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A crise do Estado-nação: Rupturas e pontos de encontro

CAPÍTULO 2. DO LUGAR AO TERRITÓRIO DE USO: AS RELAÇÕES SÓCIO-

2.1. A crise do Estado-nação: Rupturas e pontos de encontro

Estudar a Identidade passa pelos significados produzidos pela sociedade sempre em um contexto espaço-temporal, ou seja, situados em um lugar e em um tempo histórico. O tempo presente mostra um modo de os sujeitos se relacionarem com o entorno que é pautado pelo capitalismo. O capital possui modos de ver e sentir a realidade a partir da produção social e territorial do trabalho. Este, por sua vez, constitui-se no cerne das rupturas entre as culturas da atualidade.

As rupturas fazem parte de um espaço fragmentado em processos de diferenciação de uma globalização que des-loca, ou seja, coloca os sujeitos em um movimento que produz territorialidades diferentes das que antes reproduzia. Para Haesbaert (2009), trata-se de espaços multipartilhados, que refletem na complexidade e na amplitude das relações globalizadas em que as fronteiras se ampliam para além da noção ou construção política de um poder estatal.

Lukács (1972) desenvolve essa questão pensando a centralidade do valor no sistema capitalista. Enquanto categoria social, a base do ser social é o trabalho que tem valor de troca na transformação do dinheiro, na dinâmica do simbólico, com o material, e com os bens adquiridos.

O processo global da reprodução econômica é a unidade de três processos, cada qual com três níveis: os ciclos do capital-dinheiro, do capital produtivo e do capital- mercadoria formam as suas partes. Mais uma vez, é preciso sublinhar desde logo: também aqui não se trata de uma decomposição simplesmente metodológica de um processo, mas do fato de que três processos econômicos reais se articulam conjuntamente num processo unitário; a decomposição conceptual não é nada mais que um reflexo no pensamento dos três processos da reprodução: o capital industrial, o capital comercial e o capital monetário. (LUKÁCS, 1972, p.58)

A pauta colocada como ordem nesse debate é a da fragilidade do poder do Estado e da sua crise diante da expansão e aprofundamento das relações econômicas planetárias. Para Haesbaert (2009, p.212), essa crise é espontânea na medida em que

(...) o avanço do capitalismo promove as interações de grandes corporações no “comando” da economia. Isso altera a forma não só de organizar o território, mas de concebê-lo como lugar do domínio privado, das redes e fluxos de uma nova ordem, e nesta ordem não se pretende incluir o poder estatal, como em outrora fora indispensável a política.

O capitalismo representa um complexo sistema de produção e trocas de mercadorias que tem na relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de propriedade, a fragmentação do território. A significação de uma sociedade capitalista ocorre quando esta se situa em uma fronteira estatal, pois, assim como Giddens (1991, p.54) afirma, “uma sociedade capitalista é uma 'sociedade' somente porque é um Estado-nação. As características do Estado-nação devem ser em grande parte explicadas e analisadas separadamente da discussão da natureza do capitalismo ou do industrialismo”.

Estas devem ser explicadas de modos distintos porque o Estado-nação pode ser visto em uma dimensão política, enquanto que o capitalismo em um viés econômico, mas isso não pressupõe que estejam desconectadas. Pelo contrário, a crise que se atribui ao poder do Estado, diante das demandas da nação, ocorre justamente por essa amplitude que o capital internacionalizado representa.

A presença, portanto, de um Estado capitalista, ocorre quando a relação trabalho e trabalhador se encontra, de tal modo que a força produtiva possa ser atraente ao capital. Isso pressupõe que esse Estado deve ser capaz de fornecer bons trabalhadores, que representem a força produtiva necessária ao funcionamento das grandes empresas.

O Estado deve ceder aos interesses particulares e individuais dos grupos que detém essa força capital. Bauman (2009, p.23/24), explica essa situação dizendo que

O Estado voltou a exibir e flexionar sua musculatura como não fazia há muito tempo, com esses propósitos: agora, porém, pelo bem da continuidade do próprio jogo que tornou sua flexibilização difícil e até – horror! - insuportável; um jogo que, curiosamente, não tolera Estados musculosos, mas ao mesmo tempo não pode sobreviver sem eles.

O propósito que está em voga é de continuar permitindo uma assistência a esses grupos econômicos, o que, para Bauman (2009), não é novidade, mas parte desse movimento que o atual capitalismo faz para continuar sua expansão por intermédio do Estado. Para Giddens (1991, p.53), o capitalismo é

(…) um sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um sistema de classes. O empreendimento

capitalista depende da produção para mercados competitivos, os preços sendo sinais para investidores, produtores e consumidores.

Ainda que as companhias multinacionais tenham orçamentos e intervenções maiores que as nações, existem aspectos em que o poder não pode rivalizar com os Estados, entre os quais estão instituições sociais mantidas por eles. Autores como Haesbaert (2009), Bauman (2009), Giddens (1991) e Santos (2006a) apresentam a subjetividade e a força do lugar em resposta ao movimento que a globalização faz quanto à cultura e condicionamento de normas que se pautam pelo consumo.

Giddens (1991, p.64) afirma que o capitalismo “foi capaz de penetrar em áreas distantes do mundo onde os Estados de sua origem não poderiam fazer valer totalmente sua influência política”. Quer dizer, essa influência política não é total, fazendo com que a dimensão da cultura e da presença de relações locais, bem como a própria organização do Estado, represente o que Haesbaert (2009), Giddens (1991) e Santos (2006a) chamam de contraponto à pretensa homogeneização da globalização, pois há uma flexibilização nas relações com o espaço e mesmo com as atividades sociais realizadas em grupo, surgindo, desse modo, os chamados localismos. “Ao mesmo tempo em que as relações sociais se tornam lateralmente esticadas e como parte do mesmo processo, vemos o fortalecimento de pressões para autonomia local e Identidade cultural regional”. (Giddens, 1991, p.61)

Giddens (1991) trata os Estados como grupo com representatividade política diante da sociedade, enquanto que as grandes corporações são como agentes dominantes dentro da economia mundial. É por isso que “a influência de qualquer Estado específico na ordem política global é fortemente condicionada pelo nível de sua riqueza (e a conexão está na força militar).” (GIDDENS, 1991, p.67). A ordem do capital torna-se a possibilidade de estabelecer relações para condicionar sua força e aprofundamento.

A relação que se estabelece entre o Estado e as grandes corporações se constitui quando o capital financeiro global precisa das forças políticas do Estado para alimentar seu sistema e renovar suas forças mediante as mudanças recorrentes. Isso reforça a afirmativa de Mészáros (2009, p.10), sobre o modo como os representantes da direita radical fantasiam (a seu próprio interesse) o recuo das fronteiras do Estado, enquanto o oposto é claramente observável, “devido a incapacidade do sistema para garantir a expansão do capital na escala requerida sem a administração, pelo Estado de doses sempre maiores de ajuda externa, de uma maneira ou de outra.”

A última grande crise, com seu ápice em 2008 e 2009, tencionou as empresas e bancos dos grandes pólos dos Estados Unidos da América e alguns países da Europa e pediu força econômica das nações. Para Mészáros (2009, p.8), a “crise estrutural do capital é a séria manifestação do encontro do sistema com seus próprios limites intrínsecos.” Segundo o autor, seria necessário um conjunto de mudanças estruturais na maneira pela qual o metabolismo social é controlado. Trata-se da oportunidade de superação de um sistema pautado pelo valor monetário e capital por um modo de gerir o Estado, de acordo com as necessidades individuais e coletivas mais amplas e urgentes.

Há uma força muito grande do capital, uma dominação dos meios e do fazer da vida por esse sistema, mas ele não é total, não é isolado e nem solitário. Ele só acontece porque tem a força dos Estados, alimentada pelo dinheiro como valor atribuído pela troca do trabalho dos indivíduos. O enfraquecimento existe, mas está nessa linha sutil entre a lógica do seu domínio e ao mesmo tempo de sua subserviência às grandes corporações.

A perversidade da globalização para Milton Santos (2006a), enquanto processo que se pauta pela mundialização do capital financeiro, é produzida por essa tirania do dinheiro e da informação, em uma convergência de normas e regras próprias na tentativa constante de manutenção desse sistema. O ponto de encontro está em uma prática social que se une ao fragmentar, que polariza o desenvolvimento de um lado e subdesenvolvimento de outro, tendo como critério universal, a acumulação do capital.

As relações humanas são pautadas por esse critério e a era do consumismo, da compressão do tempo e do espaço, que aproxima os lugares e dá a sensação de um tempo que corre, faz a sociedade ser movida a constantes crises existenciais, justamente por não conseguir codificar e acompanhar todas essas correntes transformações.

O meio informacional, em uma era tecnológica, faz sentir essa aceleração do tempo, como mecanismo da globalização, e parece de fato dissolver fronteiras. Essa alteração na relação que se estabelece com os lugares do e no mundo todo se estende e provoca rupturas na forma como os indivíduos se identificam com o aqui e o agora. Isso vai provocando também alterações na lógica ordinária das comunidades, que começam a sentir os acontecimentos mundiais cada vez mais próximas de si.

É como se fosse possível suprimir o eu do nós, ou seja, uma tal homogeneização das culturas em que as verdades de cada uma fosse substituídas por uma verdade pretensamente única. Com o olhar de Milton Santos (2006b, p.62), esse fenômeno pode ser visto como uma

verticalidade irracional, que ao se impor “desejosa de homogeneização e unificação, pretendendo sempre tomar o lugar das demais, uma racionalidade única, mas racionalidade sem razão, que transforma a existência daqueles a quem subordina numa perspectiva de alienação” nega a coexistência destes para que o eu seja continuamente formado e apagado pelo nós.

Nesse caso, o eu representa as singularidades de cada lugar, sendo sufocadas por uma única forma de ver, conceber e ver os simbolismos que marcam a sociedade em tempos de globalização. O nós é o coletivo global, que parece apagar o eu tão particular a cada território, a cada nação, a cada pequeno ou grande lugar. A dissolução do eu é que se questiona nessa perspectiva, no sentido de que as Identidades são produzidas em uma dinâmica profusa, em que o coletivo social marca a sua constituição ao mesmo tempo em que ela é marcada.

Para Paul Claval (1999, p.14), “as abordagens racionais nos lembram que o que está em jogo é, ao mesmo tempo, o eu e o nós, que não podem ser concebidos sem um olhar sobre os outros, e muito frequentemente, sem o olhar dos outros”. Quer dizer, não se trata de uma questão de dissolução de um em detrimento do outro, mas da inter-relação que se faz na formação da Identidade, que só existe a partir do olhar do outro e isso quer dizer de um coletivo. A unidade técnica, além de promover rupturas e desafios nessa constante debate sobre a Identidade, é responsável por um sistema social que se pauta pela tecnologia da informação.

Milton Santos (2006a) alia essa unidade técnica, que modifica a forma de se relacionar com o tempo, ao poder de alguns, ou seja, da possibilidade de algumas pessoas e instituições utilizarem a tecnologia para movimentar os seus padrões produtivos e suas necessidades de consumo. No entanto, participa desse processo quem pode ter acesso a essa estrutura e ainda existe uma parcela da sociedade que vive às margens dessa 'avalanche' tecnológica.

Os marcos territoriais são significados e a cultura que se reproduz no seio de cada lugar passa a ser influenciada por esse sistema. Por isso os localismos parecem se dissolver frente à expansão da cultura globalizada. Para Giddens (1991, p.60), a intensificação das relações sociais pela globalização liga as “localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. ” Esse processo em curso, que tem dado a direção dos acontecimentos no mundo, é precedido por essa expansão do capital que passa a delegar novas funções a cada dimensão do espaço geográfico.

A complexidade que envolve os processos globalizadores produz as rupturas que

integram esse conjunto de relações que constituem o espaço. Isso porque o lugar não é estático, ele não é apenas receptor de dadas normas estabelecidas pelo capital, mas responde do seu modo e com as suas características a esse movimento, fazendo com que as singularidades de alguns lugares possam surgir e se fortalecer a cada novo contato. As palavras mais adequadas que passam a fazer parte desse diálogo são: incertezas, influências, crise, transformação, unidade técnica, padrão, contra-hegemônico, todas voltadas a uma transitoriedade que é própria desse tempo.

Sobre esse período de transição, é preciso corroborar com Baumam (2010) quando ele diz que a transição que o mundo viveu – e por ora ainda vive – é de uma sociedade “sólida” de produtores para uma sociedade “líquida” de consumidores. A forma como se dá esse processo complexo, em que se realizam as atividades humanas, é como cada lugar de fato responde. Para Santos (2006b, p.213) “cada lugar é, à sua maneira, o mundo. (…) Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo torna-se exponencialmente diferente dos demais”. São os novos significados que o lugar adquire numa relação que se faz entre uma realidade empírica, que é o lugar, e outra abstrata, que é a globalização enquanto simbolismo social.

O enfraquecimento político do Estado não é suficiente para degenerar a relação singular que se estabelece com alguns símbolos que unem as culturas. A copa do mundo no Brasil, em 2014, pode ser um exemplo disso. As nacionalidades e as origens étnicas surgem para representar o time de futebol não somente pelo esporte, mas pelo lugar que cada nação ocupa dentro da significação desse esporte, que coloca em voga os melhores e os piores.

As disputas ocorrem dentro e fora de campo. Aquela de dentro do campo já é conhecida. Mas a que ocorre fora do campo, coloca as culturas em proximidade. Elas se encontram para demarcar as fronteiras de cada nação: os brasileiros, como anfitriões, mostraram em cada região seus mais típicos costumes de dança, comidas, religião, bem como as mais belas e contrastantes paisagens. Os turistas, por sua vez, conheceram e participaram por tempo determinado da cultura local, sempre comparando com a sua própria experiência. Marcam-se as Identidades culturais locais na relação com o mundo.

Quando o Brasil perdeu o jogo das quartas de final, houve uma reflexão promovida pela mídia em que o time, na posição de perdedor, foi duramente posto a críticas. Mas havia ainda dois times que lutariam pelo almejado prêmio: a taça do mundial. Argentina e Alemanha conduziriam a final do campeonato. Brasileiros de todos os lugares do país

posicionavam-se entre um e outro time. Nas conversas aqui da escola, em Santa Rosa, ficou claro que torcer para Argentina seria uma tragédia, já que a rivalidade entre brasileiros e argentinos é grande. A relação fronteiriça coloca em evidência o pertencimento ao território e os conflitos que se estabeleceram no decorrer da história.

O processo colonizador europeu dessa região se fez, sobretudo, com a inserção de alemães, italianos e russos no final do século XIX e início do século XX. Desse modo, a torcida já estava decidida: seria do time alemão. A prática da cultura alemã na região noroeste do Rio Grande do Sul, sobretudo em municípios como Santo Cristo, Santa Rosa, Três de Maio, naquele momento conferiu à decisão de uma torcida. Os relatos nas redes sociais como o facebook eram de um orgulho de ter ainda um time para torcer. Diziam: “o Brasil perdeu, mas ainda bem que sou alemã/alemão”.

A decisão de uma torcida pela Alemanha pode ser em decorrência de uma herança étnica de sujeitos que, ao denominarem-se de origem alemã, buscam significar o seu cotidiano a partir de hábitos e costumes que remetem a épocas passadas. Essas práticas sociais, que se cultuam no lugar, se misturam e fundam novas formas de produzir a sua cultura em um híbrido entre o novo e o velho - entre o atual e o passado.

Há um movimento contraditório do sistema e da própria globalização que, ao pautar-se pelo novo ao mesmo tempo em que retorna a costumes tradicionais, faz ressurgir Identidades locais. Uma contra-hegemonia que caracteriza também a globalização, pois, trata-se da significação social que se dá nos diferentes lugares. Para autores como Giddens (2003, p.23)

a globalização é a razão do ressurgimento de Identidades culturais locais em várias partes do mundo. (…) nacionalismos locais brotam como uma resposta a tendências globalizantes, à medida que o domínio de estados nacionais mais antigos enfraquece. A globalização pressiona também para os lados.

O poder do Estado-nação se altera a cada novo embate entre uma fronteira política e econômica. Ele pode se fortalecer ou enfraquecer, dependendo de sua posição nesse embate. Para Giddens (2003), criam-se novas zonas econômicas e culturais dentro e através das nações. Quando os países se unem para um novo acordo econômico, também se alteram o contexto e o rumo das decisões mundiais. A união entre Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul (BRICS), para criação de um banco com recursos para os países emergentes, é um importante contraponto na atual economia, para fragmentação do poder até então hegemônico do Banco Mundial. O capital se reinventa, a estrutura enquanto sistema econômico continua,

mas as relações de poder e fortalecimento dos territórios de países em ascensão provocam alterações na ordem mundial.

A natureza da discussão sobre as relações do Estado-nação e da globalização são fundamentais para pensar a formação da Identidade em uma dinâmica territorial. O contexto em trânsito requer esse debate, porque não se pode pensar as questões de Identidade e pertencimento sem construir a lógica na qual a própria Identidade emerge. E a Identidade está ligada aos elementos e símbolos dos Estados.

A organização da vida em sociedade assume, desse modo, a existência do múltiplo como ponto de encontro em que as expressões e costumes significam a reprodução cultural, em uma coletividade que se faz no lugar, contribuindo fortemente para formação das Identidades. Mas estas, por sua vez, estão em um campo epistemológico desafiador, principalmente do ponto de vista de que para depreender suas marcas é preciso um olhar sociológico apurado e uma compreensão geográfica afiada com as categorias de análise. O próximo item congrega essas questões, pautando a concepção de Identidade que se pretende analisar nesta dissertação.