• Nenhum resultado encontrado

As estruturas económicas e sociais e as contradições que a República não

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 39-47)

Neste ponto da exposição incluem-se dois vectores analíticos correlacionados, de extrema premência no pós-guerra: a questão social – a resposta do regime ao agravamento da degradação das condições de vida da população e à subsequente onda reivindicativa do movimento operário -, e a questão económica – as opções em matéria de desenvolvimento económico e as suas consequências. Os autores que a seguir mencionamos tomam-nas como o principal nódulo de problemas colocados ao

57

No artigo “O sistema político da Primeira República”, João Bonifácio Serra sintetiza o projeto bipartidário dos conservadores e as tentativas de recomposição da direita republicana a partir do governo de José Relvas, em 1919. Vd. SERRA, 2000, pp. 122-129.

poder desde 1890, na génese da crise sistema liberal, e especialmente intrincado durante os anos de 1914 a 1918, e depois de 1919. Por isso, devem considerar-se no âmbito da problemática da queda da Primeira República.

De entre os historiadores da questão social, privilegiamos Fernando Medeiros - A Sociedade e a Economia Portuguesas nas origens do Salazarismo (1978) -, e Joana Dias Pereira – “A ofensiva operária” (2009) -, autores dedicados ao estudo do movimento operário no pós-guerra.

Para o primeiro autor a equação determinante para a compreensão do período terminal da Primeira República traduz-se num triângulo de forças socioeconómicas conflituosas, que pelas suas dinâmicas, suplantaram a autonomia do campo político58.

Nos vértices, o autor coloca a elite agrária tradicional, a burguesia desenvolvimentista, industrial, e o sindicalismo operário. No centro, sob pressões variadas, o exaurido e volúvel Estado republicano. Esta geometria desenha-se a partir da guerra, com a ruptura das condições de produção da agricultura tradicional, especialmente sentidas pela cultura do trigo, dominante a Sul do país, e cujo modelo de exploração extensiva, escassamente mecanizada e dependente de mão-de-obra barata, era devedor das leis protecionistas de 1889 e 1898. Durante o conflito mundial, a escassez de bens de primeira necessidade no mercado – a crise das subsistências -, colocou em cima da mesa o problema da revisão da proteção à agricultura, uma vez que a produção nacional era insuficiente para as necessidades do país e, sobretudo, era onerosa para o Estado e para o consumidor. Em paralelo, a conjuntura foi benéfica à indústria, pois a destabilização do comércio internacional, e as dificuldades de importação, estimularam a produção para o mercado interno - patente no desempenho de alguns sectores modernos como os cimentos, enxofre, sulfato de cobre, metalo-mecânica -, e colonial, decididamente ocupado pelas conserveiras e têxtil algodoeira. A guerra e o pós-guerra trouxeram uma oportunidade de crescimento industrial, mais aparente que real, mas, sem dúvida, perturbadora do jogo de forças dominado pela elite agrícola tradicional. A partir de então, agricultura e indústria consubstanciaram planos político-económicos divergentes, concorrentes entre si.

58

“A decrescente autonomia do político, numa sociedade feita em pedaços, petrificava o aparelho de Estado na situação de um grupo heteróclito sujeito às pressões mais contraditórias”, in MEDEIROS, 1978, p. 132.

Deve dizer-se que a indústria impulsionada pela conjuntura de guerra partilhava a mesma debilidade estrutural com a agricultura: os baixos salários eram uma premissa de substituição problemática. Fernando Medeiros explica-a em termos de uma interdependência dos modos de produção capitalista e pré-capitalista, comum aos sectores agrícolas e industriais de maior peso na balança comercial interna e externa do país, a vinha e o trigo, a têxtil e a conserveira. Qualquer destes sectores recorria a estruturas económicas familiares para suprir as suas necessidades de mão- de-obra, em número e a baixo custo, angariando trabalhadores entre os pequenos camponeses (trigo e vinha), nas comunidades aldeãs (têxtil) ou nas piscatórias (conservas). Para o rendimento familiar, a venda da força de trabalho representava um complemento, nunca suficiente para superar a condição de semi-proletariado, situação que enfraquecia a confluência e eficácia das lutas reivindicativas. Em contraste, nos maiores centros urbanos do país concentrava-se e organizava-se o proletariado industrial.

Lisboa e Porto foram os principais palcos de lutas intensas, cujos meandros, segundo Fernando Medeiros, são esclarecidos pelo ciclo do “pão político”, o pão subsidiado59. O sistema remontava à legislação de proteção cerealífera de 1889,

embora no pós-guerra, com o aumento do preço do trigo no mercado internacional, funcionasse a favor da indústria de moagem. O sistema, confirmado em 1920 e revogado em 1923, implicava a quase estatização do mercado cerealífero, intervindo o Estado pela garantia de escoamento da produção nacional, do controlo do preço do pão nas principais zonas urbanas, de maior concentração operária, e de incentivo à indústria.

Para o autor, o “pão político” era o ponto de articulação do Estado com os três lados do triângulo de forças acima referido (a lavoura, a indústria e o operariado): era um recurso que permitia ao poder republicano aplacar a fome onde o sindicalismo era mais aguerrido e ameaçador, nas cidades; paralelamente, o sistema falseava o aumento do custo de vida (o pão era a base da alimentação), permitindo à indústria

59 A moagem era obrigada a pagar um imposto correspondente à diferença entre o trigo nacional, nesta altura mais barato, e o trigo importado. A existência de três tipos de pão possibilitava a fuga ao imposto pela adulteração da qualidade da mistura de farinha. O imposto devido e não pago era objecto da contestação do movimento operário organizado. Vd. idem, pp. 13-15.

fazer contenção salarial, favorecendo-a60; e só satisfazia a agricultura em parte, pois

apesar de garantir a colocação da produção nacional, implicava formas de estatização do comércio do trigo, incluindo o tabelamento dos preços de venda. O “pão político” revela o novo peso do movimento operário organizado, a concorrência entre a agricultura e a indústria pelo domínio dos favores do Estado, e a estratégia republicana de fortalecimento da burguesia industrial em detrimento da elite terra tenente tradicional.

A ofensiva operária irrompeu, vigorosa, no imediato pós-guerra, politicamente fortalecida pelo envolvimento do operariado lisboeta na “tomada de Monsanto” ao lado da pequena e média burguesia, incentivada pela expectativa da revolução social iminente, cujo horizonte se tornou próximo depois da Revolução Russa, em 1917, e que a onda que varria a Europa em direção ao Ocidente parecia vaticinar irrevogavelmente. No ano de 1919 concentraram-se os sinais da vitalidade operária, manifestados nas greves vitoriosas por todo o país, no crescimento das adesões aos sindicatos, na manifestação que reuniu 30 mil trabalhadores em Lisboa, no 1º de maio, no lançamento do diário A Batalha (fevereiro), terceiro em tiragem nacional, na criação da Confederação Geral do Trabalho (CGT) (setembro)61. Em fevereiro e

março, a pasta do Trabalho foi entregue a um socialista, Augusto Dias da Silva (Governo José Relvas e Governo Leite Pereira), em maio publicou-se a lei das oito horas de trabalho (excepto para os campos) e instituíram-se os seguros sociais obrigatórios.

O ímpeto operário renovou-se no início de 1920, mas então as condições de luta tinham mudado. Por essa altura os patrões já se haviam organizado, confluindo na Confederação Patronal Portuguesa, a antítese da Confederação operária, determinados a lutar por meios próprios contra as investidas dos trabalhadores. O boicote à aplicação da lei das oito horas explicita a intransigência patronal e as graves contradições instaladas que opunham o operariado, a indústria e o próprio poder. Foi num contexto de fortes pressões extraparlamentares e do agudizar do confronto entre trabalhadores e patrões, que o Partido Republicano optou pela repressão violenta das

60 A indústria de moagem, no entanto, ganharia maior margem para a concentração e cartelização com a revogação do regime protecionista. Para uma análise mais detalhada da indústria de moagem vide Ana Paula PIRES, 2004.

61

greves, escolhendo o lado do patronato e hostilizando, definitivamente, o movimento operário organizado. Em junho de 1919, a GNR abriu fogo sobre os trabalhadores do Barreiro em greve, a União Operária Nacional (antecessora da CGT) foi encerrada, e

A Batalha confiscada. Nessa data a alienação do apoio das massas operárias ao republicanismo ficou ditada. Na perda dessa retaguarda, o projeto de fomento industrial também ficou comprometido. As cedências aos interesses cerealíferos acompanharam o refluxo do movimento operário, até à supressão do “pão político”, em 1923.

Segundo Joana Dias Pereira, o refluxo da ofensiva operária, notório a partir de 1920, também se deveu ao desmembramento interno da organização, pela falência da táctica reformista e da ação direta que unia, desde 1914, anarco-sindicalistas e sindicalistas “puros” sob a alçada do sindicalismo revolucionário. A CGT não logrou a modernização da sua estrutura, nem a unificação e solidariedade das lutas operárias, cada vez mais sectoriais. Perante a resistência patronal e a violência estatal, as reivindicações pontuais cedo mostraram os seus limites: a inflação engolia rapidamente as conquistas obtidas, gerando desmobilização. A fundação da Federação Maximalista Portuguesa, pró-Revolução Russa, em 1919, é um sinal da cisão que se aproximava, consumada durante o Terceiro Congresso Nacional Operário, na Covilhã, em 1922. Nessa ocasião, a resolução de filiação da CGT na Associação Internacional dos Trabalhadores, anarquista, confirmou a hegemonia dos anarco- sindicalistas, contra os “bolchevistas”, apoiantes da adesão à Internacional Sindical Vermelha, e os sindicalistas “puros”, defensores da autonomia do sindicalismo português. Durante os governos da esquerda republicana, entre 1923 e 1925 (gabinetes Álvaro de Castro, Rodrigues Gaspar e José Domingues dos Santos), e após o seu afastamento do poder, à medida que a possibilidade ditatorial de direita se aproximava, a hipótese de formar uma “frente única”, agregadora das várias esquerdas, defendida pelo jovem Partido Comunista Português, dividiu, definitivamente, o movimento operário organizado:

“Foi exatamente a recusa peremptória da direção da CGT em colaborar com quaisquer outras forças democráticas, assunto que durante o Quarto Congresso Nacional Operário de setembro de 1925 foi acaloradamente debatido, aquilo que justificou a suspensão das relações entre os sindicatos dos Arsenais e a Federação

Marítima, por um lado, e a Central Sindical, por outro. Nos finais do ano, a CGT estava oficialmente desagregada.”62.

A este factor devem acrescentar-se as sucessivas desilusões, expectativas goradas pelo republicanismo, e crescentes dificuldades de vida do operariado, para explicar que em resposta ao golpe de 28 de maio de 1926, as massas trabalhadoras não saíram à rua para defender a República, como haviam feito em outubro de 1910, e janeiro de 1919, pelo contrário, os ferroviário do Sul e Sueste fizeram uma greve de apoio ao derrube do PRP.

A problemática da questão social chama a si a da questão económica e financeira, sistematizada no capítulo “A busca frustrada do desenvolvimento” (1990), da autoria de António José Telo. A pergunta implícita naquele estudo é: porque não logrou a República impulsionar o desenvolvimento económico do país? A resposta começa na constatação da ausência de um projeto económico inerente ao bloco social que apoiou a instauração do regime e que fosse capaz de lhe dar coesão. Qualquer plano económico pressupunha a existência de um grupo homogéneo que o defendesse, defendendo também a República. Esse desígnio, não só nunca foi alcançado, como a sua perseguição incoerente, conjuntural, lançou o poder ao vento dos interesses que soprassem mais forte, acentuando alguns problemas estruturais.

Mantendo-nos no trilho das temáticas específicas do pós-guerra, e na procura das razões para a ascendente instabilidade do regime republicano durante esse período, o trabalho de António Telo oferece um contributo esclarecedor. Através da sua leitura, tornam-se evidentes as articulações entre curtas conjunturas, com as respectivas flutuações endógenas ou exógenas, e as estratégias dos poderes políticos e dos poderes económicos, entre 1919 e 1926.

Retomando a ideia já lançada por Fernando Medeiros, de uma forte concorrência entre a elite terra tenente tradicional e a burguesia industrial, fortalecida durante e depois do conflito mundial, acrescente-se um elemento ilustrativo da penetração desse conflito na esfera política: o grande terreno social onde o sidonismo lançou os alicerces da “República Nova” foi o campo, foram os agentes do agrarismo

62

conservador que apoiaram aquele primeiro ensaio de ditadura de tipo moderno63.

Descontentes com a política de guerra, os constrangimentos ao comércio de bens agrícolas, as políticas de cultivo compulsório (decreto de “mobilização agrícola” de Lima Basto, 1917), receberam de Sidónio Pais, entre outras medidas de fomento agrícola, o descongelamento dos preços - medida altamente penosa para as classes mais baixas -, além de representação direta nas esferas de decisão (10 assentos no Senado corporativo, contra 5 atribuídos à indústria e 4 ao comércio). Por oposição, com a queda do sidonismo e a recuperação do poder pelo PRP, a indústria foi a mais favorecida, pelas circunstâncias e pelo poder.

António José Telo propõe dividir o período em causa em dois tempos. Um primeiro, entre 1919 e 1921, caracterizado por um surto industrial com particularidades a nível das condições financeiras que o enquadraram e das especificidades nos modos de produção, que rapidamente ditaram o seu esmorecimento. Um segundo, entre 1922 e 1925, os anos da aplicação do programa económico radical para o saneamento das finanças públicas.

O principal dado a apresentar quanto aos anos do surto industrial é a verificação da manutenção do aumento da circulação fiduciária, expediente corruptor das lógicas da economia clássica, inaugurado durante a guerra, e principal indutor de um ciclo inflacionista benemérito para a indústria. Em teoria, a desvalorização do escudo facilitava a venda de bens nacionais ao estrangeiro e dificultava a importação de produtos transformados, um duplo estímulo para a produção de bens de exportação e de substituição. Na prática, a política inflacionista protegia eficazmente a indústria e as atividades especulativas com bens e divisas, pelo que a banca e o grande comércio de import-export também cresceram fulgurantemente, mas não a agricultura, que exigia a valorização da moeda, nem as classes assalariadas, para quem a rápida subida do custo de vida era mais lesiva. Entre estes últimos, contava-se o operariado. Contavam-se, também, o funcionalismo público, o exército, todos aqueles que dependiam de rendimentos fixos para subsistir. Era uma política com consequências nefastas, porquanto radicalizava os menos favorecidos, sem alcançar a constituição de uma classe forte, apoiante do regime. A crise internacional de 1921 revelou as

63

Para uma visão da relação de forças em 1917, o isolamento do governo Afonso Costa, e o golpe sidonista, financiado pela ala agrária do Partido Unionista, Vd. CABRAL, 1979, p. 382.

debilidades do surto industrial pós-bélico, a carência de produtividade, o predomínio de formas artesanais de produção, a dependência de mão-de-obra barata, e da defesa dos mercados nacionais.

Quando a política inflacionista esgotou as suas possibilidades surgiu a oportunidade de aplicação do programa radical, fermentado desde 1919. Em vez do equilíbrio das contas públicas à custa da redução das despesas e do aumento dos impostos indiretos ao consumo, aplicou-se o imposto sobre o rendimento com carácter progressivo (1922), fez-se o saneamento das finanças, a reforma cambial (1924) e bancária (1925), encetando um tipo de intervenção estatal diretamente afrontosa dos interesses económicos estabelecidos, em especial da banca e do comércio. Foi o tempo da esquerda republicana, um campo que se autonomizou progressivamente no pós-guerra, vindo a englobar várias forças sociais - um bloco -, que embora volúveis na ação comum, tiveram um papel determinante na prossecução das reformas acima referidas. À “obra radical” ficou a dever-se a valorização da moeda, o aumento das receitas e a diminuição do deficit orçamental. Apesar disso, subsistiu um óbice ao desenvolvimento económico, a fuga generalizada de capitais, em coerência com a atitude comum da procura do risco mínimo dos investidores nacionais.

Politicamente, a aplicação do programa radical teve uma importante consequência, a organização da oligarquia económica conservadora contra a esquerda republicana. A União dos Interesses Económicos (1924), nova organização patronal, estimulada pela banca e comércio, engrossada com a agricultura, já não visava o movimento operário, entretanto desmembrado. O alvo do poder económico, paulatinamente unido, passou a ser a República radical, passou a ser a política intervencionista de tendência socializante, transformando-se, rapidamente, em repúdio pelo risco causado por este tipo de ação estatal e, portanto, em oposição ao próprio regime liberal. A luta pela conquista do Estado, latente em 1919, tornou-se declarada.

O favorecimento da indústria e do comércio, através da política inflacionista, desembocou num duplo fracasso, económico e social. As bases de crescimento daqueles sectores económicos, tal como foram construídas e incentivadas, eram insustentáveis, vindo esse facto a tornar-se evidente depois de 1921. Socialmente, o partido do poder, o PRP, não logrou conquistar para o lado das forças do regime as

elites económicas beneficiadas, e, além disso, aviltou as classes mais baixas da sociedade, deixando-as carregar o peso da crise agravada pela inflação. As consequências da política inflacionista saldaram-se numa crescente radicalização da atitude política dos mais desfavorecidos, e numa forte pressão social pela correção da situação. Esse foi o princípio que impulsionou a aplicação de medidas tendentes a coarctar os excessos do capital, dando origem, através de um processo convulso, ao campo da esquerda republicana de tendência social-democrata. Quando esta alternativa teve desempenhos governamentais o campo conservador, também ele em processo de clarificação, reagiu desfavoravelmente, boicotando os projetos reformistas. As dinâmicas sociopolíticas do pós-guerra caracterizam-se por uma polarização dos agentes em jogo, à esquerda e à direita, progredindo esse fenómeno, de início esparso, para a confluência de forças em dois blocos protagonistas de programas opostos. Enquanto o bloco radical, o das esquerdas, se desenvolveu no sentido da social-democracia, o bloco conservador uniu-se em torno da ideia autoritária, antiliberal. Resta dizer que o sucesso do segundo foi largamente dependente do refluxo do movimento operário organizado, em grande medida desmembrado depois de 1920.

O referido processo de polarização da sociedade portuguesa demonstra que a esfera política foi parte integrante dos conflitos da modernidade, não foi uma entidade destituída de autonomia, como defende Fernando Medeiros. O poder político desempenhado pela direita, o centro ou a esquerda, induziu diferentes efeitos nas restantes esferas do conjunto social. Esteve, ativamente, no centro dos problemas.

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 39-47)