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Aventura de um trajeto: o partir e o chegar na escola Coronel Braulio Oliveira do bairro

CAPÍTULO 4. AVENTURAS DE UMA VIAGEM: O TRAJETO AO LAJEADO

4.2. Aventura de um trajeto: o partir e o chegar na escola Coronel Braulio Oliveira do bairro

Era a segunda terça-feira do mês de julho. Esse foi o dia em que fui com o transporte escolar para o Lajeado Reginaldo. Quando deu o sinal, às 11h55min, a Lisbela correu me esperar na porta da sala dos professores. Saímos apressadamente porque a van tinha hora para retornar com os estudantes em tempo da aula no turno da tarde.

Os cintos de segurança não funcionavam. A Lisbela é a única menina do turno da manhã. Ela tenta se inserir nas brincadeiras e conversar junto com os meninos, muitas vezes sem sucesso. Havia chovido na semana anterior e as marcas deixadas nas estradas denunciavam a má conservação e a falta de atenção dispensada às vias vicinais. Por isso chamei de aventura, porque foi, de fato, uma aventura percorrer o interior do município de Santa Rosa naquela oportunidade. O assunto dos estudantes jovens era a qualidade da estrada e as possibilidades de resolver o problema:

Adolescente 1. Tu viu ali?

A apropriação territorial faz com que o assunto em voga seja o acesso que eles terão que fazer para chegar até a cidade, caso precisem. Segundo o motorista, e confirmado pela Lisbela, há anos o proprietário da terra usa esse trajeto para deslocar os animais. O problema na estrada se arrasta e a prefeitura toma medidas paliativas, as quais não resolvem o problema, pois toda vez que chove a situação se agrava. A dimensão simbólica de natureza política com esse território produz uma apropriação que leva a buscar uma solução para uma problemática que a eles pertence. Para Haesbaert (2009, p.97), esse é um movimento de territorialização, em que se “criam mediações espaciais que nos proporcionam efetivo poder sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais, poder este que é sempre multiescalar e multidimensional, material e imaterial, de dominação e apropriação ao mesmo tempo”.

É material porque está relacionado a algo concreto do cotidiano destes sujeitos que neste caso, possui um caráter político na resolução de um problema. Mas também é simbólico, porque dialoga com a dimensão de uma cultura voltada à economia, que é o gado leiteiro. Nesse sentido, a Identidade vai tomando forma e produzindo significados. Para Saquet (2007, p.148), “a Identidade é formada pelas edificações (monumentos, infra-estruturas, cidades, pontes...), línguas, mitos e ritos, a religião, enfim, pelos atos territorializantes dos atores sociais e históricos”. Isso corrobora com a ideia de que os elementos culturais e econômicos

Adolescente 1. Ali, aonde quase caiu no barranco.

Lisbela. Sim, uma rachadura bem no meio da estrada. Mas é onde passa as vaca do visinho todos os dias.

Adolescente 1. Bah, massão quase 100 cabeças daí?

Adolescente 2. Aham. Olha, aqui só com retro-escavadeira e cascalho pra pôde passar a van e os carros.

em um tempo e espaço determinados são elementos fundamentais na constituição da Identidade.

Olhar a Identidade enquanto conceito abre para um amplo debate que leva a uma dimensão teórico-metodológica. Enquanto processo de significação e prática social, merece um cuidado muito grande, principalmente para não cair em relativismos e generalizações superficiais. Esses estudantes, que expressam por meio de uma conversa informal sua forma de ver e perceber o seu lugar de vivência, estão construindo seu elo entre o simbólico e o material, entre a cultura e o território e atribuindo sentido a configuração do espaço geográfico.

Isso corrobora para configuração dos estilos de vida dos sujeitos envolvidos. Para Bourdieu (2003, p.02), se trata de um conjunto de preferências que “exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma intenção expressiva, princípio da unidade de estiloque se entrega diretamente à instituição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados”. Nesse caso, o estilo de vida é um gosto, uma apropriação simbólica e material, ao mesmo tempo de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras.

Para pensar os processos de Identidade é preciso, também, passar pelos estilos de vida, pois, são eles que determinam o conjunto de ações próprios a determinados grupos sociais na dimensão territorial. Sobre a Identidade o autor Saquet (2007, p.149), destaca que ela é

(...) constantemente, reconstruída histórica e coletivamente e se territorializa, especialmente, através de ações políticas (de gestão) e culturais. Há uma combinação de processualidade histórica e relacional na explicação da Identidade e da formação do território.

O território rural do Lajeado Reginaldo tem uma combinação simbólica que se liga a conjuntura sócio-histórica da região de Santa Rosa. As atividades e práticas sociais são marcadas por essas combinações que, de fato, territorializam. Ao compreender as lidas da roça e as preocupações com a organização do espaço, como foi o caso da via em péssimo estado, os adolescentes expressaram uma proximidade com a cultura genuinamente colonial dos imigrantes europeus que aqui se instalaram no fim do século XIX e início do século XX.

Essa primeira discussão começa com os adolescentes porque eles usam o transporte para retornar para casa da aula no turno da manhã enquanto a van busca, no mesmo momento, os alunos da tarde. As falas e expressões dos adolescentes têm marcas mais fortes e presentes

de uma prática rural, diferente das crianças, que usam em sua linguagem, uma proximidade com o imaginário, configurando-se em um desafio no momento de produzir análises. Estar inserida na infância, enquantonatureza do brincar e imaginar é uma atividade complexa e que precisa de cuidados. Para isso, é preciso ressaltar que o trajeto se divide, visivelmente, em duas partes. A primeira é daquela que acompanha as elaborações de pensamento dos adolescentes. A segunda, por sua vez, acompanha as crianças participantes da pesquisa.Não busco fazer um paralelo, mas uma discussão articulada entre as duas fases do desenvolvimento humano, o qual produz formas distintas de ver e se perceber no mundo.

Ainda seguindo o pensamento de Saquet (2007, p.147), “a Identidade se refere à vida em sociedade, a um campo simbólico e envolve a reciprocidade. Na geografia, significa, simultaneamente, espacialidade e/ou territorialidade. ” Reafirma a concepção de que a Identidade não ocorre dissociada de uma dimensão espacial e assim o é porque está situada em algum lugar e sofre influências da organização social e cultural daquele lugar. Os processos de globalização, com a força do capital financeiro global, não atingem todo o mundo da mesma forma. Aí entra a força do lugar que Milton Santos (2006b) defende. Para o autor, trata-se de uma maneira de responder a uma pretensa homogeneização inclusive dos gostos e tradições mais locais.

As atividades agrícolas, marcadas nas falas e expressões podem ser vistas abaixo:

Adolescente 2. Tu viu que as vacas estão produzindo pouco leite?

Adolescente 1. Pois é, o pai teve que fazer inseminação esse ano. Bah, mas nasceu bonito o terneiro. Só que já colocaram pra engorda né!

Adolescente 2. Olha lá àquele trator. Tu viu o barulho que faz?! Nem cabine dá pra colocar nesse. Tem que trocar tudo daí. Tinha que ser aquele grande da Massey pra passar nessas estradas.

Quer dizer, eles sabem que para estarem inseridos no sistema produtivo mais lucrativo precisam de um maquinário mais adequado. E não somente para um sistema mais eficaz, mas para a utilização das terras, já que são íngremes e de difícil acesso pelas vias mais tradicionais. Quando faltava deixar um dos últimos alunos da manhã, a van estragou. Para não precisar descer até a casa dele, ele atalhou a pé no meio da plantação.

Nesse momento o assunto das crianças era sobre peixes voadores. Sim, apesar de inusitado, era porque houve um certo pânico entre os pequenos, que não queriam perder aula. A Linda teria prova de ciências nesse dia e faltar a aula seria um desastre, já que tinha passado a manhã toda estudando. A van continuou o caminho, mesmo estragada, movendo-se em uma média de 10km/h. “Em dias de chuva não tem como pegar todas as crianças” diz o motorista, “a estrada fica muito pior”. O motorista desceu em marcha ré para frear o veículo. O cheiro de pneu queimado era, para as crianças, melado queimado.

As hipóteses criadas pelas crianças denotam que há uma construção de conhecimento e argumentos que são organizados e conhecidos nas suas famílias, mas também através da escola. A linguagem desenvolvida pelas crianças é esse reflexo do que vivem tanto em casa, quanto na escola, o que para Claval (1999) são produtos da cultura que em certo momento ou ambiente podem definir outras Identidades ou mesmo outros territórios. Logo a van passou por uma esterqueira quando o Leonardo alertou:

Michelangelo: parece que um porco soltou um pum. (risos)

Leonardo: parece que meu avô queimou borracha na lavagem.

Michelangelo: deve ser muito atrito.

Leonardo: professora, não se assusta com o cheiro de merda de porco.

Criou-se uma imagem de uma professora urbana que não reconhece outros lugares/ paisagens fora desse contexto. A dicotomia que se criou colocando de um lado o urbano e de outro o rural, como forças de atividades econômicas e divisão territorial do trabalho, também se constitui nas crianças ao cogitarem a possibilidade de a professora não conhecer então o que era um chiqueiro. Segundo Haesbaert (2009, p. 217), “comumente dissociamos e mesmo dicotomizamos as dimensões simbólico-expressiva e material-funcional do território”. Para as crianças é como se a professora, por habitar outro espaço, não reconheceria outras funções do território além da sala de aula e da escola. O sistema de valores que produzem pertencimento é diferente e semelhante ao mesmo tempo, pois em alguns momentos divergem e em outros convergem

O pertencimento se faz nessa dimensão dialética entre semelhanças e diferenças. Novamente aparece a geografia da diferença de Moreira (1999). Para o autor trata-se da “diferença como conteúdo concreto. Não diferença como mediação da Identidade, pura categoria do método da representação (…) Morte do sujeito universal. Nascimento do sujeito múltiplo. Morte e nascimento dialeticamente juntos” (MOREIRA, 1999, p.54). A reprodução da cultura encontra na realidade urbana determinados códigos territoriais que se pautam por uma prática social diferente do rural e vice-versa, em que os agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação indicam não uma realidade aparente, mas referenciais simbólicos dos costumes e modo de vida no lugar.

Há que se ter cuidado com o limite entre o rural e o urbano, pautado pela simplificação da divisão territorial do trabalho, ao se produzir análises identitárias. Se elas são múltiplas, se acompanham o movimento dialético entre morte de uma noção homogeneizadora e nascimento de uma visão plural do pertencimento, precisam, também, reconhecer que nem todos os sistemas, de valores e normas sociais, até então apropriados pelos sujeitos, se dissolveram. A globalização faz isso, refletindo diretamente sua influência sobre a forma como os sujeitos se relacionam com o lugar.

Para Resta (2014, p.49), isso expõe um pertencimento que se dissolveu e se multiplicou, para o autor

(...) alguns, aqueles tradicionalmente políticos e nacionais, declinam, e outros, regionalistas e de gênero, se reforçam. Algumas Identidades se expoliam de cotas e particularismos e assumem projetos de 'ética de alteridade' (acontece mais frequentemente de se eleger fórmulas como 'eu sou um outro' ou 'si mesmo como um outro'); outras se apegam às próprias particularidades e generalizam o espaço da específica pertença universalizando-a e impondo-se como projeto de separação

Foi com muita dificuldade que chegamos até a escola. O trajeto que normalmente levaria 1h levou, pelo menos, 25min a mais. A condição precária tanto do transporte, quanto das ruas, faz com que seja um desafio terminar os estudos até o ensino médio. A análise realizada pelos adolescentes no caminho para suas casas expressava a capacidade crítica de pensar a sua realidade. Ainda paira o questionamento de como se torna interessante estudar uma geografia na escola que nem sempre tem conexão com este conhecimento tão rico do cotidiano. E assim o é, na sua trajetória escolar, o destaque destes estudantes adolescentes, assim como das crianças, sobressai o comprometimento e força de vontade, mas os conhecimentos das disciplinas são, em sua maioria, frágeis.

Faça chuva, faça sol eles estarão lá. Essas sete crianças que participaram da pesquisa só faltam aula por motivos de doença ou se a van não passa pegá-los. O esforço em estar na escola é grande. Não porque é demorado. Não porque é longe. Mas porque as condições físicas proporcionadas são deficientes e não integralizam um direito não só constitucional, mas que hoje é considerado mínimo para realização da vida em sociedade. O direito à escola, o direito a aprender, a ser gente com dignidade. Quando a Lisbela continua participando da pesquisa, por exemplo, ela exerce a sua vida em sociedade, ela busca a realização em um coletivo.