há séculos, ou porque permanecem manuscritos – contam-se as continuações do Palmeirim de Inglaterra. Embora as obras de Diogo Fernandes e Baltasar Gonçalves Lobato não sejam propriamente inéditas, ambas estão a reclamar novas edições que as resgatem do esquecimento secular a que foram relegadas. Situação ainda pior, no entanto, é a das continuações manuscritas do Palmeirim, que permanecem virtualmente desconhecidas.

Fidelino de Figueiredo foi o primeiro a lembrar-se delas modernamente. Além de uma misteriosa História de Palmeirim de Inglaterra e de D. Duardos (texto desaparecido, que a Bibliotheca Lusitana, de Barbosa Machado, atribui a D. Gonçalo Coutinho) e da Crônica de D. Belindo, de D. Leonor Coutinho (do qual voltaremos a

hábito na crítica textual; nosso objetivo é simplesmente representar graficamente o encadeamento dos diversos livros que compõem o ciclo dos Palmeirins.

falar adiante), Figueiredo dá notícia de oito manuscritos presentes na Biblioteca Nacional de Lisboa que se ligam ao ciclo dos Palmeirins, continuando a obra de Francisco de Morais. Ainda que não os tenha lido, o pesquisador português mostrou-se inclinado a crer que esses manuscritos fossem testemunhos de uma derivação autônoma do ciclo, diversa das continuações impressas já conhecidas do Palmeirim82.

As informações de Fidelino de Figueiredo foram completadas por Massaud Moisés, num artigo de 1957. Nesta “achega bibliográfica”, o autor dá notícia de diversos livros de cavalarias inéditos e manuscritos, ampliando consideravelmente o elenco apresentado por Figueiredo: sem contar com outros textos que não mantêm relação com o ciclo que ora nos ocupa, o estudioso brasileiro listou 14 cópias das continuações do Palmeirim de Inglaterra, provenientes de diversas bibliotecas portuguesas. Embora apresentem grandes variações com relação ao título e ao número de capítulos, Moisés encontrou elementos que lhe permitiram agrupar, de modo mais organizado que seu antecessor, os manuscritos em torno das três partes nas quais se estrutura a continuação da obra de Francisco de Morais, que ele chamou de: 1. Crônica

de Primaleão (com 6 cópias); 2. Crônica de D. Duardos, I (5 cópias) e; 3. Crônica de D. Duardos, II (3 cópias), correspondentes ao que neste trabalho estamos apelidando de Crônica de D. Duardos Primeira, Segunda e Terceira Partes. Ao concluir suas

observações, Moisés considerou duas hipóteses, não excludentes entre si: que os textos em questão fossem do mesmo autor do Palmeirim, Francisco de Morais, e que poderiam ser cópias de versões manuscritas anteriores à publicação da Terceira e Quarta Partes, de Diogo Fernandes, posteriormente refundidas por ele83.

Mais de 20 anos se passaram antes que nova busca por manuscritos inéditos contendo livros de cavalarias fosse realizada na Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1982. Ainda que não tenha descoberto nenhum novo testemunho dos textos que nos interessam, João Palma-Ferreira traz mais informações sobre os manuscritos já conhecidos, transcrevendo seus capituleiros e indicando sumariamente as diferenças

82 História da Literatura Clássica. Vol. III. Continuação da 2a Época: 1580-1756 e 3a Época: 1756-1825.

2a ed., Lisboa, Livraria Clássica, 1930, p. 29-34. Algumas informações apresentadas por Figueiredo são

inexatas. A Selva de Cavallarias Famozas não se vincula ao ciclo dos Palmeirins, como o autor dá a entender. Além disso, um manuscrito referido parece estar com a numeração errada: trata-se do no 6483

(B-6-55) que, de acordo com a descrição de Figueiredo, identifica-se com o no 483 (B-6-35). Não

descobrimos se houve mudança na numeração do manuscrito (o que é pouco provável) ou se a falha se deve a erro tipográfico (a 1a edição do livro, que também consultamos, traz a mesma informação). 83 “A novela de cavalaria portuguesa: achega bibliográfica”, in: Revista de História, 29, 1959, p. 47-52.

entre eles. Os títulos dos capítulos das três partes da Crônica de D. Duardos (que ele, seguindo a sugestão de Massaud Moisés, chama de Crônica de Primaleão e Crônicas

de D. Duardos I e II) permitiram-lhe verificar que os personagens e alguns temas dessas

novelas coincidem com os das continuações de Diogo Fernandes e Baltasar Gonçalves Lobato, o que, de certa forma, já havia sido intuído por Figueiredo e Moisés. Mas, ao contrário do que propusera este último, Palma-Ferreira supôs que os manuscritos representassem reelaborações posteriores aos livros impressos e não o contrário. Dessa forma, segundo o autor, as continuações manuscritas devem ter sido produzidas já no século XVII, o que desautorizaria sua atribuição a Francisco de Morais; Palma-Ferreira sugere mesmo que essas novelas sejam do já lembrado D. Gonçalo Coutinho84.

Há pouco o que acrescentar à breve história das conjeturas acerca desses textos. Além da descoberta recente de nova cópia da primeira parte da Crônica de D.

Duardos85, resta observar que um dos mais antigos bibliógrafos portugueses, João

Franco Barreto, registra informação que tem passado despercebida e permite formular outra hipótese sobre a autoria das obras manuscritas. Em sua Bibliotheca Luzitana, que antecede a homônima de Barbosa Machado em quase um século, o autor anota a propósito de Fernão Rodrigues Lobo Soropita:

Fernão Roiz Lobbo, advogado em Lxa [Lisboa] a q chamarão Soropitta muitto feio, mas de muitta abilidade e entendimento, muitto grande Poeta Latino e vulgar. Compos as obras seguintes. Terceira e 4a parte da historia de Palmeirim de Inglaterra, em que tratta do segundo Dom Duardos que he D. Duardos de Bretanha. As quais andão impressas, dirigidas a Pero de Alcassova Carneiro, conde da Idanha, em nome de Diogo Fernandes, vizinho de Lxa daqual dizem alguns fora verdadeiramente Autor delas, mas que o Soropitta, lhas emendara86.

84 “Prefácio”, in: Crónica do Imperador Maximiliano. Transcr. de Luís Carvalho Dias e rev. de Fernando

F. Portugal. Lisboa, IN – CM / Biblioteca Nacional, 1983, em especial as p. 58-64. Também aqui, há erro de numeração em um manuscrito apresentado: o que, na p. 21, aparece com o número 569, na verdade é o 659.

85 Trata-se do cód. 12904 da Biblioteca Nacional de Lisboa, que utilizamos como base para nossa

transcrição. A descoberta foi feita por Aurelio Vargas Díaz-Toledo: cf. Os livros de cavalarias em Castela e Portugal, op. cit. Agradecemos ao autor a gentileza de enviar cópia do texto, ainda inédito.

86 Barreto, João Franco. Bibliotheca Luzitana, cópia xerográfica do ms. da Casa de Cadaval presente na

sala de reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, tomo III, p. 426. João Franco Barreto nasceu em Lisboa no ano de 1600 e morreu em data desconhecida, mas certamente posterior a 1674. Foi literato do círculo de D. Francisco de Melo, a quem acompanhou como secretário em embaixada à França por ordem de D. João IV, em 1641. Sua Bibliotheca permaneceu inédita, mas foi consultada por Diogo Barbosa Machado, que não aproveitou esta informação sobre Fernão Rodrigues Lobo. Agradecemos a Aurelio Vargas Díaz-Toledo pela indicação desta referência.

Em síntese, as informações sobre a Crônica de D. Duardos reunidas pelos pesquisadores citados são as seguintes: a seqüência do livro de Francisco de Morais é dividida em três partes, aparentemente redigidas pelo mesmo autor. Em que pese à evidente ligação entre as partes, cada uma delas devia ser considerada um livro com relativa autonomia, visto que foram copiadas em manuscritos diferentes. Quanto à autoria, as hipóteses avançadas mencionam os nomes de Francisco de Morais, Diogo Fernandes e D. Gonçalo Coutinho, aos quais devemos acrescentar o de Fernão Rodrigues Lobo, de acordo com a sugestão de João Franco Barreto. Entre as continuações manuscritas e as impressas (principalmente o D. Duardos Segundo, de Diogo Fernandes) há troca de temas e personagens, o que sugeriu aos poucos pesquisadores que examinaram a questão até agora a existência de algum tipo de parentesco entre as obras. São 15 as cópias conhecidas das diversas partes do texto, distribuídas da seguinte forma87:

1. Crônica de D. Duardos, Primeira Parte (sete manuscritos):

• Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL): cód. 483; cód. 619; cód. 620; cód. 658; cód. 6828; cód. 12904.

• Arquivo da Torre do Tombo (TT): Manuscritos da Livraria, cód. 1773 (1a

parte).

2. Crônica de D. Duardos, Segunda Parte (cinco manuscritos): • BNL: cód. 659; cód. 6829.

• TT: Manuscritos da Livraria, cód. 410; cód. 1201.

• Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa: seção de reservados. 3. Crônica de D. Duardos, Terceira Parte (três manuscritos):

• BNL: cód. 6830.

• TT: Manuscritos da Livraria, cód. 1202 e cód. 1773 (2a parte).

87 Reproduzimos aqui as conclusões da “achega bibliográfica” de Massaud Moisés, alterando apenas os

nomes por ele dados às diversas partes da Crônica e acrescentando o dado relativo ao manuscrito recentemente descoberto.

A leitura da Crônica de D. Duardos, somada a pesquisas que realizamos sobre o tema, permitem acrescentar dados novos à discussão e, ainda que sem sanar todas as dúvidas, descartar algumas das hipóteses formuladas anteriormente.

Em primeiro lugar, convém esclarecer o motivo de chamarmos ao livro em exame de Crônica de D. Duardos, contrariando uso estabelecido por Massaud Moisés. Conforme observamos anteriormente, as diferentes cópias do texto apresentam grande divergência com relação ao título. Restringindo-nos às sete cópias conhecidas da primeira parte da Crônica de D. Duardos, verifica-se que duas são intituladas Crônica

de Primaleão, Imperador de Grécia (BNL códs. 620 e 12904); outras duas chamam-se Vida de Primaleão, Imperador de Grécia ou Vida de Primaleão, Imperador de Constantinopla (TT cód. 1773, 1ª parte, e BNL cód. 483, respectivamente); Crônica do Imperador Primaleão e outros príncipes é o nome atribuído pelo copista a outro

manuscrito (BNL cód. 658). O título de apenas duas cópias faz menção a D. Duardos:

Crônica do invicto D. Duardos de Bretanha (BNL cód. 6828) e Crônica de D. Duardos

(BNL cód. 619). Na multiplicidade de títulos, que confundiu Fidelino de Figueiredo fazendo-o não notar que por trás deles havia cópias de um mesmo texto, nota-se clara predominância de referências a Primaleão. Embora tal fato possa explicar a opção de Massaud Moisés, que se decidiu pelo nome Crônica de Primaleão, a leitura do texto demonstra claramente que seu protagonista é o príncipe D. Duardos, filho de Palmeirim de Inglaterra. No cap. 58 da primeira parte, por exemplo, o narrador justifica ter negligenciado a relação de algumas aventuras de Trineo dizendo:

E se aqui não fazemos particular memoria de seus trabalhos, e dos fins gloriozos que nelles teve, he porque a Historia propria mente trata de D Duardos, e se Ouvessemos de particularizar as proezas de cada hũ dos cavalleiros que em seu tempo concorrião, fora necessaria nova formação no gosto dos homens para senão cançarẽ com volumes tão grandes88.

O motivo de a maioria dos manuscritos que preservaram o texto mencionarem o personagem Primaleão no título pode ter várias explicações: 1. as aventuras narradas são estreitamente vinculadas a Constantinopla, cuja coroa havia sido herdada por

88 Cf. no segundo volume deste trabalho, o cap. 58, linhas 13-17. Doravante, todas as citações da Crônica

de D. Duardos, Primeira Parte serão seguidas apenas da indicação do capítulo e linhas (por exemplo: 58-

13-17). As citações de passagens do texto seguem os critérios que serão expostos no cap. 3 do presente volume, eliminando-se apenas as marcas de mudança de linhas no códice.

Primaleão depois da morte do velho Imperador Palmeirim de Oliva, narrada nos últimos capítulos da obra de Francisco de Morais; 2. além disso, ao atribuir o título ao livro que copiaram, os amanuenses podem ter sido influenciados pela importância conferida ao príncipe Primaleão (neto do Imperador), especialmente nos capítulos finais da primeira parte. Com efeito, dentre os muitos cavaleiros que povoam a obra, os príncipes D. Duardos e Primaleão parecem ser os mais importantes, reproduzindo de certa forma o co-protagonismo de seus avós homônimos no Primaleón, e 1512; 3. por fim, independentemente de o livro ter sido redigido antes ou depois da publicação do D.

Duardos Segundo (aspecto que discutiremos adiante), as cópias hoje disponíveis da Crônica de D. Duardos são certamente posteriores à difusão da obra de Diogo

Fernandes. Assim, é possível que os copistas, temerosos de ver o fruto de seu trabalho confundido com o livro já impresso, atribuíssem nomes distintos ao texto. De todo modo, as vicissitudes de um texto transmitido unicamente por via manuscrita favorecem a ocorrência deste tipo de oscilação, que se verifica também entre as cópias da Crônica

de D. Belindo, de D. Leonor Coutinho.

Aludimos anteriormente às hipóteses acerca da interdependência entre as continuações manuscritas do Palmeirim de Inglaterra e as seqüências impressas por Fernandes e Lobato. Como vimos, a Crônica de D. Duardos ora foi considerada como uma espécie de rascunho preliminar, posteriormente revisto e publicado por Diogo Fernandes (tese sugerida por Massaud Moisés), ora foi tida como refundição posterior ao D. Duardos Segundo (opinião defendida por Palma-Ferreira). A leitura do texto manuscrito e a comparação com o livro publicado em 1587 são suficientes para demonstrar que nenhuma das hipóteses referidas é correta. Na realidade, conforme já havíamos sugerido ao final do item 2, entre a Crônica de D. Duardos e o D. Duardos

Segundo não há relação de dependência: trata-se de dois textos autônomos, cujo único

traço comum é a proposta de dar continuidade à mesma obra.

A coincidência quanto aos nomes de muitos personagens, verificada por Palma- Ferreira, não significa que um dos livros seja a refundição de outro89. Nada mais natural

89 Palma-Ferreira afirma que “quanto ao parentesco dos manuscritos com as 3ª e 4ª partes do Palmeirim

de Inglaterra, de Diogo Fernandes (1587), assinalamos o aproveitamento da intriga, retomando

personagens como Albaizar, Florendos, Daliarte, Gridónia, Carmélia, D. Duardos, Leonarda, Primaleão, Dramusiando, Flérida, Polendos, Pavorante, Vasperaldo, Drúsia Velona, Targiana, Aliandro, Beliasem, Floramão e tantas outras e repetindo incidentes como o da Ilha e Floresta dos Ulmeiros, de Diogo Fernandes, que é paralelo aos da Ilha e Floresta dos Loureiros que aparecem em alguns manuscritos” (op.

que haja personagens comuns às duas obras, visto que ambas não só pertencem ao mesmo ciclo, como também iniciam a narração partindo do mesmo ponto: o final do

Palmeirim de Inglaterra. O leitor de Francisco de Morais sabe bem que, depois de

relatar a terrível guerra contra o exército turco, o narrador informa que todos os reis e príncipes cristãos foram levados pelo sábio Daliarte à Ilha Perigosa. Ali, os mortos foram enterrados e os feridos receberam os cuidados necessários; naquela ilha, nascem os filhos dos principais personagens da obra, que protagonizarão as futuras aventuras. Morais informa cuidadosamente a identidade de cada um e qual sorte o destino lhes reservava: não pode surpreender portanto o fato de esses personagens figurarem nas continuações manuscritas e impressas do Palmeirim. Note-se, porém, que nenhum dos personagens novos da Crônica de D. Duardos (como D. Floris, a princesa Fidélia, o anão Pleonido, entre outros) consta do D. Duardos Segundo. Além disso, os mesmos personagens agem de modo completamente distinto nas duas obras: tome-se o caso de Albaizar como exemplo. Francisco de Morais já avisara os leitores que o filho de Targiana seria chamado Albaizar, como o pai. Nas duas obras, o jovem príncipe turco segue para Constantinopla acompanhado de seu amigo Beliazem (conforme indicação do Palmeirim), a fim de vingar a morte do pai. Ao chegar a Constantinopla, nos dois livros acontece o esperado: Albaizar começará a amar a filha de um de seus inimigos. Mas as semelhanças terminam aqui. Enquanto na Crônica de D. Duardos a eleita é Carmélia, filha de Floriano, no D. Duardos Segundo ele se apaixona pela princesa Gridônia, filha de Florendos.

Além disso, diferenças de estilo entre o texto manuscrito e o impresso impedem que se reconheçam ligações entre eles. O autor da Crônica de D. Duardos não recorre ao maravilhoso e bizarro com o mesmo exagero de Diogo Fernandes, preferindo aplicar seu talento na descrição e análise dos sentimentos e motivações íntimas dos personagens. São, em suma, dois autores com sensibilidades distintas.

Se é verdade que estamos diante de nova bifurcação do ciclo, essa constatação pode sugerir algumas conclusões a respeito da data de produção da Crônica de D.

Duardos. Não parece plausível crer que seu autor se desse ao trabalho de redigir a

cit., p. 58). A observação merece alguns reparos: em primeiro lugar, Aliandro é personagem que não existe nas continuações manuscritas do Palmeirim; além disso, não sabemos a que episódio da Floresta dos Loureiros ele se refere. Em realidade, não há elementos que permitam identificar um “aproveitamento da intriga” que comprovasse a suposta interdependência entre as obras impressa e manuscrita.

continuação do Palmeirim se soubesse da existência do D. Duardos Segundo, cuja impressão, para um admirador de livros de cavalarias como ele certamente devia ser, não passaria despercebida. Mais compreensível seria que ocorresse o contrário: isto é, que Diogo Fernandes tenha redigido seu livro sem saber que havia outro autor empenhado na mesma tarefa de dar prosseguimento ao ciclo dos Palmeirins. É claro que nosso raciocínio está baseado em conjecturas; em princípio, deveríamos admitir também a possibilidade de o autor da Crônica de D. Duardos ter posto mãos à obra exatamente por ter lido e desaprovado o livro de Fernandes. No entanto, visto que não encontramos em nenhum dos livros quaisquer referências ou desmentidos ao outro ramo da série (no estilo dos feitos pelo autor do Platir, conforme exemplificamos acima), tudo aponta para a conclusão de que os dois autores trabalharam mais ou menos no mesmo período, inscientes de haver outro escritor com o mesmo intento – o que situaria a redação da

Crônica de D. Duardos para antes de 1587, ano em que surge a primeira edição do livro

de Diogo Fernandes. A edição do D. Duardos Segundo pode inclusive ser a explicação para o fato de a Crônica de D. Duardos ter permanecido inconclusa: talvez seu autor tenha interrompido bruscamente a redação da obra quando soube que outro escritor se teria adiantado a ele no intento de apresentar ao público a seqüência do célebre

Palmeirim de Inglaterra90.

Resta ainda a questão da autoria do texto. Cumpre descartar, de imediato, as fantasiosas referências que constam em alguns dos manuscritos, fenômeno de resto comum a muitos livros de cavalarias da época. Os códices BNL 12904 e 620 não apenas atribuem a Crônica de D. Duardos a certo “Author Hibernio” chamado Guilherme Frusto, como também oferecem detalhes sobre o suposto copista da obra: tratar-se-ia de Simisberto Pachorro, que teria realizado o trabalho enquanto esteve “encantado no Cume da Penha Riguroza, da Serra da Lua, pello odio do Sabio Bragamante”. A curiosa mistura entre realidade e ficção certamente visava a aguçar a curiosidade dos potenciais leitores: afinal, o que esperar de um livro produzido em semelhantes circunstâncias? Os códices BNL 6828 e 619 alteram o nome do autor para Henrique Frusto, apresentando-o

90 Com efeito, a terceira parte da Crônica de D. Duardos, tal como transmitida pelos manuscritos

conhecidos, deixa diversas aventuras sem conclusão. Visto não haver quaisquer notícias acerca de uma hipotética quarta parte da Crônica, a explicação mais plausível para tal fato é que o autor tenha abandonado o trabalho de composição, por razão desconhecida. Em vista do que será exposto a seguir acerca da identidade do autor, não cremos que o motivo para a interrupção tenha sido sua morte; mais provável é que ele tenha desistido de levar a cabo tarefa tão trabalhosa ao tomar conhecimento da publicação do D. Duardos Segundo, de Diogo Fernandes.

como “Chronista ingres”. Além disso, as cópias acrescentam que a obra teria sido “tresladada” por “Gomes Ennes de Zurara, que fes a Chronica del Rey Dom Afonço Henrriques dePortugal” e, a fim de dar maior credibilidade à informação, notam que o texto havia sido achado recentemente (“de novo”) entre seus papéis. É evidente que Henrique (ou Guilherme) Frusto e Simisberto Pachorro nunca existiram; quanto a Zurara, não é possível que este cronista do séc. XV tenha composto uma continuação do Palmeirim de Inglaterra91.

Dentre as quatro hipóteses restantes quanto à autoria da obra, formuladas pelos diversos investigadores citados, duas são facilmente descartáveis. Embora se saiba da existência de um manuscrito intitulado História de D. Duardos e atribuído a Diogo Fernandes na seção de reservados da Livraria do Paço Ducal de Vila Viçosa, em vista do que já foi exposto sobre este autor não pode haver dúvida que se trata de um erro92. Que o autor da Crônica de D. Duardos não seja Francisco de Morais, parece igualmente claro. A continuação manuscrita é estilisticamente inferior ao Palmeirim e apresenta diversas incongruências com relação a seu antecessor93; além disso, cremos que ela terá sido redigida nas proximidades do ano 1587 – depois, portanto, da morte de Francisco de Morais (1572).

As duas outras hipóteses referentes à autoria da Crônica de D. Duardos merecem ser examinadas com mais vagar. A primeira possibilidade é que o livro tenha sido escrito por Fernão Rodrigues Lobo. Uma vez que a Bibliotheca de João Franco Barreto, onde consta a informação, permaneceu inédita, esta hipótese não foi considerada pelos poucos pesquisadores que refletiram sobre o tema. Possivelmente

91 Ainda assim, o cód. BNL 6828 exibe ainda hoje antes do primeiro fólio uma carta de Inocêncio

Francisco da Silva na qual, em resposta ao antigo proprietário do manuscrito, o Visconde de Fonte Arcada, o famoso bibliógrafo declara-se surpreso com a “descoberta” de um inédito de Zurara. O texto da

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