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A crise habitacional na década de 1960 e a ditadura militar – a reestruturação

Capítulo I Projetos de cidades modernas e projetos de habitação popular: das reações à

I.2. Projetos de Habitação Popular

I.2.2. A Habitação Popular no Brasil

I.2.2.4. A crise habitacional na década de 1960 e a ditadura militar – a reestruturação

Mesmo com todos os empecilhos e distorções no processo de produção da moradia popular na primeira metade do século XX, a questão da moradia ainda não havia assumido o status de crise, o que iria ocorrer no início dos anos 1960. No “Plano de Metas” do presidente Juscelino Kubitscheck não há referências expressas à moradia social, as preocupações estatais se voltam para o desenvolvimento da indústria e a construção da nova capital e, assim, nenhuma proposta de política habitacional nacional é realizada.

Em 1961, sob a vigência do governo de Jânio Quadros, é proposta a criação do Instituto Brasileiro de Habitação (IBH), cujo objetivo final era o de produzir cem mil moradias. A proposta, embora transformada em Projeto de Lei, não se concretiza após a renúncia do presidente em agosto do mesmo ano (BONDUKI & KOURY, 2010). Consequência da falta de políticas eficientes no campo da

39A produção em textos e obras de alguns destes arquitetos que se destacam pela produção de

habitação, em 1962 o déficit de moradias passa a ser um problema de ordem maior e chega a configurar uma crise.

As ações empreendidas ao longo da primeira metade do século XX, considerando-se especialmente aquelas realizadas pelos IAP, pela Fundação da Casa Popular e pelo Departamento de Habitação Popular, embora não tenham de fato conseguido solucionar completamente o problema da habitação popular, tiveram o mérito de introduzir no país a noção de que a questão habitacional era um problema social a ser resolvido pelo poder público.

Durante o governo João Goulart, os arquitetos tomaram a frente do debate e deram uma contribuição relevante para uma nova política habitacional, articulada à questão urbana e vinculada com as generosas perspectivas de transformações mais estruturais da sociedade brasileira, conhecidas como “Reformas de Base”. Neste contexto, onde os principais problemas nacionais – como a questão agrária, a educação e o desenvolvimento nacional – foram debatidos sob uma intensa politização das iniciativas públicas, os arquitetos capitanearam o processo de discussão sobre a questão urbana e habitacional. Introduziram temas, abordagens e propostas novas, de tendência claramente progressista, que colocaram pela primeira vez em pauta a reforma urbana como um elemento indispensável para enfrentar a grave crise de moradia que afetava as cidades brasileiras no início dos anos 1960. (BONDUKI e KOURY, 2010:s/p, grifo nosso).

Em 1963 o Instituto de Arquitetos do Brasil promove a realização do Seminário de Habitação e Reforma Urbana, ponto alto do processo que repensava a produção da moradia popular no espaço urbano, contando com o apoio do governo federal através do Instituto de Pensões e Aposentadoria dos Servidores do Estado (IPASE). Durante o encontro grupos de trabalho discutiram diferentes aspectos relativos aos temas da habitação e do planejamento urbano no Brasil e, ao final do seminário, foi produzido um documento onde constavam considerações e propostas, incluindo a criação de uma “Política Nacional de Habitação e Reforma Urbana” que, substituindo e incorporando a Fundação da Casa Popular, executasse os programas de habitação e urbanismo em âmbito nacional.

Entre as constatações resultantes do seminário estava a ideia da moradia como um direito de todo cidadão havendo uma relação direta entre a má distribuição de renda e o déficit habitacional. Diante disso era urgente a formação de um órgão central, inexistente até então, que respondesse à demanda por habitações e realizasse uma reforma urbana, premissa para a resolução da questão habitacional. As propostas de reforma incluíam o enfrentamento de aspectos como o custo da terra e a propriedade privada do solo urbano através do planejamento e da disponibilização de áreas de interesse social destinadas à produção massiva de moradias populares. Considerava-se ainda que a participação da iniciativa privada no oferecimento da habitação social era de suma importância, assim como a participação popular em programas de desenvolvimento.

Entre as propostas estava a idealização de Planos Nacionais que orientassem a coordenação e assessoria de entidades locais, centralizando os recursos federais. Estes mesmos planos deveriam

indicar as medidas necessárias para o crescimento da indústria da construção civil e o desenvolvimento de processos construtivos, de modo a favorecer a padronização dos materiais e a pré-fabricação. Idealizava-se um Plano Nacional de Habitação (PNH) que buscasse suprir o déficit de moradias e oferecer serviços e equipamentos urbanos considerando:

a capacidade de amortização do usuário; a realidade regional e demográfica para estabelecer os tipos e as dimensões das moradias; relação entre moradia, trabalho, serviços e equipamentos urbanos; locações urbanas compatíveis com a renda familiar; medidas emergenciais voltadas para a melhoria das sub-habitações estimulando o esforço próprio, a ajuda mútua e o desenvolvimento comunitário; medidas que cerceiem a especulação imobiliária. (BONDUKI e KOURY, 2010:s/p). O PNH deveria também adotar medidas emergenciais que visavam melhorar as condições de abrigos precários como cortiços e favelas, enquanto um Plano Nacional Territorial fixaria as diretrizes para ocupação e planejamento do território, interligando os diversos planos regionais. A política habitacional seria financiada através da criação do Fundo Nacional da Habitação, administrado pelo governo central. Este obteria as verbas necessárias, entre outras formas, através da arrecadação de impostos e tributos e da contribuição de instituições públicas ou particulares, nacionais ou estrangeiras. O órgão executor financeiro seria a Caixa Econômica Federal, sob o controle de um órgão central.

Em 1964, segundo o IBGE, o déficit habitacional chegaria a cerca de oito milhões de unidades. Neste mesmo ano, o golpe militar tirou João Goulart do poder e colocou fim à ação de órgãos como os Institutos de Aposentadoria e Pensões e a FCP. Sem a implementação das propostas resultantes do Seminário de Habitação e Reforma Urbana, uma das primeiras ações do novo regime ditatorial, que perdurou até 1985, foi a criação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) e do Banco Nacional de Habitação (BNH), que “teve por meta instituir uma forte presença estatal no processo de provisão habitacional, que era também uma das áreas prioritárias naquele regime recém-instituído”, considerada estratégica por sua alta significação política, econômica e social (WERNA et al., 2001:111).

O Art. 65 da Lei 4.380 de 1964 estabelecia que as Carteiras Imobiliárias dos Institutos de Aposentadoria e Pensões não poderiam iniciar novas operações imobiliárias e seus segurados passariam a ser atendidos pela nova política habitacional. Os Institutos de Aposentadoria e Pensões deveriam vender seus conjuntos e unidades residenciais em consonância com o sistema financeiro da habitação e os recursos obtidos deveriam obrigatoriamente ser aplicados em Letras Imobiliárias emitidas pelo BNH, dado alterado em 1968 pela Lei nº 5.455, que possibilitou a aplicação dos recursos provenientes das vendas dos conjuntos habitacionais dos IAP na aquisição ou construção de imóveis destinados às instalações dos Institutos, como na construção de edifícios-sede. Após estas operações, seriam extintas as Carteiras Imobiliárias dos IAP e os inquilinos ou ocupantes de seus

imóveis residenciais seriam atendidos pelos órgãos estatais integrantes do Sistema Financeiro da Habitação. Em 1966 o Decreto-Lei n° 72 reuniu os seis Institutos de Aposentadoria e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) ligado ao Ministério do Trabalho e Previdência Social.

Com o fim dos IAP, findava também a provisão habitacional nos moldes por eles propostos. O modelo de conjunto de moradias inseridas em um grande setor urbanizado, com disposição de equipamentos comunitários e espaços verdes, próximo às regiões centrais ou vinculado a meios de transporte seria reduzido em função da produção massiva de unidades habitacionais padronizadas, ainda em conjuntos habitacionais, porém dentro de um processo de expansão das periferias das grandes cidades empreendido pelo sistema SFH/BNH/COHAB (NEGRELOS, 2010).

I.2.2.5. Uma síntese do quadro histórico da habitação popular no Brasil

Enquanto colônia, estando o poder político nas mãos de uma elite vinculada à ordem escravagista e latifundiária, não se formulou no Brasil qualquer preocupação quanto aos direitos sociais de sua população. A Constituição de 1824, assim como as demais constituições do período, não traria nada de novo quanto à problemática social e levaria ainda anos até que se considerasse a existência de um problema social que coubesse ao poder público resolver. Posteriormente, “estes direitos não foram também reconhecidos pela Constituição Republicana, que declarava não ser dever do Estado garantir tanto a educação primária quanto a assistência social” (ALVEZ, 2005:4) numa atitude típica do laissez-faire na organização social.

A manutenção da estruturação social, em que os valores da elite agroexportadora direcionavam os investimentos do Estado, ele próprio subjugado pela oligarquia cafeeira, em detrimento da melhoria das condições de vida das classes pobres, com possibilidade de ascensão social, foi determinante no sentido da inexistência de direitos sociais conferidos à totalidade da população. Também a especulação do valor da terra urbana, com reflexo na valorização das áreas centrais, com melhoramentos urbanos e obras que correspondiam às necessidades da classe dominante, implicaria no afastamento da população pobre desses locais, destinando-a a áreas periféricas onde a infraestrutura era ainda precária e as distâncias entre moradia e local de trabalho maiores.

Esses dois fatores, associados ao enfraquecimento do governo central determinado pelo poder da oligarquia agrária, contribuíram para a inexistência de programas habitacionais durante toda a República Velha, período em que as classes menos favorecidas dependiam da possibilidade de

construir sua própria moradia ou da produção privada de vilas operárias, quando não da ocupação de construções impróprias ao alojamento.

É importante, portanto, considerar as implicações sociais do reconhecimento da classe trabalhadora pelo Estado Novo como grupo que garantiria as bases e a legitimidade do governo pós- Revolução de 1930. É a partir desse reconhecimento que passam a ser garantidos pelo Estado os direitos sociais e trabalhistas do operariado, antes negligenciados pelo governo, incluindo-se na gama de direitos a garantia da habitação saudável como parte essencial dos meios de reprodução da força de trabalho, com a instituição da habitação social no Brasil.

A habitação social seria produzida inicialmente pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões, órgãos autárquicos, com a associação de Estado, empresas e empregados, eleitos por Vargas como responsáveis pela garantia de diretos sociais aos trabalhadores. Os IAP, entretanto, não eram órgãos provedores de habitação, sendo esta produção habitacional entendida como uma modalidade de aplicação de suas reservas, de modo que não atendiam a população como um todo, mas apenas os trabalhadores formais vinculados às categorias profissionais beneficiadas pelos Institutos e Caixas. Somente em 1946, com a Fundação da Casa Popular é que se estabeleceria, portanto, um órgão estatal provedor de moradia social, que atenderia a toda a população.

As produções habitacionais da FCP e dos IAP se diferenciavam não apenas porque na primeira a moradia era a própria finalidade do órgão e na segunda uma modalidade de aplicação, mas principalmente porque representavam um grande debate, atual ainda, sobre o oferecimento da casa própria ou alugada à população pobre. A moradia alugada era amplamente considerada pelos profissionais de arquitetura como a mais viável econômica e socialmente falando, por permitir o acesso a um maior número de pessoas, dado que nem todas pudessem pagar pela compra de uma casa; no entanto, pesava a ideologia de fazer dos trabalhadores também proprietários, desfazendo a associação entre riqueza e propriedade. Assim, ainda antes da formulação da FCP, no mesmo ano em que incentiva a produção da habitação popular pelos IAP através da regulamentação da atividade de suas carteiras prediais, produção esta representada majoritariamente por unidades alugadas aos associados, Vargas facilita a compra de terrenos em áreas de expansão urbana, com valores menores que aqueles com localização central, logo, acessíveis a uma parcela maior da população, destinados à autoconstrução da casa própria.

O que a princípio parece um paradoxo, garantir ao mesmo tempo moradias alugadas e próprias, pode nos direcionar também à interpretação de que as duas modalidades combinadas naquele momento poderiam representar a solução para a falta de alojamento, uma vez que a produção dos IAP atendia apenas os associados, de modo que a casa própria autoconstruída ou empreendida pela FCP poderia ser um caminho para o atendimento pleno das necessidades de moradia. Esse atendimento não ocorreu, como se sabe, acarretando na confirmação de uma crise

habitacional na década de 1960, o que, porém não diminui a importância social da produção habitacional no período compreendido entre as décadas de 1930 de 1960.

Apesar de em termos numéricos a produção dos Institutos ser pouco significativa diante da quantidade de unidades habitacionais necessárias para atender plenamente a necessidade de alojamento, em termos sociais os conjuntos habitacionais dos IAP são de grande relevância no quadro estabelecido pelo Estado Novo, com possibilidade de integração social do trabalhador- morador pela garantia da habitação. Através da construção dos conjuntos, os profissionais de arquitetura e urbanismo puderam atuar conforme o ideário moderno, que pressupunha a habitação como geradora de cidade e função social da arquitetura. O edifício multifamiliar moderno, amplamente utilizado nos projetos desses conjuntos, supera o convencionalismo gerado pelos cortiços quanto à moradia coletiva e se estabelece entre os profissionais como símbolo da habitação que poderia superar não apenas a falta de moradias, mas também os obstáculos gerados pelo custo da terra urbana, ainda hoje diretamente relacionados à produção habitacional.

Capítulo II