• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, A CIÊNCIA E O CAMPO

1.3 PIERRE BOURDIEU e sua contribuição para o estudo da produção do

1.3.2 A noção de campo científico

Para Bourdieu (2003), o campo científico pode ser entendido como o espaço de jogo de uma luta concorrencial pelo monopólio da autoridade científica “(capacidade técnica e poder social) e da competência científica (capacidade de falar e agir legitimamente, isto é, de maneira autorizada e com autoridade) que são socialmente outorgadas a um agente determinado” (p. 122). Isto é, o funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse o que, por seu turno, resulta dizer que é inútil distinguir interesses científicos e interesses sociais. Dizer que esse campo é o lugar da luta concorrencial pelo monopólio da autoridade científica é dizer que “o próprio funcionamento do campo científico produz e supõe uma forma específica de interesse, pois as práticas científicas aparecem desinteressadas apenas quando referidas a interesses diferentes, produzidos e exigidos por outros campos” (p. 123).

Assim, as práticas científicas são permeadas não apenas por interesses cognoscitivos ou ideológicos, mas também por interesses orientados para a aquisição de autoridade científica (prestígio, reconhecimento, celebridade, etc). Para ressaltar esse fenômeno, Bourdieu (2003) cita Reif (1961):

Um cientista procura fazer as pesquisas que ele considera importantes. Mas a satisfação intrínseca e o interesse não são suas únicas motivações. Isto transparece quando observamos o que acontece quando um pesquisador descobre uma publicação com os resultados a que ele estava quase chegando: fica quase transtornado, ainda que o interesse intrínseco de seu trabalho não tenha sido afetado. Isto porque seu trabalho não deve ser interessante somente para ele, mas deve ser também importante para os outros13 (p. 114-115).

Para Bourdieu (2003), a análise do campo científico deve abarcar uma análise interna, no campo epistemológico, e uma externa, que aludiria às condições sociais do aparecimento de tal campo.

É o campo científico (lugar de luta política pela dominação científica) que designa a cada pesquisador, em função da sua posição, seus problemas, políticos e científicos, bem como seus métodos e estratégias científicas que - por se definirem expressa ou objetivamente pela referência ao sistema de posições políticas e científicas constitutivas do campo científico - são ao mesmo tempo estratégias políticas. Não há “escolha” científica – do campo de pesquisa, métodos empregados, lugar de publicação; ou entre uma publicação imediata de resultados parcialmente verificados e uma publicação tardia de resultados plenamente controlados - que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico, a obtenção do reconhecimento dos pares-concorrentes (p. 116).

Segundo este autor, o tipo de luta científico-política pela legitimidade depende da estrutura que se forja no interior de cada campo, que é também condicionada por fatores externos a ele. O campo de pesquisa sobre o tema política educacional no Brasil pode ser considerado um campo (ou subcampo) que já possui legitimação no espaço acadêmico. Isso se considerarmos alguns indícios como: a grande quantidade de publicações na área; os núcleos/grupos de pesquisa sobre o tema que já se encontram registrados no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq) e na CAPES, alguns vinculados a PPGEs; os grupos de trabalho mais ou menos consolidados em instituições científicas amplamente reconhecidas nacional e internacionalmente, como o da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

13 Grifados no original.

Além disso, em todos os campos são encontrados os dominantes14, cujas posições advêm do reconhecimento do montante do capital científico de que são detentores, e os dominados, ou novatos, que necessitam ter reconhecida a importância do seu capital, das suas potencialidades, bem como da sua posição atual e potencial no campo. Na realidade os “aspirantes” a pesquisador, por exemplo, os candidatos a alunos de cursos de pós-graduação, precisam conhecer as temáticas que vêm sendo desenvolvidas pelos pesquisadores “dominantes” do programa, para se adequar às mesmas ou para conferir até que ponto seus interesses de pesquisas vão se intercambiar. Há ainda um jogo de forças nele presentes, cujo resultado vai permitir, ou não, o avanço significativo da produção do conhecimento de que o campo se ocupa (BOURDIEU, 2003).

Ou seja, há uma busca por um processo de legitimação que se processa por meio de uma série de ritos e práticas que passam pela percepção da importância e interesse pelo que se pesquisa, não apenas para o pesquisador, mas também para os outros. Entendendo estes outros como os pares-concorrentes da comunidade científica, ou seja, a luta pela autoridade científica vai incidir sobre as escolhas (político-científica) que o pesquisador faz do objeto a ser pesquisado. Essa importância e interesse que o tema/objeto de estudo encerra também estão intimamente ligados à abordagem epistemológica de determinado grupo/linha de pesquisadores. Isso significa que, para um grupo que defende pesquisa como intervenção na realidade, em tese, não interessam pesquisas teóricas contemplativas (como, por exemplo, as do tipo descritivo) que não visassem, como produto final, a possibilidade de influenciar ou mesmo intervir, de forma a superar problemas detectados.

Dizer que o campo científico é um espaço de lutas é reconhecer que essas lutas se dão não apenas no campo epistemológico, mas também no campo político dos interesses, assim o funcionamento do campo científico supõe e produz uma forma específica de interesse (as práticas científicas não são desinteressadas). São práticas orientadas para a aquisição de autoridade científica, traduzida em prestígio, reconhecimento, que estão atreladas à competência técnica do pesquisador (opção por um método reconhecido/imposição de uma definição de ciência que suponha

14 “É dominante quem consegue impor uma definição de ciência pela qual a realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem” (BOURDIEU, 2003, p. 18).

uma boa maneira de fazer ciência) e ao interesse externo que sua pesquisa desperta.

Esse pensamento é singular para entender a sociologia do conhecimento proposta por Bourdieu, principalmente quando podemos contrapô-la a outras formas já conhecidas no campo científico da educação e ciência social. O positivismo lógico de Popper (1999, p. 14), por exemplo, defende que a teoria do conhecimento deve esclarecer a tensão entre conhecimento e ignorância, os problemas da Sociologia surgiriam da constatação “de que algo no nosso pretenso saber não está em ordem”. Ou seja, o interesse aqui reside na saída de um estado de ignorância para um estado de conhecimento e um problema (e o interesse) nas Ciências Sociais pode ser algo meramente epistemológico. Adorno (1983, p. 49) se contrapõe a essa forma de pensar e diz que os problemas sociais é que devem se constituir em interesses para as Ciências Sociais, os problemas práticos, “talvez até uma situação problemática do mundo”.

Ou seja, a forma de pensar sobre a ciência e de entender a lógica da teoria do conhecimento também traz implícitos os interesses científicos, que são, ao mesmo tempo, políticos e sociais. Pode-se dizer também que o interesse científico é intrínseco e extrínseco, busca-se pesquisar não apenas o que é interessante para si próprio e para sua carreira acadêmica, mas também o que é relevante para a comunidade científica, aquilo que os pares-concorrentes reconhecem como um problema cientificamente relevante e viável. O problema de pesquisa é então indissociavelmente político e científico e as estratégias de pesquisa (métodos) são ao mesmo tempo estratégias políticas.

A sociologia da ciência repousa no postulado de que a verdade – mesmo em se tratando desse produto particular que é a verdade científica – reside numa espécie particular de condições sociais de produção, isto é, mais precisamente, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo científico. O universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciência é um campo social como outro qualquer, “com suas relações de força e monopólios, lutas e estratégias, interesses e lucros, mas no qual todas essas invariantes se revestem de formas específicas” (BOURDIEU, 2003, p. 122).

Dessa forma, podemos concordar com Bourdieu quando ele afirma que a ‘crise’ atual que acomete a sociologia é produtiva e leva ao progresso da Ciência Social e coloca questões cruciais para a produção do conhecimento. As lutas, a

concorrência e a complexidade cada vez maior dos problemas sociais que emergem da dinamicidade do mundo social vão fazer surgir novos grupos e novas formas de pesquisar que buscarão reconhecimento legítimo frente à comunidade científica. Isso, claro, leva aos riscos dos modismos e também pode gerar equívocos de ordem epistemológica, tal como aconteceu no campo da Educação.

Referimo-nos, por exemplo, a práticas ainda muito presentes nos projetos de pesquisa em Educação, tais como: tratar a metodologia como um âmbito que independa, mesmo que parcialmente, do delineamento teórico da construção do objeto, criar quadros teóricos que “constroem a priori o objeto”, restringindo a investigação a uma prática em que os achados, previamente definidos, são sempre identificados pelo “trabalho de campo” [...] (BRANDÃO; BONAMINO, 1999, p. 93).