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O campo da esquerda republicana

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 151-154)

A nossa exposição suspende-se aqui, quando se torna possível identificar o campo da esquerda republicana com grupos formais atuando, reivindicando-se e sendo reconhecidos enquanto tal, o último dos quais consistindo no Partido Republicano da Esquerda Democrática, após a irradiação da ala esquerda do PRP336.

Esperamos ter demonstrado, no essencial, quanto este processo foi devedor do processo concomitante de polarização política da sociedade portuguesa do pós-guerra, como a clivagem significativa do período era aquela separando o capital e o trabalho, e como daqui se formaram os campos de mobilização para as lutas políticas do século XX.

Às incisões operadas neste capítulo corresponde um conjunto de políticas que aqui agrupámos por partirem de um princípio comum e tenderem para um mesmo fim. Pretendiam dar solução à grave crise socioeconómica do pós-guerra, reequilibrando a balança social, entre aqueles que mais sofriam com os efeitos nefastos da inflação e da degradação das condições de vida – as classes trabalhadoras -, e aqueles que prosperavam à sombra das condições excepcionais criadas durante a guerra – as classes possidentes. Essa ambição desembocava na necessidade de

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Foi João Pedro dos Santos quem negociou as comissões de propaganda dos ferroviários do Sul e Sueste e dos funcionários dos Correios e Telégrafos para as eleições de novembro de 1925. Ver ponto IV.3.3.

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Para estas e outras medidas ver QUEIRÓS, 2008, pp. 54-58. 336

redistribuir a riqueza, pela assunção de responsabilidades sociais a nível da previdência, pela tributação direta do capital, pelo controlo dos negócios cambiais e bancários, pelo acesso ao crédito e a repartição da terra. Qualquer ato reformista nestas áreas – laboral, social, fiscal, cambial, bancária e agrária – prossecutor daquela finalidade, colidia diretamente com os interesses das elites económicas. Esse facto, por si, ditou o seu carácter radical, revelando, simultaneamente, os antagonismos instalados e colocando os reformistas no lado esquerdo da política, em termos práticos e, progressivamente, ideológicos. Com essa clarificação veio o desenho nítido de um desiderato político concreto: fazer uma República social ou democrática. Sob a égide de uma ideia de justiça, o Estado foi chamado a intervir com novos intuitos, coarctando as liberdades económicas, limitando o direito de propriedade - a esquerda republicana tendia para a social-democracia.

Importa lembrar que os projetos e as mundivisões da esquerda não se esgotam no nosso objeto de estudo. O olhar cingido à esquerda republicana permite-nos compreender que a organização da frente conservadora, evidente a partir de 1924, se fez não para responder à ofensiva do movimento operário organizado e, logo, aos projetos do sindicalismo revolucionário ou comunista dos anos vinte, mas para obstar ao reformismo da esquerda republicana. De igual modo, a identificação e descrição das novidades à direita não cabem na nossa proposta de investigação. Interessa, no entanto, deixar claro como os principais interesses económicos do país fizeram das experiências de tendência social-democrata do período uma lição, encontrando uma plataforma de entendimento para interesses de outro modo diversos entre si. Os estatutos da UIE incluíam uma programa mínimo de realizações, cujos itens apontam para a ameaça representada pela experiência dos anos de 1924-1925, contra medidas concretas do programa radical e contra o princípio da intervenção estatal socializante. Da lista constava a defesa da propriedade privada e da iniciativa particular e a “proscrição do estatismo”. A defesa da não retroatividade da lei e do cumprimento dos contratos e obrigações contraídos pelo Estado. A unificação e proporcionalidade dos impostos, o equilíbrio orçamental, a fiscalização rigorosa das despesas. A consulta dos organismos económicos interessados antes da elaboração de leis económicas e sociais. Alguns dos itens indicavam a posição arbitral desejada para os conflitos entre o capital e o trabalho, quando se referia o interesse solidário da economia nacional, a par da defesa das atividades económicas, e a organização das

relações entre o capital e o trabalho pela coordenação dos elementos da produção. O plano continuava e, em 1932, em vésperas da Constituição estado-novista, era o mesmo337.

Esta coincidência de motivações entre agentes económicos completar-se-ia com as correntes de pensamento político da direita, ganhando corpos e coerências ideológicas338. Não supomos, no entanto, uma linearidade neste encontro e uma

relação causal entre a criação da UIE, a queda da República e a instituição do Estado Novo339. Não podemos obliterar a conflituosidade interna do bloco conservador e a

concorrência de interesses específicos. A arquitetura de poderes, formais e informais, fixada em 1933 também foi consequência de confrontos endógenos em curso a partir de 1926, culminando numa articulação estável de interesses (conservadores)340. A

exposição feita a partir do vector interpretativo da polarização política permite-nos entender como as afinidades socioeconómicas determinariam a atualização da disjuntiva república/ monarquia, acrescentando-lhes qualificativos mais significativos na expressão de projetos contendentes. Se a esquerda republicana desejou a república democrática para especificar o seu projeto, o nome “Estado Novo” é resultado dessa atualização à direita, onde um simulacro de república podia existir para garantir a harmonia e o funcionamento de instituições antiliberais.

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A UIE pretendia-se isenta em matéria política e religiosa e defendia ainda: a adoção de métodos administrativos e técnicos modernos para a gestão dos transportes; a proteção de iniciativas científicas para o estudo do aproveitamento das riquezas nacionais; o fortalecimento do bloco económico imperial; o fomento do crédito comercial, industrial, agrícola e marítimo; proteção à infância e à velhice e organização moderna dos serviços de assistência; reforma penal tendente à intimidação e regeneração do delinquente pelo trabalho, e indemnização à vítima; organização do ensino técnico e da aprendizagem com a colaboração dos organismos económicos; proteção ao ensino instituído pela iniciativa particular nos graus primário, secundário e técnico. Vd. União dos Interesses Económicos, 1932.

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CRUZ, 1982; LEAL, 1999 e 2009; MARTINS, 2004.

339 A ter em conta o relatório da direção da UIE, a organização teria sofrido uma quebra de associados até 1929, recuperando em 1932. Os princípios basilares, no entanto, seriam os mesmos. Vd. União dos

Interesses Económicos, 1932. 340

CAP. IV. O BLOCO RADICAL.

No documento A luta de classes em Portugal (páginas 151-154)