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CAPÍTULO 2. DO LUGAR AO TERRITÓRIO DE USO: AS RELAÇÕES SÓCIO-

2.2. Identidade: o desafio epistemológico

Estudar a Identidade é um desafio epistemológico e sociológico – ainda que esta dissertação esteja no campo da geografia. É um desafio, porque para fazer a leitura da Identidade de sujeitos, é preciso passar pela individualização destes no atode ser e estar em sociedade. No campo teórico, isso implica a leitura de recentes escritores, tendo em vista a atualidade do tema. Já no campo metodológico, é preciso sagacidade no olhar às realidades vividas para buscar elementos possíveis de reprodução da cultura em uma sociedade que vive o efêmero, a instantaneidade dos fenômenos: o aqui e o agora, significados pela globalização dos meios de comunicação.

A individualidade se impõe recentemente como uma marca da modernidade que se faz com as relações da globalização. Isso porque, segundo Giddens (2002), não havia uma existência concreta do conceito de individualização, pois

em certo sentido o indivíduo não existia nas culturas tradicionais, e a individualidade não era prezada. Só com o surgimento das sociedades modernas e, mais precisamente, com a diferenciação da divisão do trabalho, foi que o indivíduo separado se tornou um ponto de atenção. (GIDDENS, 2002, p. 74)

A tradição, nesse caso, estava associada a um pertencimento comunal mais coletivo do que individualizado. As alterações que foram construídas pela modernidade8, vinculadas ao um estilo de vida, foram trazendo, paralelamente, um olhar do/para o eu na sociedade. Castells (1999, p.84), trata dessa questão dizendo que “as comunas locais, construídas por meio da ação coletiva e preservadas pela memória coletiva, constituem fontes específicas de Identidades”.

A memória é um elemento importante na preservação de estilos de vida. Ela é construída por esse coletivo e vai passando de geração a geração, de modo a solidificar a cultura local, ainda que falar em termos mais sólidos seja quase um equívoco em tempos de liquidez, como escreve Baumam em suas obras. Castells (1999) trata desses grupos como abrigos, não isolados, tampouco imutáveis, mas suscetíveis aos movimentos que a sociedade faz. Para o autor, “essas Identidades, no entanto, consistem em reações defensivas contra as condições impostas pela desordem global e pelas transformações, incontroláveis e em ritmo acelerado. Elas constroem abrigos, mas não paraísos”. (CASTELLS, 1999, p.84)

Para o sociólogo Pollak (1992), a memória é um fenômeno construído coletivamente e submetido a transformações e mudanças constantes. Também é individual, mas sempre contextualizada em uma dimensão espaço-temporal, pois ela é constituída na memória, segundo o autor, a partir de marcos ou pontos relativamente invariantes. Esses pontos passam pelos elementos constitutivos de memória, entre eles estão os acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos por tabela, ou seja, “vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. ” (POLLAK, 1999, p. 201). Além disso, tem as pessoas, os personagens e os lugares que vão compondo essa memória do fazer cotidiano, os quais criam um estilo de vida de determinado grupo.

Para Giddens, pode-se definir um estilo de vida com práticas de um indivíduo que preenchem de forma material a narrativa da Identidade de cada um. São práticas rotinizadas,

(...) incorporadas em hábitos de vestir, comer, modos de agir e lugares preferidos de encontrar os outros; mas as rotinas seguidas estão reflexivamente abertas à mudança à luz da natureza móvel da auto-Identidade. Cada uma das pequenas decisões que uma pessoa toma todo dia — o que vestir, o que comer, como conduzir-se no trabalho, com quem se encontrar à noite — contribui para essas rotinas. E todas essas escolhas (assim como as maiores e mais importantes) são decisões não só sobre como agir mas também sobre quem ser. (GIDDENS, 2002, p.80)

8Giddens (2002) refere-se à modernidade como o período a partir do século XVII, com um estilo e costumes de

Criam-se padrões a partir dessas escolhas, tão plurais na sociedade da informação, com um conjunto de hábitos e orientações que produzem a Identidade dos grupos, ainda que condicionadas às oportunidades de vida que cada um tem, teve e ainda terá. As diferentes possibilidades sociais a que se pode ter acesso, sejam elas o meio do trabalho, da educação, da saúde e do consumo mais amplo, cria diferentes formas de reproduzir a tradição. Por isso, a tradição de entregar um carro à filha que se forma, não é o mesmo para aquela família que entrega para sua filha a carteira de trabalho quando da oportunidade hoje conhecida como Jovem Aprendiz9.

A condição econômica não é determinante, ainda mais em um mundo de crédito fácil, mas ela é indicativa da influência da tradição nos estilos de vida. O mundo de possibilidades é outro, completamente diferente nos estilos culturais e nos modos em que se realizam as atividades. Enquanto a minha Lisbela precisa cuidar da casa e dos irmãos antes de estudar, outras tantas Marias e Rosas estão estudando para conquistar uma vaga em escolas de ensino médio de qualidade superior. Assim, vai se constituindo a diferença e se construindo, ao mesmo tempo, as distâncias entre os agrupamentos e as Identidades.

Para Giddens (2002), a Identidade do eu vincula-se ao ritual (que está na tradição) e, portanto, na diferenciação em relação ao outro. A diferenciação é o conceito chave para pensar a Identidade. O que me constitui, que me faz ser igual a alguns e diferente de outros? Por exemplo, Silva (s/d), cita a nacionalidade neste caso. É como se afirmar ser brasileiro fosse suficiente para explicar uma Identidade e isso se encerrasse por si só. No entanto, “eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma Identidade, as afirmações de Identidade não fariam sentido”. (SILVA, s/d, p.01)

Trata-se de uma afirmação de ser e existir em que se marcam as diferenças. Vai ser sempre uma relação entre o eu e o outro. A nacionalidade é apenas um exemplo. Para Silva (s/d), isso implica em incluir ou excluir, dizer que pertence ou que não a algo, a alguém ou a um grupo; é demarcar o que está dentro e o que está fora. É a fronteira entre nós e eles, e

dividir o mundo social entre ‘nós’ e ‘eles’ significa classificar. O processo de classificação é central na vida social. Ele pode ser entendido como um ato de

9 Pela Lei Nº 10.097/2000, ampliada pelo Decreto Federal nº 5.598/2005, trata-se de um programa do governo

federal que “Determina que todas as empresas de médio e grande porte contratem um número de aprendizes equivalente a um mínimo de 5% e um máximo de 15% do seu quadro de funcionários cujas funções demandem formação profissional.” http://www.aprendizlegal.org.br/main.asp?Team=%7B44BA8D38-9DCA-4C07-9F0B- D0B0AD8710BA%7D

significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos, em classes. A Identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações. As classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da Identidade. Isto é, as classes nas quais o mundo social é dividido não são simples agrupamentos simétricos. Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados. (SILVA, s/d, p.3)

Os privilégios a estes concedidos produziram na nossa história a sociedade de classes10. Em uma sociedade de classes, os que têm esse privilégio de classificar e atribuir valor ao outro, têm poder decisivo quanto ao estabelecimento de leis e normas sociais coletivas. A subordinação a esse sistema classificatório e, geralmente, excluso de responsabilidades compartilhadas sobre o social, precisa também do papel da resistência. Afinal, aqueles que classificam também são classificados. Nem sempre há uma consciência pelos sujeitos, os contextos é que vão se impondo e a diferença outrora esquecida se faz viva no embate diário na luta de classes.

A Identidade se faz, desse modo, no espaço vivido, na relação espaço-temporal que constrói as bases para o pertencimento. Um pertencimento que é abstrato, mas é real e concreto também. É um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que cria laços subjetivos de afetividade, tem no fixo dos lugares e dos territórios a construção de si. Uma construção transitória, mutável. Mas que está ali. E o território, conceito carregado de múltiplos significados, se faz importante para esse processo que congrega os dilemas e os desafios da sociedade que, em trânsito, procura incansavelmente encontrar seus referenciais da tradição esquecida, da comuna que resiste ou do indivíduo em busca do seu eu.