• Nenhum resultado encontrado

A cultura e as mentalidades, ou a República contra si mesma

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 47-50)

Por fim, completando o leque de interpretações historiográficas que procuram desvelar os factores que concorreram para a queda da Primeira República portuguesa, abordamos o campo da cultura e das mentalidades, seguindo a proposta de António Reis - “Epílogo – o fim da Primeira República” (2009).

Demarcando-se da historiografia marxista, do determinismo inerente à exclusiva qualificação dos factores económico-sociais na explicação das rupturas históricas, António Reis considera que a resposta para a queda do regime republicano se encontra num número de factores político-culturais, protagonistas de alguma

autonomia relativamente aos efeitos destrutivos da entrada de Portugal na Grande Guerra de 1914-1918. Relativizando os impactos do conflito mundial no tecido social, económico e político do país, refere que nem a questão religiosa64 – em parte sanada

após a revisão da Lei de Separação, em 1918 -, nem a questão do regime – bastante aplacada pelas amnistias aos envolvidos nos golpes monárquicos e pela legalização do partido monárquico, em 1921 -, tão pouco a questão operária – de peso relativo, dado o escasso número do operariado no conjunto da população (menos de 5%), a sua divisão e menor atividade depois de 1921 -, ou a questão da conjuntura internacional – em 1926, os autoritarismos não gozavam ainda de um quadro irreversivelmente favorável -, foram determinantes para a falência das instituições republicanas liberais. Depois do pico de violência atingido durante a “noite sangrenta” (19 de outubro de 1921), e das eleições de 29 de janeiro de 1922, que reconduziram o PRP à maioria parlamentar, o regime encontrou alguma estabilidade governativa. Até finais do ano de 1923, António Maria da Silva, líder dos democráticos desde o afastamento de Afonso Costa, chefiou três executivos consecutivos e durante esse tempo iniciou-se a reforma fiscal, primeira pedra do edifício de saneamento das finanças.

Os factores políticos que lavraram o insucesso republicano, segundo o autor, são: 1) O agravamento da crise de legitimidade e representatividade do regime. À já referida falta de transparência e lealdade eleitoral, deficiente representação dos grupos sociais e desproporcional, porque diminuto, peso político dos maiores grupos de pressão da sociedade, somou-se a fragmentação e indisciplina partidárias, e a intensificação do sectarismo e da intolerância cívica. Estes dois últimos ingredientes acentuaram o afastamento das bases, notório na elevação da abstenção para níveis acima dos 60%. 2) A incapacidade de auto e hetero-regulação do funcionamento do sistema institucional. Neste aspecto, António Reis salienta a responsabilidade dos dirigentes políticos, insensíveis às propostas de reforma provindas da intelectualidade65. 3) A incapacidade de fazer frente à oligarquia financeira,

64

Por concordarmos com António Reis, não incluímos neste capítulo teses fundamentadas na clivagem social provocada pela Lei de Separação e o jacobinismo republicano para justificar o isolamento e queda da Primeira República. O PRP, sob a direção de António Maria da Silva, operou uma mudança de posicionamento. Moderando-se face aos adversários, permitiu alguma inclusão política, embora sob as condições restritas inerentes à hegemonia dos democráticos sobre o sistema político. O sentido do laicismo no projeto republicano deve ser visto em CATROGA, 2010, pp. 201-233.

65

António Reis enuncia os principias pontos da proposta dos seareiros: reforço dos poderes presidenciais, mais frequente uso de autorizações legislativas especiais, formação de governos de

relacionada com a falta de um plano económico-social coerente, de uma ideia sólida do papel do Estado, e com as derivas provocadas por políticas conjunturais, paliativas, que abriam o flanco às atividades especulativas dos grupos económicos privados. 4) A reorganização do campo conservador, possibilitada pelo relegar da questão do regime (república ou monarquia) para segundo plano, unindo-se as direitas no objectivo de provocação de uma situação ditatorial, militarizada. 5) O factor militar, o envolvimento do corpo de oficiais - engrossado pela incorporação de dois mil milicianos, depois da guerra - nos partidos, condicionando a sua ação, até à ofensiva autónoma, em nome das próprias Forças Armadas, notória a partir do golpe de 18 de abril de 1925.

Não menos esclarecedores, segundo António Reis, são os factores culturais: 1) A perda de confiança das elites intelectuais na classe política dominante. O surgimento do Grupo Seara Nova, à esquerda, do Integralismo Lusitano, à direita, sinalizam a generalização do fenómeno, e também o modernismo futurista, dentro das novas correntes de estética, refletia “(…) a crise global da mundividência positivista republicana, na sua tripla dimensão filosófica, ética e estética.”66. 2) O vazio

ideológico predominante nos partidos republicanos, a incapacidade de criação de uma “(…) mística democrática que operasse como antídoto eficaz contra a mística reacionária (…)”67, capaz de rivalizar com o pensamento conservador, antiliberal, em

progressão. 3) A diluição da ideologia e da ética nas quezílias facciosas, ambições de poder e disponibilidade para ceder aos interesses da oligarquia económica. 4) A falta de um diário republicano de grande tiragem, propagador das ideias democráticas. A grande imprensa era dominada pelos sectores mais conservadores da sociedade. 5) A prevalência da ideia de ditadura, embora de contornos indefinidos, no seio da opinião pública, a vitória da ilusão da “panaceia para todos os males”, considerada único recurso viável contra o domínio do PRP.

competências, considerando primacial a estabilidade nas pastas da Economia e da Educação, e de

governos extraparlamentares, de exceção, para reformas urgentes, com posterior sanção do parlamento (REIS, 2009, p. 578), medidas, aliás, também pedidas pelas direitas liberais. Para uma leitura das reformas pugnadas por outros grupos, incluindo os conservadores antiliberais ver FARINHA, 2004, pp. 67-74.

66

REIS, 2009, p. 579. 67

A ênfase colocada no campo das mentalidades, além das práticas políticas corrosivas do sistema, enquanto elemento esclarecedor do desfecho do regime, a 28 de maio de 1926, é perfeitamente ilustrada pela seguinte pergunta-resposta do autor: “Não será verdade que o segredo final da vitória de uma das alternativas em presença reside na força das ideias junto da opinião pública – como era, aliás, convicção dos próprios seareiros – e na habilidade dos homens políticos, mais do que em factores de carácter estrutural, recorrendo embora à utilização das potencialidades favoráveis destes últimos?”68. Embora discordando da desvalorização dos factores estruturais, é-

nos imprescindível atender à acuidade do problema levantado. Além do Estado e da sociedade, houve outra arena de disputa entre as esquerdas e as direitas, um sítio onde a hegemonia foi conquistada pela ideia ditatorial – as mentalidades69.

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 47-50)