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Capítulo I Projetos de cidades modernas e projetos de habitação popular: das reações à

I.1. Projetos de Cidade Moderna

I.1.2. Projetos de cidades no Brasil

I.1.2.1. Quadro Latino-americano

Alguns autores como Richard Morse e Adrián Gorelik destacam a importância de se compreender o processo de urbanização dos países latino-americanos como parte de um único processo, associando a formação das cidades em cada um deles a diversos fatores análogos. Conforme Morse (1970:13,14), é possível considerar duas etapas comuns na história urbana dos países da América Latina: a primeira coincide grosso modo com o período colonial e corresponde a uma fase centrífuga, “em que cidades espalharam caçadores de fortunas e posição social pelas terras e pelas minas” e o poder tendia a passar para os latifúndios; a segunda, por sua vez, é vista de forma aguda a partir da década de 1940 e caracteriza uma fase centrípeta, “com as migrações em massa das zonas rurais e proliferação das favelas, barriadas e villas miserias”, embora algumas cidades tenham tido crescimento rápido e contínuo já desde finais do século XIX, “quer tenham ou não sido imãs para os imigrantes de além-mar como foi o caso de São Paulo e Buenos Aires”.

O autor enumera traços comuns na história da urbanização dos países latino-americanos durante o período colonial: 1) a colonização foi admitida como um empreendimento urbano, tomando “o núcleo municipal [como] o ponto de partida para a ocupação da terra, ao contrário da cidade da Europa ocidental, que correspondeu a um movimento de energias econômicas abandonando a agricultura rumo à transformação e a distribuição”; 2)“[...] a escolha dos sítios urbanos foi frequentemente arbitrária, mal orientada ou ditada por considerações passageiras,” sendo comum “o abandono ou transferência de cidades”; 3)“[...] um primeiro momento de democracia social foi seguido pela consolidação de uma oligarquia baseada na posse da terra e na prioridade da data de chegada”, sobrepondo-se a governos centralizados enfraquecidos; 4) “as redes urbanas desenvolveram-se debilmente”, havendo certo isolamento entre as diversas cidades e maior ligação com as metrópoles europeias; e 5)

a continuidade das instituições dos processos municipais foi ameaçada pelo deslocamento do patriciado urbano para seus domínios rurais, [...] e as cidades tenderam a tornarem-se apêndices do campo, com exceção dos grandes centros privilegiados da burocracia e do comércio. [...].(MORSE, 1970:11).

O autor indica também algumas das principais razões e manifestações do crescimento centrípeto das grandes cidades da América Latina desde finais do século XIX, cujo ápice ocorreria na década de 1940:

o papel político cada vez mais importante da cidade, completando suas funções administrativas coloniais; a sua função de foco ou ponto mediador para o contato comercial e ideológico com países estrangeiros; a atração da aristocracia rural pela residência urbana e a participação em atividades políticas, empresariais e administrativas; o papel do espírito urbano liberal e ‘racional’ no sentido de comercializar, especializar e dar cunho técnico à agricultura, [...]; a construção de

uma rede de estradas de ferro e de rodagem abrindo-se em leque a partir da metrópole; a atração maciça de imigrantes e o processo diferencial de assimilação dos nacionais e dos estrangeiros; o cosmopolitismo urbano, como disposição de espírito que aguça a sensibilidade dos artistas e intelectuais no sentido de definir a identidade cultural da sua região e do seu país; o papel da cidade como gerador de forças econômicas. (MORSE, 1970:20).

O número de imigrantes e migrantes atraídos para as grandes cidades da América Latina, em fins do século XIX e início do XX, de modo geral superava a capacidade de criação de empregos estáveis nos núcleos ainda atrelados às grandes propriedades rurais. Assim, ao contrário do que ocorreu no restante dos países ocidentais, nos países latino-americanos a urbanização foi – precisou ser – mais rápida que a industrialização. Os núcleos urbanos aqui se desenvolveram mais como centros burocráticos, comerciais e culturais, não atrelando seu crescimento e modernização às necessidades geradas pela industrialização como ocorrera na Europa Ocidental, sendo São Paulo, segundo Morse (1970:295) “a mais notável exceção ao padrão latino-americano”, com atração de indústrias desde a década de 1890, associada a um processo de urbanização, embora ainda regrado pelo capital agrário.

No que se refere à modernização, Gorelik (In MIRANDA, 1999:58,59) a entende como “os processos duros de transformação, econômicos, sociais, institucionais […], aqueles processos duros que continuam transformando materialmente o mundo”, dissociada da industrialização e percebida como processo resultante da modernidade – “ethos cultural mais geral da época, como os modos de vida e organização social que vêm se generalizando e se institucionalizando sem pausa desde sua origem racional-européia nos séculos XV e XVI”. Nota-se que para o autor, a própria colonização do território latino-americano e o posterior desenvolvimento desses núcleos, já republicanos, se deram de modo moderno e foram orientados de forma a produzir “homens social, cultural e politicamente modernos”. Para essa constatação Gorelik (In MIRANDA, 1999:55) utiliza ainda a visão de Domingo Faustino Sarmiento20 de que “a cidade é a modernidade e a civilização por definição [...]. A cidade,

como conceito, é pensada como o instrumento para chegar a outra sociedade – a uma sociedade precisamente moderna” – e, portanto, falar do moderno na América Latina é falar da cidade latino- americana e entendê-la como “o produto mais genuíno da modernidade ocidental”.

Apoiando-se ainda em Bernardo Secchi21, Gorelik (In MIRANDA, 1999:60) aponta para a existência de um período dentro da lógica da cidade moderna caracterizado pelo crescimento e pela expansão ilimitada, com “‘concentração do trabalho na fábrica, da população na cidade, do domínio numa classe’”, ao qual denomina “ciclo progressista”, cuja crise dos próprios parâmetros se dá por volta da década de 1970. Dentro do “ciclo progressista”, o autor aponta três momentos que demonstram o progresso ou a expansão em seu máximo desdobramento na América Latina: “o

20 SARMIENTO, Domingo Faustino. Obras completas. Buenos Aires: Editorial Luz del Día, 1953. t.XLII. p.225. 21 SECCHI, Bernardo. Le condizione sono cambiate, 1984. In: Un progetto per l'urbanistica. Turim: Einaudi, 1989.

momento da ‘modernização conservadora’ de finais do século XIX, o das vanguardas dos anos trinta e o do desenvolvimentismo dos anos cinquenta e sessenta” (GORELIK In MIRANDA, 1999:61), que coincidem, de certo modo, com a fase apontada por Morse como aquela de adensamento populacional e posterior crescimento centrípeto das cidades latino-americanas, observados desde o final do século XIX e exacerbados na década de 1940.

Os Estados liberais latino-americanos, no final do século XIX, caracterizam o momento de “modernização conservadora” ao reagirem contra o crescimento espontâneo das cidades, entendido como precursor de desordem e destruição das estruturas sociais. Tomando como princípio conter a expansão se vêem obrigados a negar a própria identidade liberal, o laissez-faire, e protagonizam obras urbanísticas, que por um lado contém o crescimento desorganizado e, por outro, dão início a um novo espaço urbano, uma nova expansão.

São exemplos de intervenção urbanística em finais do século XIX o boulevard circular, uma tentativa de controle da expansão urbana, que funcionou “ao mesmo tempo, como modo de distribuição idealmente equivalente do território urbanizável e como propulsor do novo ciclo de especulação que terminaria por superá-lo uma vez ou outra”; o parque público, local da elite tradicional por excelência, porém gerador de novos hábitos urbanos e novas formas de socialização que incluíam diferentes estratos sociais; e o traçado ortogonal, “marca da vontade política do Estado de guiar a expansão e que, ao fazê-lo, atuou como via de propagação do espaço público a toda a cidade, e meio de integração potencial dos novos setores populares no coração urbano” (GORELIK In MIRANDA, 1999:63).

Assim se gesta o território público da expansão e, sobre ele, o ideal de uma relação orgânica entre modernidade e modernização, entre determinados tipos de espaço público urbano e modalidades da cidadania. Centros cívicos, boulevards, perspectivas com fachadas contínuas classicizantes, monumentos republicanos, parques: artefatos produzidos pelo discurso político e urbanístico moderno, que se propõe a reformar a cidade através de um modelo de intervenção confiante em sua capacidade de garantir a passagem de uma sociedade tradicional a outra moderna. (GORELIKIn MIRANDA, 1999:63).

O segundo momento do ciclo progressista, conforme Gorelik (In MIRANDA, 1999:65), começa ainda nos anos 1920, mas se fortalece e toma corpo na década de 1930 com a construção do “Estado nacionalista benfeitor que surge da reorganização capitalista pós-crise” e dá condições à atuação da vanguarda, que agora, porém, não assume a posição destrutiva característica de sua formação, mas ao contrário, tem a tarefa de construir o futuro da sociedade, economia e cultura nacionais. Essa compreensão do papel diferenciado das vanguardas “é o que permite entender a partir de uma nova perspectiva a tensão existente entre arquitetura moderna e Estado nos anos trinta na América Latina, como momento construtivo por excelência”.

O território americano não foi só o lugar da carência (de sentido de lugar, de história, de tradição): também, e justamente por isso, foi o lugar onde o novo podia emergir puro.

[...]

Aqui não se podia propor a tabula rasa, porque o problema local por excelência era a tabula rasa: não havia um passado acadêmico para aproveitar e reciclar, mas um vazio a preencher, o que explica o salto sem mediações, por cima da história, endereçado aos mitos de origem, para inventar um passado para uma ‘comunidade nacional’ que dele necessitava para formar-se como tal. (GORELIK In MIRANDA, 1999:64,67).

Não se deve concluir, porém, aponta Gorelik (In MIRANDA, 1999:64,65) que “tenha ocorrido o típico mal-entendido transculturador [sic], no qual se ‘importa’ deslocando em tempo e significado os conteúdos ‘reais’ das vanguardas”. O fato assinalado pelo autor é que “a América Latina, o Sul, [...] foi o lugar onde a construção, mais do que possível, era inevitável”, assumindo o papel possibilitado pela dialética da vanguarda de Benjamin, que conectou a vanguarda artística, de caráter devastador, “com a cidade modernista, definida por sua construtividade.”

Essa construtividade explica o apelo ao Estado, característica decisiva nas duas vanguardas arquitetônicas e urbanas mais importantes da América Latina, a brasileira e a mexicana[22], ainda mais que em nenhuma outra parte a arquitetura de vanguarda foi arquitetura de Estado. (GORELIK In MIRANDA, 1999:66).

O terceiro momento do ciclo progressista, o desenvolvimentista, leva consigo o princípio da revisão da vanguarda e tem como seu elemento simbólico a construção de Brasília.

Nunca antes a modernidade urbana presidiu de tal modo – de modo tão ideológico e prescritivo – a modernização. E nunca antes o Estado havia assumido de modo tão completo o conjunto das tarefas culturais para produzir a transformação social: se no fim do século XIX encontramos um Estado que entronca no ciclo expansivo apesar de si mesmo (a modernidade aparecia ali como figura de ordem que devia controlar a modernização); e se nos anos trinta a entente vanguarda/Estado se produz nos fatos (a modernidade vanguardista como construtora de identidade para conduzir a uma modernização nacional empreendida pelo Estado); no desenvolvimentismo, o Estado vai reunir toda a tradição construtiva, incorporando em seu seio a pulsão vanguardista: o Estado se torna institucionalmente vanguarda moderna e a cidade, sua picareta modernizadora. (GORELIKIn MIRANDA, 1999:67).

Nos anos 1950 a América Latina figura no Ocidente como lócus da possibilidade de implantação da modernização, possibilitando a concretização do ideal da planificação. Esperava-se através do plano evitar e eliminar os problemas sentidos pelos países europeus e Estados Unidos desde o pós-guerra. É possível afirmar que o Estado assume o papel de vanguarda no controle da modernização, numa tentativa de recuperar esta função perdida pelas demais sociedades dos países ocidentais e entendendo novamente a cidade como criadora de uma sociedade moderna. Nos anos

22 Uma tentativa de comparação entre a produção de conjuntos de habitação popular entre as décadas de

1930 e 1960 no Brasil e no México, tomando como base seu entendimento como projeto moderno de cidade foi realizada em nosso trabalho apresentado no “IV Seminário Internacional Brasil-Argentina-México” realizado em Uberlândia-MG em 2012.

1970, porém, o ideal do plano passa a ser refutado nos países ocidentais, bem como o ideário de crescimento e expansão e, com ele, a cidade moderna. Também na América Latina, encerrando o ciclo progressista, a planificação desenvolvimentista é criticada, nem tanto pela imposição do modernismo, mas pela imposição política, pela crença de que não era possível confiar a reforma e a planificação sociais ao Estado.