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CAPÍTULO 5 CONHECIMENTO E INTERESSE: uma análise dos fatores que

5.1 Programas e projetos educacionais como foco principal dos interesses

A relação entre conhecimento e interesse no campo de estudo sobre política educacional, sem nenhuma surpresa nesta pesquisa, está identificada na maior quantidade de investigações desenvolvidas sobre programas e projetos educacionais em ação nos diferentes níveis do nosso estado federativo. Em outras palavras, dizemos que os programas e projetos educacionais postos em movimento pela ação da política pública são um dos principais objetos de interesse dos pesquisadores.

Na medida em que estamos trabalhando com a pesquisa sobre política educacional, área que é alimentada e que ao mesmo tempo influencia a própria política em ação, podemos citar Muller e Surel (2002), que discutem o conceito de política pública considerando-a, ao mesmo tempo, como um construto social e um construto de pesquisa, de forma que os contornos de uma política “são sempre suscetíveis de serem postos em questão, através de um processo constante de redefinição da estrutura, e, portanto, dos limites dos campos políticos” (p. 13). É essa dinâmica que está na base da existência do campo acadêmico que estamos investigando: a política em ação alimenta o campo científico e os resultados advindos das pesquisas alimentam o campo político.

Não é demais relembrar que este campo está marcado por escolhas, ordenações, seleções e demais atos que configuram a existência e as formas de organização de um campo de pesquisa e, direta ou indiretamente, trazem as marcas das relações de força e de poder próprias desse espaço. Aqui ressaltamos que há uma forte influência dos condicionantes advindos da própria política educacional (da ação do Estado). Os programas e projetos educacionais são uma das formas de materialização da ação do Estado no campo da educação, e esses projetos e programas vão fazer emergir objetos de estudo que vão dar vida aos estudos nesse campo (AZEVEDO; AGUIAR, 2001a).

Considerando a realidade brasileira que, nos âmbitos político, econômico e social, sofreu diversas mudanças a partir do final da década de 1980, imputando diversas transformações no campo da educação, a partir da implementação de

novas políticas públicas para o setor, partimos do pressuposto que o interesse por uma pesquisa sobre política educacional e, conseqüentemente, a escolha de um objeto de estudo advêm, principalmente, dos programas e projetos de política educacional em ação em determinado tempo político. Esse fato já havia sido constatado em pesquisas do tipo estado da arte como as de Azevedo e Aguiar (2001a, 2001b), cujos resultados mostraram que os estudos sobre política educacional vêm se ampliando ano a ano e que os estudos que analisam programas e projetos governamentais constituem o grupo de maior expressão quantitativa dentre os analisados pelas autoras. Nesse sentido, encontrar entre nossos entrevistados casos nos quais programas e projetos vão se transmutar em objetos de estudo consistiu em algo relativamente constante.

Desde 1995 que eu estudo uma política que é Política de Alimentação Escolar, já tenho algumas coisas publicadas (Entrevista 10).

Os dados apontam que isso vem acontecendo dentro dos PPGEs pesquisados a partir de contingências distintas, conforme buscaremos explicitar nessa etapa do nosso estudo. No levantamento preliminar que fizemos a partir dos dados da avaliação da CAPES, já constatamos um grande número de projetos de pesquisas, dissertações e teses sendo elaborados cuja temática se referia a algum programa ou projeto governamental, sejam estes projetos executados nas esferas municipal, estadual ou federal, conforme apresentamos no capítulo anterior.

Mas essa constatação não é suficiente para entender as ressignificações, os movimentos de conciliação e conflito que estão na base da formação e legitimação de um campo acadêmico que constitui uma prática social que se expressa através de um discurso legítimo. Quais as condições de produção desse discurso? Que contingências vão influenciar a escolha por esse ou aquele objeto de estudo? Por que esse e não aquele projeto governamental vai ser transmutado em objeto de estudo? São estas questões que tentamos esclarecer.

Dentre os dados levantados, observamos que a entrada no próprio campo de estudo sobre a política às vezes acontece por uma aproximação com um dos programas governamentais como podemos apreender das falas de um dos nossos entrevistados.

Como é que se dá a minha guinada para a política pública para a educação? A partir dos seminários de implantação do FUNDEF em 1997. Em 97 nós participamos através do grupo na área de gestão em políticas públicas em educação aqui da UXX, da pós-graduação aqui da UXX, nós participamos dos diversos seminários de formação para divulgar no Nordeste essa nova política do FUNDEF e logo de imediato eu também entrei para o doutorado e meu tema de estudo foram, precisamente, os conselhos de acompanhamento e controle do FUNDEF (Entrevista 13).

Esse sujeito inicia sua carreira de pesquisador a partir do momento em que passa a integrar o corpo docente de uma universidade pública (a partir de um concurso público) e essa sua integração o leva a aproximar-se de um grupo de estudos que é convidado pelo órgão governamental competente a divulgar esse programa de financiamento da educação pública. O que se vê é que dessa aproximação origina-se o interesse por um estudo mais preciso e mais abrangente desse programa, o que leva o sujeito a transformar o programa em um objeto de estudo. Ou seja, uma prática social gera a possibilidade do surgimento de uma nova prática discursiva que será, por sua vez, engendrada por discursos e geradora de discursos.

No que diz respeito à relação entre conhecimento e interesse, algumas inferências podem ser feitas sobre essa escolha. Naquele momento, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF) era uma medida nova, tanto que o governo solicita ajuda da universidade para divulgação dessa política no NE. Esse pesquisador conta, durante sua entrevista, que foi uma experiência muito interessante, pois ele passou a conhecer a realidade de algumas cidades dessa região, especificamente na Paraíba, que ele visitou durante esse trabalho de divulgação, além de conhecer os pormenores de tal medida de política. Um programa novo e da amplitude que se revestiu (como se sabe, o FUNDEF foi um Fundo de amplitude nacional e se tornou marco na história da política e do financiamento da educação no Brasil) se constitui justamente num objeto promissor, com chances de trazer lucro garantido para quem se propusesse a investir numa pesquisa sobre o mesmo. E assim, articulado a interesses subjetivos, dada a história de vida do entrevistado que se encanta pela educação (ele não foi graduado na área de educação), há a percepção prospectiva do pesquisador que vê nesse objeto a possibilidade de um investimento promissor, o que de fato vai acontecer, já que o sujeito em tela escreve sua tese de doutoramento sobre o

assunto e continua, na condição de doutor pesquisador, a investigar o assunto e a publicar sobre o mesmo. Assim, ganha reconhecimento do seu trabalho, tanto dentro da universidade quanto no campo da pesquisa, haja vista os trabalhos publicados e sua inserção em eventos nacionais e regionais.

Aqui é possível abrir um parênteses para comentar a função da universidade pública e de seus pesquisadores que são chamados pelas instâncias públicas para ajudar a divulgar, avaliar e até implementar medidas de política. Esse movimento também exerce influência diversa sobre as pesquisas, assunto que retomaremos em alguns pontos desse trabalho.

Nesse movimento de investigar os objetos de interesse das pesquisas, encontramos, também entre nossos entrevistados, uma heterogeneidade discursiva no tratamento e entendimento sobre a política educacional. Dentre eles, identificamos uma definição clara da complexidade que envolve os estudos sobre a política educacional e os programas e projetos em ação. Isto nos leva a pensar, junto com Muller e Surel (2002), que não basta entender e apenas apontar/delimitar as ações postas em execução por determinada administração, pois a operação de delimitar as fronteiras de uma política pública é sempre um tanto aleatória, o que significa dizer que os contornos de uma política não se acham previamente estabelecidos como algo já “dado”. “Ao contrário, eles são sempre suscetíveis de serem postos em questão, através de um processo constante de redefinição da estrutura, e, portanto, dos limites dos campos políticos” (p. 13). Em meio a essa dinâmica complexa é que programas e projetos em ação são os focos mais constantes de análise.

Eu tenho tido na definição dos temas de pesquisa, eu acho que são dois eixos: o eixo da busca da compreensão desses fenômenos nas atuais circunstâncias, buscando apreender que os objetos de estudo vão se configurando de acordo com as condições históricas e sociais em busca de dar conta um pouco dessa discussão. Mas, por outro lado também, articulando isso com algumas indicações empíricas de políticas que estão em desenvolvimento. Eu diria que existe aí uma dinâmica entre esses dois pólos. Ao mesmo tempo uma preocupação teórica de compreender essa nova rearticulação política, mas também entender como essa relação vai rebater na ponta do sistema, na parte da implementação das políticas. Porque você sabe que nessa área das políticas públicas entre a formulação da agenda, que é um grande debate, que nem tudo que está na agenda se transforma em políticas, e nem todas as políticas se implementam como foram concebidas. Então um pouco a gente tem procurado entender essa inflexão da agenda da política, da

formulação da política, da implementação da política. É mais ou menos assim o aspecto que tem dado norte pra gente pensar o recorte das temáticas (Entrevista 05).

Mas é um trabalho que estuda uma política [Programa de Alimentação Escolar], mas ele estuda a partir das representações e das práticas que envolvem no cotidiano da escola. Não era muito um estudo convencional da política, parte também dos referenciais de política educacional, trabalhei um pouco com cultura escolar e com práticas e representações, também tenho trabalhado desde dessa época com a sociologia de Pierre Bourdieu... Na época da tese trabalhei com a teoria das representações sociais, tentei essa aproximação, mas levando mais em consideração à cultura escolar, como a política se manifestava no cotidiano da escola e quais os desdobramentos dela, em termo de influência no currículo que se desenvolvia na escola (Entrevista 10).

Tal como havíamos pressuposto, as políticas em ação, especificamente os programas e projetos governamentais específicos, enquanto uma prática social, vão se transformando em objetos de estudo. Mas, é importante observarmos os sentidos interdiscursivos que revestem os discursos acima.

O primeiro trecho de entrevista mostra um entendimento amplo acerca dos estudos sobre política educacional, isso porque ele tem a preocupação de destacar que é necessário observar “as condições históricas e sociais” que marcam as discussões articuladas com os dados empíricos. Além disso, ele tem clareza do processo complexo que envolve o movimento de implementação de uma política (entrada na agenda, formulação e ação propriamente ditas). Já o segundo, está mais interessado em destacar que ele chamou de “um estudo não muito convencional sobre política”, já que estudou o cotidiano da escola. Ora, mas não é no cotidiano da escola que as políticas educacionais se materializam? Talvez o problema seja de fundo teórico-metodológico. O primeiro discurso apresenta uma formulação próxima de uma abordagem global e relacional sobre a política, tal como propõe Muller e Surel (2002), por exemplo, em sua proposta de avaliação de políticas públicas, como também se aproxima de uma abordagem dialética de leitura da realidade na medida em que defende a análise das condições sociais e dos movimentos complexos que estão na base da formulação da política.

Por outro lado, a partir dos discursos podemos nos arriscar a comentar a relação dialética que existe entre o discurso e a mudança social. Tomando como exemplo o FUNDEF, listado acima como um objeto de análise por um dos nossos entrevistados, é certo afirmamos que desde o momento de sua implantação essa

medida de política foi amplamente analisada48, o que nos leva a inferir que os resultados dessas análises em articulação com os resultados empíricos advindos da implementação da mesma contribuíram para a nova configuração discursiva que hoje reveste a política de financiamento no Brasil na qual esse fundo foi substituído por um outro: o Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB).

Para Bourdieu, a escolha de determinados projetos ou programas governamentais também sofre a influência de modismos que acometem o campo acadêmico e sociológico. No campo da educação, estudos sobre diferentes temas já foram ou são focos dos modismos, como, por exemplo, os estudos sobre o cotidiano escolar, a violência na escola, a inclusão educacional, que também influenciaram e influenciam as políticas públicas. Assim, os programas e projetos que buscam dar visibilidade ao “problema social da moda” também será objeto de estudo por parte dos pesquisadores. No campo da política educacional podemos citar, por exemplo, o movimento de municipalização da educação que gerou diversos programas e projetos educacionais nas diferentes esferas governamentais e foram amplamente estudados.

Também é interessante lembrar que o surgimento e fortalecimento das próprias linhas de pesquisa sobre o tema dentro dos PPGEs aqui em estudo, deu-se justamente no início da década de 90 do século passado, momento de grande explosão de novas políticas para o setor educacional, conforme já relatamos no capítulo 2. O próprio estudo de Gonçalves (2003) mostrou que novas práticas discursivas, formadas por diferentes discursos, foram se formando no campo da pesquisa sobre política educacional na medida em que a abertura política proporcionada pelo processo de redemocratização se instalou aqui no nosso país nesse período, o que engendrou novas práticas sociais no campo da política educacional, gerando diferentes e novos programas e projetos, tal como é próprio do movimento do real.

Essas constatações nos levam a tentar entender e analisar as contingências que estão na base das escolhas para, assim, compreender melhor o campo estudado.