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Território e Identidade: um contexto rural na região noroeste do Rio Grande do Sul

CAPÍTULO 3. RURAL E URBANO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO OS ARRANJOS

3.3. Território e Identidade: um contexto rural na região noroeste do Rio Grande do Sul

movimento que se faz na forma como a sociedade se comporta em cada período e em determinado território. As características da Identidade têm a ver com a forma de organizar a vida na dimensão material e simbólica do território. Por isso, as ruralidades e as urbanidades que emergem deste viver o cotidiano vão dando contornos distintos na forma como se lê esses espaços e produzem rupturas nas relações sócio-espaciais mais tradicionais. Vai se colocando em jogo o que se entende por rural e o que se entende por urbano e o papel que estes lugares desempenham na formação da Identidade de crianças e adolescentes.

As sete crianças da área rural que participaram desta pesquisa receberam um caderno de anotações – o seu “Diário de Bordo”. O objetivo principal foi de que eles anotassem as atividades mais importantes de cada dia, durante um mês. As impressões, que por ventura viessem a ter, passariam pelas anotações dos diários. Isso, porque construir as características da Identidade de um grupo de crianças precisa, inevitavelmente, passar pela rotina e pelos hábitos que cada família tem e desenvolve no seio de seu cotidiano.

Entre as rotinas estabelecidas pelas famílias, está a participação nas atividades religiosas, da escola e da família. Esses três eixos traçaram a forma de planejar e se organizar de modo mais geral. Desse modo, as marcas deixadas nos relatos remetem a um jeito de ser e viver em sociedade que produz um pertencimento que não é uma constante, mas sim uma variável. Para Bauman (2005, p.17), é preciso tornar-se consciente de que

o 'pertencimento' e a 'Identidade' não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o 'pertencimento' quanto para a 'Identidade'.

Cada dimensão exposta pelos estudantes é, em certo modo, a reprodução da cultura que se constitui na região. E isso vai desde as atividades mais simples até as mais complexas em que as crianças se identificam. A reprodução das histórias nos diários é, também, o espelho que reflete o esforço dos pais em continuar a tradição com a terra através das atividades diárias que produzem esse pertencimento. Os diários representam a cultura rural e religiosa com determinadas marcas, conforme se pode ver na Figura 6:

Figura 6. Esquema dascategorias encontradas nos diários de bordo das crianças

Existem duas dimensões na escala de análise desse quadro – uma é geográfica: o território, - aoutra é sociológica: a cultura. Ambas têm em si referenciais construídos sobre o lugar, pois a vida destes sujeitos se faz na relação entre os valores, crenças e imaginários ali construídos. Para Gurevich (2013, p.33), nenhum dos marcos mais genéricos de cada contexto sócio-político pode ser “decodificado sozinho, compreendido isoladamente, mas em relação permanente com o seu entorno, em sintonia com as múltiplas escalas geográficas de análise que tenham sintonia com cada lugar do mundo”15.

Ao território compete os elementos materiais e fixos registrados nos diários. A fronteira que se faz entre as propriedades tem um simbolismo muito grande, tendo em vista que ao construir uma cerca para que o gado não fuja, se delimita a propriedade privada e a forma individual de produção. As marcas do modo capitalista de produção são muito fortes. O Donatello (9 anos) escreveu em seus diários que, sempre ao acordar, antes de brincar e realizar suas atividades da escola, realizava atividades de casa que chamava de suas “obrigações diárias”. Isso fica muito marcado também no diário do Leonardo (8 anos), que sempre relata suas atividades com a agricultura na/com a família:

dia: 13/04

Quando eu acordei e fui olhar TV e depois eu fui ajudar a minha mãe e depois eu andar de bicicleta e depois eu ajudei de novo a minha mãe e depois eu andei de novo de bicicleta e depois eu fui até o meu vô e a minha vó de bicicleta e eu almocei na minha vó e depois que eu almocei eu ajudei o meu vô e o meu pai a ageitar as maquinas e depois eu fui para casa de bicicleta ajudar a minha mãe a buscar as vacas para botar no outro piquete e na volta para a casa eu e minha mãe tivemo que buscar uma nuvilha e as vacas cecas e depois eu ajudei o meu pai a plantar grama ao redor do asude e depois eu ainda tinha que buscar as vacas de leite e quando nos terminemos de tirar leite quando nós fomos lavar o motor da ordenhadera estragou e depois eu espantei as vacas e depois eu larguei os terneiros para entrar dentro do galpão e depois eu vim para dentro de casa para tomar banho para nós ir pacear no meu amigo Leandro para a minha irmã vazer uma pesquisa e quando nós voltemos para casa para dormir.

15 Texto original: (...) decodificado em soledad, entendido aisladamente, sino em permanente relaciónconlos

entornos y los contextos, em sintoníaconlasmúltiples escalas geográficas de análisis que sean de resonanciaen cada lugar del globo.

Trata-se de uma escrita ainda muito rudimentar. Eles estão na terceira fase da alfabetização, mas tem a lógica de organização de um dia de trabalho junto com os pais. Atividades estas que geram um pertencimento que vai integrando o cotidiano e construindo o habitus. Para Bourdieu (2009), esse é um conceito complexo e amplo que define as objetividades e subjetividades das estruturas sociais. Para o autor, existem condicionantes sociais de classe que produzem determinadas condições de existência com sistemas de disposições duráveis e transponíveis como princípios geradores e organizadores

de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2009, p. 87)

São estruturas sociais que condicionam um modo de ser e agir automático de regras produzidas em um contexto cultural e territorial. Por isso, quando o Leonardo e o Donatello incorporaram as “obrigações” diárias como sendo de sua prática, configura-se como uma reprodução e obediência àqueles costumes de forma automática. Assim, se vai construindo parte da estrutura social agrícola da comunidade do Reginaldo que, dentro da própria noção do habitus, não é questionado inicialmente de qualquer probabilidade de um paradigma ou teoria, mas vai se constituindo numa forma de determinar a existência tanto econômica, quanto social, em relações familiais. Para Bourdieu (2009, p.89) são

estruturas características de uma classe determinada de condições de existência que, por meio da necessidade econômica e social que fazem pesar sobre o universo relativamente autônomo da economia doméstica e das relações familiais, ou melhor, por meio das manifestações propriamente familiais dessa necessidade externa (…), produzem as estruturas do habitus que estão por sua vez no princípio da percepção e da apreciação de toda experiência

Para Resta (2014), pode-se dizer que o pertencimento em alguns casos se dissolveu e em outros se multiplicou “àqueles tradicionalmente políticos e nacionais, declinam, e outros, regionalistas e de gênero, se reforçam. ” (RESTA, 2014, p.49). Para autores como Haesbaert (2010), esse é um movimento contraditório que o sistema faz, em que ao globalizar, em uma pretensa homogeneização das práticas cotidianas, reforça os localismos e os modos de vida mais singulares. É o caso dos gêmeos, Michelangelo e Rafael, conforme registro no diário do Rafael:

Domingo é dia das mães e a gente foi no culto depois vamos no vovô e a vovó brincamos com Donatello e vamos no acampamento e o Donatello nos mostrou o trabuco novo lá estavam os nosos primos todos a gente brincou muito.

A família dos gêmeos participa da comunidade evangélica. O culto é tradicional nos domingos, assim como a presença constante dos familiares, como os avós, tios e primos dos gêmeos. Quando os relatos se reportam à vida em casa com a família, as crianças retratam a sua relação com o trabalho rural. Isso acaba sendo automático, porque faz parte da vida de seus pais. Eles vivem o rural não só como atividade econômica, mas como uma forma de ser e sentir a vida que se realiza na materialidade do território.

Quando se trata da escola, as obrigações são outras. Diferentes daquela do mundo do trabalho, os relatos são voltados principalmente às avaliações. No diário do Rafael:

Fomos brincar com as gatinhas e os coelhinhos estão fofinhos e ficamos por lá e daí já está na hora de entrar essa semana nós também tinha a prova nós tínhamos de estudar muito todos os dias

E Michelangelo complementa em outro dia, dizendo: meu diário eu tirei 9 na prova e eu adorei e o nosso pai também, tanto que ele até comprou jogos novos e filmes como o Mar de Monstros e o Robocop e em troca vamos estudar muito.

Ou seja, há uma simbiose, um híbrido, na realização da vida no rural hoje. Há acesso a bens que antes eram comuns à área urbana. O Donatello e a Linda também relatam em suas brincadeiras a presença do videogame e dos filmes da TV por assinatura. O Raul (12 anos), por exemplo, mora no Lajeado Pessegueiro, comunidade próxima ao Reginaldo, e possui acesso à internet e TV a cabo. Em seu relato do dia 11/04:

O dia hoje está chato, porque está chovendo muito e eu estou sozinho em casa sem televisão e internet já que está trovejando e eu não posso ligar nada.

Para Bauman (2005, p.32),

é nisso que nós, habitantes do líquido mundo moderno, somos diferentes. Buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossas Identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo.

É o movimento do contraditório, do ir e vir, do permanecer e do transmutar. As Identidades se fazem nessa dança espaço-temporal na produção do pertencimento. É muito delicado assumir ou definir uma Identidade única. Por um lado há uma necessidade de sentir segurança e de manter as tradições vivas. A insegurança que as outras práticas trazem, geram medo do diferente. No entanto, essas práticas de vida que configuram a tradição de um determinado lugar também podem mudar e ganhar outros contornos. Esses estudantes são prova disso; eles vivem tanto a experiência rural, quanto a urbana. Eles são os dois e nenhum, são uma transição. Uma transição contínua e provavelmente infindável.

Infindável porque as mudanças que se constroem nas práticas de vida são características da Identidade. Essa é também a sua mística, pois nenhuma experiência ou sujeito passa só ou deixa só, é como diz Saint-Exupéry, “cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só nem nos deixa sós. Leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo.” A poesia de O Pequeno Príncipe remonta o que Bauman (2005, p.19) diz, “poucos de nós, se é que alguém, são expostos a apenas uma comunidade de ideias e princípios de cada vez”.

São os espaços de socialização que Lahire (2009) classifica como ambientes com determinados grupos de disposições sociais de pensamento ou de ação. Cada um de nós é exposto a essas disposições na família, na escola, na Igreja, no clube de mães, nos grupos de terceira idade, nos clubes de futebol, na vizinhança, no mercado, entre tantas outras possibilidades de socialização. As disposições que são atualizadas na escola, não necessariamente serão úteis na família, sendo assim também para as disposições da Igreja, talvez elas não sejam necessárias lá na escola.

Por isso essas crianças e adolescentes são a própria transição na construção da sua Identidade. Eles vivem as práticas urbanas e rurais ao mesmo tempo. Talvez em alguns momentos vivem o seu rural no urbano e vice-versa. No entanto, isso passa por uma dimensão emocional do pertencimento. Eles sentem-se ligados a realidade urbana porque usam da sua

estrutura, tais como a escola, o mercado, a farmácia para o desenvolvimento de sua prática social.

Pode-se dizer que se trata de um grupo de crianças que participa e integra uma comunidade com características uniformes de uma prática de vida amparada nos esteios da família e da religião. A escola tem um lugar importante em seu cotidiano, aparece sempre como a possibilidade de conhecer sobre as coisas do mundo, não sendo destacado aí as relações sociais entre os colegas e professores. As marcas da escola são as provas e avaliações. A amizade e as relações sociais são vinculadas à família e aos vizinhos e não à escola.

Em tempos de globalização, há uma mudança nos referenciais mais amplos do rural e do urbano, mas isso não descaracteriza a construção simbólica do trabalho vinculado às atividades com a agricultura. Quer dizer, esses pais criam vacas, porcos, galinhas, codornas e coelhos, assim como plantam milho, trigo, sorgo e outras variedades para consumo próprio como mandioca, batata, feijão, abóbora, frutas, verduras e legumes. No entanto, o que muda na relação com o território e o seu pertencimento é a possibilidade de ter acesso a outras estruturas que antes eram pensadas apenas para quem estava na área urbana. Essas crianças têm acesso aos meios de comunicação e a outros bens de consumo como qualquer criança da cidade de Santa Rosa, desde que tenham condições financeiras para isso. Muda a paisagem, mudam os hábitos e usos do espaço, mas não as possibilidades de acesso aos bens de consumo oferecidos hoje pelo mercado.

No próximo e último capítulo dessa jornada de discussões sobre a Identidade, faço o desenvolvimento do percurso de uma viagem em uma linguagem mais poética. O encontro proporcionado por essa fase da pesquisa, no segundo semestre de 2014, ligou-se às fases anteriores e encerrou um ciclo na produção de dados. Falo de uma aventura do partir e chegar à escola Braulio através do transporte escolar, mas com o encanto do olhar dos sujeitos que fazem desta realidade um desafio de vida e o superam a cada nova troca simbólica entre o rural e o urbano enquanto constituem-se em sociedade.

Capítulo 4. AVENTURAS DE UMA VIAGEM: O