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A Habitação como Geradora de Cidade ou o Projeto Moderno de Cidade

Capítulo I Projetos de cidades modernas e projetos de habitação popular: das reações à

I.1. Projetos de Cidade Moderna

I.1.1. Da crítica à cidade industrial ao modernismo dos CIAM

I.1.1.6. A Habitação como Geradora de Cidade ou o Projeto Moderno de Cidade

Se a trágica condição do homem moderno está na falta de uma morada, sendo o não habitar o caráter essencial da vida metropolitana, a tarefa primordial da arquitetura e do urbanismo modernos será a procura em conciliar o homem e a paisagem, o homem e a cidade. (ANDRADE, 1992:37).

O estudo dos percursos de diferentes arquitetos, estudiosos e urbanistas ao longo da história do século XIX e início do século XX nos possibilita estabelecer pontos comuns entre as diversas abordagens consideradas modernas e as propostas precedentes desde a Revolução Industrial inglesa, que também fizeram parte da conformação do movimento moderno. Essas propostas urbanísticas tinham em comum a busca por aplacar os resultados negativos da divisão social do trabalho representada pelo dualismo cidade-campo – tais como o adensamento das áreas urbanas sem que fossem adequadamente atendidas as necessidades sociais da população – determinando o desenho de planos urbanos exaustivamente detalhados, cujas características se assemelham e se diferenciam conforme os ideais particulares de seus autores.

A indústria assume, ao mesmo tempo e paradoxalmente, o papel de causadora da desestruturação urbana e o de possível reabilitadora das cidades. Com ela o núcleo medieval se desestabiliza, o ambiente é degradado e a população trabalhadora é submetida a condições sub- humanas; com ela uma nova cidade pode se configurar, ordenada, eficiente e humanizada.

A libertação do trabalho figura nas utopias de vanguarda como objetivo político, “a promessa de libertação da máquina deve emanar de uma imaginação do futuro cuidadosamente controlada”

(TAFURI, 1985:45). No século XX as cidades deverão realizar sua própria revolução industrial: “não basta empregar sistematicamente os materiais novos, aço e concreto, que permitem uma mudança de escala e de tipologia; é preciso, para obter a eficácia moderna, anexar os métodos de estandardização e mecanização da indústria” (CHOAY, 2007:20).

Dentre os projetos urbanos modernos que buscaram superar a metrópole industrializada muitos se apresentaram como propostas antiurbanas, na medida em que se localizavam fora do espaço urbano pré-existente, podendo ser interpretadas como uma tentativa de superar no próprio plano a separação entre cidade e campo. É o caso da cidade-jardim inglesa e das Siedlungen alemãs, por exemplo. Já a cidade moderna discutida nos CIAM assume o ideal de superar o antigo dualismo cidade-campo no próprio ambiente urbano, apostando no desenvolvimento conjunto de indústria e natureza quando submetidas ao plano, embora, muitas vezes, buscando reconstruir totalmente o tecido urbano existente, realizando o que a crítica posterior convencionou chamar de “tábula rasa”.

A circulação é entendida como uma função que interliga as demais funções urbanas, sem a qual se entende que a cidade moderna não funciona. A rua antiga se tornara ineficaz diante do enorme fluxo de veículos após a Revolução Industrial, posto que não fosse dimensionada para acolher automóveis e pessoas, que passaram a disputar espaço de passagem, o que indica que a abolição da rua-corredor não tinha caráter unicamente sanitarista. As modernas vias amplas, ortogonais e hierarquizadas garantiriam a eficiência do plano, ao mesmo tempo em que o aperfeiçoamento dos meios de transporte otimizaria o uso destas vias e, consequentemente, de toda a cidade.

A questão higienista abordada desde a primeira metade do século XIX refletiu-se na cidade moderna do século XX com a proposta de desaparecimento da antiga implantação das moradias lado a lado ao longo das vias. O urbanismo moderno apostava em casas individuais isoladas em amplos lotes cultiváveis ou ainda grandes edifícios multifamiliares elevados do solo e distantes uns dos outros, permitindo a passagem de luz e ar e cuja implantação se dava em uma grande superfície verde, que servia como pano de fundo para o desenho de todo o plano.

Embora haja tantos pontos comuns entre os projetos desenvolvidos no período conseguinte à Revolução Industrial e aqueles conhecidos como parte do Movimento Moderno já no início do século XX, a grande questão que perpassa as propostas de ambos os momentos e que conecta arquitetura e urbanismo em um mesmo pensamento, ou seja, aquela que é a base da cidade moderna e se confirma como razão social da arquitetura é a habitação. Aymonino assegura (1972:52) que “se é que a cidade nova não pode ser prefigurada em seu conjunto, se formará mecanicamente

no tempo, à medida que estejam resolvidas as necessidades de alojamento: a residência moderna condicionará até transformar a cidade moderna”.19

A moradia é assim assumida no urbanismo moderno como fator fundamental para a reorganização da cidade, o mínimo elemento habitável a partir do qual naturalmente se estabeleceriam as demais funções urbanas. “Construir para o maior número a menores custos obriga a reduzir ao mínimo a superfície do alojamento” (LAMAS, 1993:338).

A célula não é apenas o primeiro elemento da cadeia de produção, mas também o elemento que condiciona a dinâmica dos agregados de construções. [...] Enquanto reprodutíveis ao infinito (tipos), encarnam conceitualmente as estruturas primeiras de uma cadeia de produção [...]. (TAFURI, 1985:71).

Ao reduzir-se ao mínimo espaço habitável a residência, também é possível prever os equipamentos e serviços de primeira necessidade que complementam a função da moradia e localizá-los na unidade de vizinhança ou no bairro. Escolas, hospitais, bibliotecas, quadras de esporte e salas de espetáculo, entre outros serviços, figuram nos diversos programas de cidades-modelos, sempre próximos às habitações onde os moradores pudessem empregar seu tempo livre e desenvolver-se física, cultural e socialmente.

Lamas (1993:338) afirma que “é através da pesquisa habitacional que são experimentadas as novas morfologias e tipologias urbanas”, pois o agrupamento de moradias, os serviços de todos os tipos e também as vias de circulação locais conformam o bairro, a principal estrutura da cidade moderna.

A pesquisa sobre a residência não termina na escala da moradia, mas prolonga-se na escala do bairro, e leva a individualizar outros elementos funcionais que compreendem certo número de moradias e certo número de serviços: as unidades de habitação - mínimo elemento projetável da cidade. (BENÉVOLO, 1983:644).

Ainda conforme Lamas (1993) o conceito de bairro foi estudado de forma mais ampla pelos arquitetos modernos do que as unidades de vizinhança, devido principalmente a uma ausência parcial de arquitetos anglo-saxões nos primeiros CIAM. Negrelos (1998:45) diferencia os conceitos considerando o bairro “como âmbito mais complexo interiormente que se articula com uma animação citadina, que não tem limites precisos pré-estabelecidos senão aqueles que a própria coletividade estabelece”, enquanto as unidades de vizinhança, como já descrito anteriormente, admitem o controle de suas dimensões e número de habitantes, além de apresentarem um caráter de autossuficiência com relação ao plano urbano geral. Os dois termos, porém garantem a compreensão de um determinado espaço residencial como ambiente onde equipamentos e serviços de primeira necessidade são integrados à moradia, servindo a um certo número de habitantes.

19 Estudiosos como Engels discordavam desta afirmação, propondo justamente o oposto, ou seja, que a

Tanto bairros quanto unidades de vizinhança admitem desde os primeiros projetos de cidades utópicas as tipologias da aglomeração de casas unifamiliares com pouca altura e da disposição de apartamentos em edifícios coletivos, sempre associando as unidades residenciais a um número suficiente de equipamentos, conforme a população moradora, às vezes no mesmo grande edifício, conformando a tipologia das unidades de habitação.

"A arquitetura moderna é a busca de um novo modelo de cidade", afirma Benévolo (1983:615). Esta suposição se confirma diante da enorme importância dada pelos arquitetos modernos ao projeto da moradia, que, como apontava Le Corbusier, pertence ao campo de trabalho da arquitetura, enquanto o quarteirão, a rua, o bairro e a cidade onde esta moradia estará pertencem ao campo do urbanismo, ratificando suas pretensões de que arquitetura e urbanismo deveriam ser indissociáveis.