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CAPÍTULO 1 A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, A CIÊNCIA E O CAMPO

1.3 PIERRE BOURDIEU e sua contribuição para o estudo da produção do

1.3.3 Campo científico como espaço definidor de um tipo de ciência

O movimento de legitimação e conservação de um campo anda em paralelo com a conservação dos que nele permanecem e ocupam uma posição de dominação. Essa permanência se dá a partir da busca pela autoridade científica, capital social que assegura um poder sobre mecanismos constitutivos do campo. Essa espécie particular de capital, que pode ser acumulado, transmitido ou reconvertido em outras espécies, favorece a aquisição de capital suplementar: acesso a cargos, a fundos de pesquisa, distinções, bolsas, etc.

Bourdieu (2003) nos diz que no campo científico essa espécie de capital social tem um valor diferencial: acumular capital é fazer um ‘nome’, um nome próprio, um nome reconhecido, marca que distingue seu portador, arrancando-o como forma visível do fundo indiferenciado, despercebido, obscuro, no qual se perde o homem comum.

A busca dessa autoridade se dá dentro do próprio campo, porque os produtores de pesquisa têm como clientes seus próprios concorrentes, são eles que avaliam o valor dos seus produtos e vão imputar determinada autoridade científica para um agente.

Nessa luta está em jogo o poder de impor uma definição de ciência que mais esteja de acordo com seus interesses específicos. A definição mais apropriada será a que lhe permita ocupar legitimamente a posição dominante e a que assegure, aos

talentos científicos de que ele é detentor, a título pessoal ou institucional, a mais alta posição na hierarquia dos valores científicos. Nesse jogo (luta), aqueles que conseguem impor uma definição de ciência são os dominantes e eles conseguem impor a premissa de que “a realização mais perfeita (de ciência) consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem” (BOURDIEU, 2003, p. 118).

A luta e concorrência dentro dos campos também se refletem na busca de legitimação de subáreas ou subcampos do conhecimento (como podemos designar o campo acadêmico de estudos sobre política educacional), o que leva os pesquisadores a lançarem mão de estratégias de fortalecimento da área, conforme trataremos nos capítulo seis. Ou seja, mesmo que o campo seja marcado por lutas, os agentes que o compõem têm pelo menos o interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma ‘cumplicidade objetiva’ para além das lutas que os opõem. Observamos, então, que esse procedimento revela que os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se reduzem apenas ao interesse de tipo econômico. Há um interesse coletivo de manter o campo em funcionamento.

A estrutura da distribuição do capital científico está na base das transformações do campo científico e se manifesta por intermédio das estratégias de conservação ou de subversão da estrutura que ela mesma produz. A posição de cada agente é resultado das estratégias desse agente e seus concorrentes; as transformações da estrutura do campo são o produto das estratégias de conservação ou subversão do campo. Os investimentos dependem da posição do agente no campo – sua importância no campo, a importância do seu capital e o potencial de reconhecimento de sua posição atual e potencial no campo -, de forma que, para compreender as transformações das práticas científicas é preciso relacionar as diferentes estratégias científicas com a importância do capital possuído (BOURDIEU,2003).

Ou seja, o campo científico é um lugar de luta concorrencial mais ou menos desigual entre agentes desigualmente dotados de capital específico. Nessa luta se deve “cada vez, procurar as formas específicas, entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência” (BOURDIEU, 1983, p. 89). Essa luta pela autoridade científica ocorre teoricamente a partir de duas formas estruturais: o monopólio do capital e a concorrência perfeita. Dominante e dominados vão recorrer a diferentes estratégias para se manterem no campo.

Bourdieu (2003) diz que os dominantes, por exemplo, recorrem às estratégias de conservação da ordem estabelecida visando sua perpetuação. A ordem aqui é compreendida como a ciência em estado objetivado (instrumentos, métodos, técnicas, etc) e em estado incorporado (habitus científico) e mais um conjunto de instituições encarregadas de assegurar a produção e a veiculação dessa produção (escola, revistas, academias, prêmios...). Os novatos, por seu turno, podem orientar- se para as estratégias de sucessão ou de subversão. Tais estratégias dependem das disposições em relação à ordem social estabelecida.

Mas, não se deve esquecer que no campo científico, assim como em outros campos específicos, ocorrem movimentos de revolução, inclusive porque sua lógica interna não é refratária aos condicionantes do próprio universo social. Ou seja, o campo científico e a própria ciência vão sofrer alterações/transformações ao longo da história, num processo que Thomas Kuhn, por exemplo, chamou de teoria das revoluções científicas. Como acontece a revolução dentro do campo científico? Como já ressaltamos, Bourdieu nos lembra que os interesses que estão em jogo no jogo do campo científico são ao mesmo tempo científicos e políticos. Ele ressalta que uma propriedade específica e menos visível em um campo é a de que todas as pessoas que nele estão engajadas têm um certo número de interesses fundamentais em comum, a saber, tudo aquilo que está ligado à própria existência do campo. Além disso, o campo científico tem uma ordem social que serve aos interesses daqueles que recebem seus proveitos (estando fora ou dentro do mesmo).

O fato de que o campo científico comporta sempre uma parte de arbitrário social na medida em que ele se serve dos interesses de quem é capaz (no campo e/ou fora dele) de receber os proveitos não exclui que, sob certas condições, a própria lógica do campo (em particular, a luta entre dominantes e recém-chegados e a censura mútua que daí resulta) exerça um desvio sistemático dos fins que transforma continuamente a busca dos interesses privados (no duplo sentido da palavra) em algo proveitoso para o progresso da ciência (BOURDIEU, 2003, p. 130).

A ciência (e as transformações que ela sofre) tem a dupla função de se legitimar ideologicamente dentro do próprio campo científico e de se colocar frente à sociedade em geral como uma resposta legítima aos problemas via aplicação de critérios objetivos. Então, a teoria e o método que ela comporta ocupam lugar de destaque nas possibilidades de revoluções, pois, mesmo havendo uma relação entre

as rupturas científicas, as revoluções contra a ordem científica e as revoluções contra a ordem estabelecida, “os interessados estão dentro do campo e o equipamento necessário à revolução científica só pode ser adquirido na e pela cidadela científica” (BOURDIEU, 2003, p. 143).