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A derrocada das democracias liberais na Europa de entre-guerras

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 53-59)

Um dos temas centrais da historiografia dedicada ao estudo do século XX europeu, em especial ao período de entre guerras, é o da queda das democracias liberais e ascensão das ditaduras. A euforia constitucional que animou os países nascidos do desmembramento dos impérios Czarista, Habsburgo, Prussiano e Otomano, um sinal aparente de que o modelo democrático de governo era um dos grandes vendedores da Grande Guerra, esfumou-se nas duas décadas posteriores aos acordos de paz de 1919.

Entre as várias propostas explicativas da derrocada das instituições liberais, um aspecto contextual é comum – com maior ou menor peso causal -, a atmosfera insurrecional dominante nos anos de 1917 a 1920, e o espectro da guerra civil, entre forças revolucionárias e contrarrevolucionárias, no interior de cada país. Como indica Enzo Traverso, mesmo Hobsbawm e Furet, divergindo nas interpretações partilham esta constatação:

“Pour Hobsbawm, cette guerre civile méritait d’être menée, il fallait choisir son camp et ce fut bien ce combat qui sauvat l’Europe. Furet la regarde de loin, blasé et distant, comme si la vertu libérale pouvait se situer au-dessus de la mêlée (le conflit entre communisme et fascisme). Ce sont là deux sensibilités et deux mémoires, qui partent néanmoins du même constat: l’histoire de l’Europe entre 1914 et 1945 est celle d’un continent déchiré par une guerre civile.” 73.

O triunfo da Revolução Russa constituiu uma incontornável referência da possibilidade de derrube dos regimes burgueses pela esquerda, tornando-se, por isso, um símbolo de esperança para os movimentos operários, e de temor para a burguesia europeia. Os receios da última eram engrossados pelas explosões grevistas que acompanharam os últimos anos da guerra74 - manifestações do descontentamento

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TRAVERSO, 2007, p. 43. 74

social provocado pelo prolongamento do conflito, pela subsequente degradação das condições de vida, e pela percepção da desigualdade dos efeitos da guerra sobre as várias classes75 -, e os primeiros anos da paz, durante os quais aumentaram as pressões

pelo alargamento da assistência social e das nacionalizações. Sob o mesmo ímpeto, reproduziram-se “soviets” em vários países europeus, a guerra civil estalou na Finlândia, a greve geral foi declarada na Itália (1919) e a revolução chegou à Alemanha (janeiro de 1919), à Baviera (abril de 1919), e à Hungria (março de 1919). No entanto, as experiências de inspiração bolchevique tiveram curta duração, os líderes spartaquistas, Liebknecht e Luxemburg, foram assassinados, Lévine fuzilado, e Bela Kun derrotado. Em 1920, a onda insurrecional a oeste da Rússia havia cessado. De modo generalizado, a esquerda, combatida e dividida, após as cisões comunistas, perdeu força real, o que nos leva a concordar com Hobsbawm quando este afirma que nos anos 20 e 30 a ameaça às instituições liberais vinha, especialmente, da direita política.

Interessa, então, referir algumas fragilidades das democracias liberais para melhor compreender a sua célere derrocada, ou o fenómeno do “templo abandonado”76, já em plena marcha nos anos 2077.

Um dos factores mais apontados pelos críticos do liberalismo foi a ineficácia do funcionamento das instituições democráticas. Os regimes constitucionais do pós- guerra, herdeiros da luta contra o autocratismo monárquico e imperial, consagraram a desconfiança do executivo, coarctando-lhe os poderes a favor do legislativo. O lato controlo do órgão eleito - o parlamento -, sobre os governos era, do ponto de vista dos constitucionalistas, uma garantia da adequação da política à soberania popular. A representação proporcional foi adoptada por respeito ao mesmo princípio de fidelidade à vontade manifestada pelos eleitores. Daí decorriam a extrema

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“Much of the class resentment evient by 1918 was spurred on by the belief that the sacrifices of war were unevenly distributed between rich and poor.”, in OVERY, 2007, p. 19.

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“The Deserted Temple”, tradução inglesa da expressão de Mussolini, citada por Mark Mazower e usada para titular o primeiro capítulo da sua obra Dark Continent: “Now Liberalism is on the point of closing the doors of its deserted temple (…) The present century is the century of authority, a century of the Right, a Fascist century.” (cit. MAZOWER, 2000, p. 16).

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Em 1919, o almirante Horthy derrubou o regime de Bela Kun na Hungria. Em 1922, Mussolini chegou ao poder na Itália. Em 1923, o general Primo de Rivera na Espanha. Em 1926, o marechal Pilsudski na Polónia e Antanas Smetona na Lituânia. Em 1928, Alexandre I declarou a ditadura no Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. A ditadura militar portuguesa, em 1926, integra-se nesta primeira onda de assaltos ao liberalismo democrático.

fragmentação partidária (em 1930 havia 16 partidos com assento no Reichstag), a difícil coexistência de grupos no seio do parlamento, e a obstrução governativa, gravemente sentida no campo das reformas sociais e económicas. As vozes contra o sectarismo partidário e a favor da defesa dos interesses nacionais tornaram-se frequentes. A ausência de maiorias parlamentares ainda tinha reflexo na instabilidade governativa. Segundo dados citados por Mark Mazower, a média de duração dos governos do pós-guerra era, na Alemanha e na Áustria, de 8 meses, na Itália, de 5 meses, na Espanha, após 1931, de menos de 4 meses. Mesmo a Terceira República francesa viu a longevidade dos seus ministérios reduzida de 10 meses, entre 1870- 1914, para 8 meses, entre 1914-1932, e para 4 meses, entre 1932-194078. Perante as

dificuldades de funcionamento dos parlamentos, apontadas como causa dos problemas políticos, a panaceia anunciada era a autonomia do executivo, ideia que continha em si o perigo do autoritarismo antiparlamentar79.

Mark Mazower considera o debate constitucional alemão exemplificativo do progressivo resvalar das elites burguesas para a ditadura, no contexto da crise do pós- guerra. Em última análise, foi sob o lema da defesa da constituição que o revisionismo ganhou adeptos entre os liberais conservadores. Foi, aliás, com esse propósito que Carl Schmitt apoiou a introdução de medidas de exceção (poderes extraparlamentares) na constituição. O crescente uso dos decretos de emergência ilustra o avanço das práticas antiparlamentaristas, pois se entre 1925 e 1931, 16 dessas leis foram aplicadas, em 1931 foram 42, mais do que aquelas aprovadas no Reichstag. O empolamento das práticas ditatoriais relacionava-se com o fortalecimento dos nazis e dos comunistas nas eleições de setembro de 1930, erigindo-se, respectivamente, como segunda e terceira forças políticas. A impossibilidade de fazer alianças à direita e à esquerda, aliada ao argumento da salvaguarda dos poderes excepcionais contra a hipótese destes caírem nas mãos de grupos antidemocráticos, justificou o aumento da sua utilização. Em 1932, apenas 5 leis passaram no parlamento, contra 59 decretos de emergência. O caminho ditatorial estava plenamente desbravado quando Hitler chegou ao poder.

78 MAZOWER, 2000, p. 19.

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Alguns países experimentaram a reforma eleitoral, substituindo a representação proporcional pela maioritária (França, 1924 e Grécia, 1928), outros a constitucional, reforçando o Executivo (Polónia e Lituânia, 1926 e 1935, Áustria, 1929, Estónia, 1933 e 1937, Espanha 1931).

A cedência, a título pragmático, do liberalismo conservador às pressões autoritárias foi comum. De facto, um dos elementos que nos parece mais relevante para a compreensão da derrocada das democracias liberais é a inconsistência da convicção dos seus defensores, ou dito de outro modo, perante a polarização política: “Ruling elites in many countries soon showed themselves to be anti-communists first, democrats second.”80. Algo, inclusivamente, notório a nível internacional, com o fraco

empenho dos EUA, da Inglaterra e da França na defesa dos governos democráticos da Europa de Leste e Central, até à ofensiva nazi.

Mazower refere o exemplo italiano para demonstrar que o problema político não era criado pelas novas constituições democráticas, uma vez que ali a base da fundação constitucional do Estado era a de Carlos Alberto (1848). Assim, “What post-war Italy offered was a picture of liberal uncertainty and weakness, a more or less voluntary renunciation of power to the Right in the face of popular discontent and political instability.”81. Na Itália, como noutros países onde a terra estava concentrada

nas mãos de uma elite forte ou de médios proprietários integrados nas estruturas do Estado (Hungria, Alemanha, Espanha82), as tentativas de reforma agrária para diluir o

descontentamento nos campos estiveram na base da reação conservadora83.

Abdicando do meio reformista, as elites burguesas fizeram a sua viragem autoritária, engrossando as hostes fascistas. O apoio dos liberais foi essencial para a chegada de Mussolini ao poder (assim como o dos socialistas para a reforma eleitoral de 1923).

O segundo aspecto que nos merece atenção é o da desadequação do liberalismo tradicional aos desafios da modernidade. Em grande medida, a derrota do autocratismo, a consagração do parlamentarismo, do sufrágio universal (masculino), em 1918, pareciam ter esgotado o projeto político liberal do século XIX. Uma das novidades trazidas pelas dinâmicas da guerra total foi o empolamento do peso político dos sectores económicos e, principalmente, do operariado. Depois de 1919, a política europeia deixou de ser um jogo de elites, passou a ser dependente das massas e estas

80 MAZOWER, 2000, p. 4. 81 Idem, p. 14. 82

“In Spain, land had to be taken from middle-class owners who, broadly speaking, were fully integrated into the structure of the nation, and who could not take any further pressure without the risk of calling into question many of the basic principles of this political structure. This was why any agrarian reform, however moderate, would have been seen by the owners as a revolution of compulsory seizures.”, in CASANOVA, 2010, p. 45.

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agitavam-se por toda a parte, exigindo políticas sociais. Embora algumas das novas constituições tivessem feito um esforço por incorporar o espírito social do tempo, alargando os direitos e liberdades políticas e civis a áreas da saúde e assistência, essas promessas ficaram por atender. Tal incumprimento deveu-se a constrangimentos políticos e económicos, mas não só. O Estado social não era uma prioridade do liberalismo democrático tradicional, por isso, “In its focus upon constitucional rights and its neglect of social responsabilities, it often seemed more fitted to the nineteenth than to the twentieth century.”84. As liberdades individuais, plenamente adequadas às

necessidades políticas da burguesia herdeira dos valores das revoluções de setecentos e oitocentos, eram um alimento escasso na era das massas. O individualismo político tendia a ser suplantado à esquerda e à direita.

Hobsbawm considera serem quatro as condições de viabilidade da democracia representativa, tal como era concebida em 1918, todas elas ausentes na maioria dos países europeus da época. Primeiro, beneficiar de consentimento e legitimidade gerais, sendo que a democracia é em si incapaz de gerar o consentimento. O consenso é prévio ao estabelecimento dos regimes democráticos. Segundo, haver um grau de compatibilidade entre as várias componentes do “povo”. O liberalismo tradicional não reconhecia o “povo” como um conjunto de grupos com interesses distintos, antes, concebia a vontade popular como o somatório das vontades individuais. Na prática, a fragmentação inoperante da representação popular, derivada da constituição de grupos políticos que podiam ser altamente restritos (como no caso étnico-religioso), espelhava as cisões sociais. Além disso, o agravamento das clivagens sociais advindo da crise, obstruía a conciliação das classes. Terceiro, que os governos não fossem obrigados a “governar muito”. A função inicial dos parlamentos era controlar o poder, eram “(…) mecanismos destinados a agir como travões, que se viram obrigados a agir como motores.”85. Na sua génese, as instituições liberais pressupunham a

autorregulação da vida económica e social. No início do século XX, as pressões pela intervenção ativa dos governos multiplicaram-se. Quarto, a existência de riqueza e prosperidade, ou a possibilidade de redistribuir benefícios sem sacrificar as posições dominantes. 84 MAZOWER, 2000, p. 5. 85 HOBSBAWM, 2002, p. 144.

Independentemente das especificidades de cada regime ditatorial instalado na Europa durante o pós-Grande Guerra, Hobsbawm aponta três traços comuns a todos: eram contra a revolução social; eram autoritários e hostis às instituições liberais; tendiam a ser nacionalistas86.

Segundo James Joll, os edifícios democráticos mais instáveis foram aqueles construídos sem a capacidade de intersecção de interesses de classe, o que se revelou fatal no contexto da crise socioeconómica do pós-guerra87, e de integração urgente das

massas nas instituições políticas. Em todos os casos, foram alianças, mais ou menos vastas, de sectores conservadores (elites económicas e elites políticas) a bloquear ações reformistas tendentes a aplacar as reivindicações das massas88, problema

avolumado pela frequente lealdade dos braços burocrático e armado do Estado a estes sectores89. Para alguns autores, considerar o Estado uma estrutura neutra foi um erro

de concepção notado nalguns países onde uma esquerda moderada (não revolucionária) teve oportunidades no poder90. Para Diego Palacios Cerezales, a

fraqueza da penetração do Estado pelo território nacional português impediu a quebra das relações de dependência das populações com os caciques, dificultando, genericamente, a aplicação da lei91. Em todos os casos, a “ordem” foi a máscara

legitimadora do autoritarismo antiliberal92.

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Idem, p. 118-119. 87

A passagem seguinte sugere mais do que uma incapacidade de intercepção de interesses, aponta para uma impossibilidade derivada do desenvolvimento económico desigual: “It was in those countries which had on paper apparently real democratic parliamentary systems but in which the system was obviously not working, because of uneven economic development and the lack of any common interests between the various classes, that the most profound criticisms of the liberal state came to be made.”, in JOLL, 1990, p. 123.

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Peukert refere-o para o caso da República de Weimar: “Un rôle déterminant, dans ce processus de décomposition étalé sur de longues années, revint aux élites traditionnelles qui formaient la structure de l’Etat: le corps des fonctionnaires et la Justice, la Reichswehr, les patrons de l’industrie et les grands propriétaires terriens. Aucun de ces groupes n’aurait pu, à lui seul, défier et vaincre la république. Mais l’effet combiné de leurs attitudes et de leurs actions fut d’accumuler des obstacles croissants face à l’action républicaine.”, in PEUKERT, 1995, p. 226.

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A propósito dos projetos de reforma agrária em Espanha: “What the vituperative outburst of the landowners’ organizations failed to stress was the extent to which Socialist measures remained little more than hopes on paper. There was virtually no machinery with which to enforce the new decrees in the isolated villages of the south.”, in PRESTON, 2006, p. 57.

90

Exemplo da Áustria: “Opponents of the SDAP (Christian Socials, Pan-Germans, Heimwehr, and Nazis) were impervious to the SDAP’s symbols of strength and rejected its emblems of republicanism: democracy and neutrality of the state. They fought with raised visors in all arenas to liquidate the socialist enemy.”, in GRUBER, 1991, pp. 183-184.

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Referido por Diego Palacios Cerezales a propósito da relação entre a debilidade da penetração estatal em Portugal durante o liberalismo e a massificação de uma cultura cívica: “The weakness of State penetration in Portugal meant a very feeble socialization of the population within a national civic

Entre os países que resistiram à ditadura tradicional ou de tipo novo, contam- se a Islândia, a Suécia, a Finlândia, a Suíça, a Inglaterra e a Irlanda93. Por todo o

continente europeu, o modelo de autoritarismo de Estado ganhou a frente política sob duas vagas de assalto ao poder, a primeira durante os anos 20 (ditaduras militares), e a segunda nos anos 30, na sequência da Grande Depressão (regimes fascizantes) - Portugal (1933), Alemanha, (1933), Áustria (1934), Letónia (1934), Estónia (1935), Polónia (1935), Bulgária (1935), Grécia (1936), Roménia (1938), Espanha (1939). Nas vésperas e durante a II Grande Guerra este era o modelo político predominante.

Esta breve exposição não pretende ser um estado da questão, por isso, não inclui nem confronta as várias teses explicativas da derrocada das democracias. Da extensa produção científica acerca desta temática, privilegiámos alguns pontos sumários que nos parecem oferecer um paralelo útil ao caso português. Também a Primeira República portuguesa se viu enredada no cerco ao liberalismo político, também aqui as elites conservadoras se uniram para resolver a seu favor o dilema do enquadramento político das massas e fizeram-nos por reação às tímidas medidas democratizantes da esquerda republicana e perante as pressões populares do bloco radical.

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 53-59)