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CAPÍTULO 1 A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, A CIÊNCIA E O CAMPO

1.2 A Ciência e os Paradigmas de Pesquisa – a revolução de um campo ou

1.2.4 A crise paradigmática na produção do conhecimento

Ao abordarmos o tema da produção do conhecimento e o fazermos a partir de uma abordagem sobre a ciência, não podemos deixar de referir o debate sobre a crise paradigmática que, segundo Santos (2001), permeia a sociedade contemporânea, incluindo aí as ciências em geral. Ele entra no debate afirmando que estamos em tempos de transição paradigmática em duas principais dimensões: a epistemológica e a societal. “A transição epistemológica ocorre entre o paradigma

dominante da ciência moderna e o paradigma emergente que designo por paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente” (p. 16).

Esse autor explica os contornos da ciência moderna, que ele denomina de paradigma dominante, pautados na racionalidade científica do positivismo oitocentista “em que só há duas formas de conhecimento científico – as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais” (SANTOS, 2001, p. 65), e, neste contexto, as Ciências Sociais nasceram para ser empíricas. Mas, ressalta que esse modo mecanicista teve duas vertentes nas Ciências Sociais:

a primeira [o positivismo], sem dúvida dominante, consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade todos os princípios epistemológicos e metodológicos que dominavam o estudo da natureza desde o século XVI; a segunda [a fenomenologia], durante muito tempo marginal mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e na sua distinção radical em relação à natureza (SANTOS, 2001, p. 65).

As duas vertentes (o positivismo e a fenomenologia) já foram explicitadas nos itens anteriores. Aqui interessa destacar que este autor considera ambas como representante do paradigma dominante, mesmo que a segunda represente um sinal de crise e contenha alguns elementos de transição para um outro paradigma científico.

Santos (2001) também aborda o que ele chama de ciência pós-moderna, no seio da qual se encontram as contradições negadas pelo paradigma tradicional. Mas, ao mesmo tempo, o próprio paradigma tradicional contém conhecimentos do paradigma emergente, sendo inegável que, nesse paradigma, o conhecimento tende a ser não dualista.

É antes um conhecimento baseado na superação de todas essas distinções familiares e óbvias que, até há pouco, tomávamos como certas: sujeito/objeto, natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, espírito/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, animal/pessoa (SANTOS, 2001, p. 90).

Ele argumenta que estamos vivendo uma série de mudanças em todos os campos da sociedade, como as que ocorrem no campo das novas tecnologias, revelando transformações de várias ordens, até mesmo no comportamento dos

indivíduos diante dessas alterações. Nesse movimento, a própria ciência e o paradigma moderno passam a ser questionados, inclusive pelos próprios cientistas.

Outros autores, como Morin (2002), também vão se preocupar com essas questões. Para ele, o cenário atual é de reflexões sobre a complexidade da ciência e dos paradigmas. Estamos diante de um desafio, científico e social, pois existe uma inadequação, cada vez maior, profunda e grave entre os nossos conhecimentos partidos e compartimentalizados em disciplinas e realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, globais. A ciência está no âmago da sociedade e mesmo sendo diferente da mesma, dela não se separa, o que significa que todas as ciências, incluindo as físicas e biológicas, são sociais. Entretanto, não devemos esquecer suas origens históricas, seu papel desempenhado na sociedade, seja para o bem, seja para o mal. Ciência não é pura ideologia social, porque estabelece incessante diálogo na relação pesquisa- conhecimento-fenômeno.

É necessário, portanto, que toda ciência se interrogue sobre suas estruturas ideológicas e seu enraizamento sociocultural. Aqui, damo- nos conta de que nos falta uma ciência capital, a ciência das coisas do espírito ou noologia, capaz de conceber como e em que condições culturais as idéias se agrupam, se encadeiam, se ajustam, constituem sistemas que se auto-regulam, se autodefendem, se automutiplicam, se autopropagam. Falta-nos uma sociologia do conhecimento científico que seja não só poderosa, mas também mais complexa do que a ciência que examina. Isso significa que estamos na aurora de um esforço de fôlego e profundo,

que necessita de múltiplos desenvolvimentos novos, a fim de permitir que a atividade científica disponha dos meios da reflexividade, isto é, da auto-interrogação (MORIN, 2002, p. 25-26 –

itálico no original).

Na continuidade, esse autor vai tecer críticas à ciência moderna e vai defender um novo olhar para a ciência a partir do que ele chama de pensamento complexo. A nosso ver, a sua abordagem é característica do movimento atual de reflexão sobre a ciência e sobre a crise que os paradigmas científicos estão atravessando, como propõe Santos (2001).

Interessante reflexão é feita por Cunha (1998), quando se utiliza dos postulados de Santos para problematizar a discussão sobre a crise de paradigmas. Para esta autora, as ciências humanas buscaram estatuto científico seguindo o caminho das ciências da natureza, visto que era esse o caminho legitimado no

campo científico. Entretanto, essa lógica tornou-se fragilizada, ocasionando uma crise na contemporaneidade que acabou por se constituir num amplo espaço para a elaboração e sistematização de novas alternativas epistemológicas para os estudiosos da área.

A contribuição dos estudos na área da filosofia, sociologia, antropologia e economia e até na física einsteniana favoreceu o entendimento de que o universo não é linearmente planejado e que a sociedade humana é movida por forças contraditórias, além de manifestar interesses emergentes de situações históricas. Portanto, as Ciências Sociais são prenhes de intencionalidade, não podendo ser estudadas na lógica da objetividade das ciências naturais. Ao contrário, a perspectiva futura é de que se invertam as forças de influência, isto é, a lógica das ciências humanas e sociais é que tende a definir a estruturação das ciências naturais (CUNHA, 1998, p. 27-28).

Santos (2001), ao analisar os caminhos históricos da ciência e diagnosticar a crise do paradigma dominante, anuncia uma emergência de uma nova perspectiva de fazer ciência. Essa concepção admite a não-neutralidade, reconhece a intencionalidade e concebe a ciência como um ato humano historicamente situado, que envolve a consideração de um novo paradigma baseado em “um conhecimento prudente para uma vida decente”.

Com esta designação quero significar que a natureza da revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorreu numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente) (p. 74).

Vale destacar que Cunha (1998) faz uma interessante análise sobre a proximidade entre os construtos de Santos e os formulados por autores como Bourdieu e Bernstein, especialmente quando eles fazem uma relação entre epistemologia e estrutura socioculturais, de forma, que, concordando com ela, vamos apresentar a seguir a teoria da ação social de Bourdieu, especificamente em suas elaborações sobre o campo científico, como teoria fundamental para análise da realidade que este estudo se propõe a fazer.

Assim, é importante salientar que Bourdieu também reconhece que atualmente a Ciência Social passa por uma situação descrita como de crise, o que, para ele, era inteiramente favorável ao progresso científico. A Ciência Social, para ser considerada uma ciência como as outras, elaborou um falso ‘paradigma’, que se pautou na ilusão de uma ciência unificada. A crise se instala quando há um desmoronamento dessa ilusão, o que é um progresso considerável. A busca de legitimação da Ciência Social se fez com base numa estratégia de dominação ideológica quase consciente que forjou uma estrutura monopolística de certo grupo de cientistas (de diferentes filiações positivistas) sobre a Ciência Social.

Assim, para mim, a “crise” de que se fala hoje é uma crise de uma ortodoxia, e a proliferação das heresias é, em minha opinião, um progresso em direção à cientificidade. Não é por acaso que a imaginação científica se viu liberada e que todas as possibilidades que a sociologia oferece estejam novamente abertas. Agora está-se novamente enfrentando um campo com lutas que têm alguma possibilidade de se tornarem lutas científicas, isto é, confrontos regrados de tal modo que, para triunfar, é preciso ser científico: não será mais possível triunfar unicamente dissertando de modo vago sobre ascription/achievement e sobre anomia, ou apresentando quadros estatísticos teoricamente, logo, empiricamente mal construídos sobre a “alienação” dos workers [...] (BOURDIEU, 1990, p. 54).

Por outra parte, Bourdieu também defende que a ciência tem que pensar o seu próprio pensamento, pois uma sociologia do conhecimento que não reflete sobre si está fadada a ser suplantada, e se tornar apenas instrumento da sociedade. Para ele, a sociologia “é uma ciência crítica, crítica dela mesma e das outras ciências; crítica também dos poderes, inclusive dos poderes da ciência” (1983, p. 40). E, se reportando ao próprio sociólogo, ele diz que “deixar em estado impensado o seu próprio pensamento é, para um sociólogo mais ainda que para qualquer outro pensador, ficar condenado a ser apenas instrumento daquilo que ele quer pensar” (2004, p. 36). Ao olhar com um pouco mais de atenção para a obra que este autor nos deixou, nos parece que ele seguiu à risca seus próprios preceitos.

1.3 PIERRE BOURDIEU e sua contribuição para o estudo da produção do