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A cultura escrita e a relação oralidade/letramento

CAPÍTULO 2 : A RELAÇÃO LINGUAGEM ORAL / LINGUAGEM ESCRITA

2.1 Sobre as relações entre escrita e oralidade

2.1.1 A cultura escrita e a relação oralidade/letramento

Retomando as questões apresentadas por Marcuschi no item anterior a respeito da tendência culturalista defendida por alguns autores, apresentamos mais algumas considerações por entendermos estas como relevantes no contexto deste trabalho, especialmente por concordar com a antecedência da oralidade sobre a escrita, historicamente determinada.

Illich (1995), por exemplo, propõe-se, assim como Olson e Torrance (1995), a mostrar como nas sociedades de cultura escrita o discurso oral cerca e condiciona os usos do texto escrito. Mesmo não concordando com uma idéia de supremacia da oralidade, defendida por Illich, as posições de Olson e Torrance (op.cit.) apontam-nos três questões importantes para a concepção da linguagem escrita como cultura escrita: (1) o status da linguagem escrita para a sociedade; (2) a escrita como uma especialização cognitiva e (3) a cultura escrita do ponto de vista psicológico. Essas três

formas de estudar a relação cultura/linguagem escrita parecem significativas como subsídios à reflexão sobre o lugar que ocupam os estudos sobre a escrita na Neurolingüística, especialmente para compreensão do estatuto da linguagem escrita e a importância do letramento para cada um dos sujeitos investigados.

Dentre as tendências apresentadas no campo da Neurolingüística, podemos mencionar o trabalho de Lecours e Parente (1995) sobre a representação cerebral da linguagem em adultos não-alfabetizados, no qual os autores atribuem maior capacidade cognitiva à escrita. Eles consideram que, na maioria das pessoas, o aprendizado da linguagem escrita exerce uma certa influência sobre o hemisfério esquerdo do cérebro. Esta consideração baseia-se na observação de diferenças na capacidade de nomear entre não-alfabetizados com o hemisfério direito do cérebro comprometido e não- alfabetizados neurologicamente saudáveis. Seus resultados procuram confirmar a tese de que o predomínio do hemisfério esquerdo em termos da produção da língua pode ser menos restrito entre os não-alfabetizados que entre os alfabetizados.

Mesmo pressupondo uma relação entre linguagem oral e escrita quando se referem a não-alfabetizados, o que chama a atenção sobre as afirmações de Lecours e Parente (op.cit.) é que esta relação não mostra linguagem oral e linguagem escrita como modalidades que se relacionam, muito menos em relação aos processos de interação. Há uma certa descontextualização da linguagem como atividade linguageira (cotidiana, como prática significativa que pressupõe interlocução), uma vez que a tratam apenas como um produto de um cérebro estimulado.

Já para Ong (1998), a cultura escrita é imprescindível ao desenvolvimento não apenas da ciência, mas também da história, da filosofia, ao entendimento analítico da literatura e de qualquer arte e, na verdade, à explicação da própria linguagem (incluindo a falada). É nesse sentido que ele atribui uma condição de supremacia cognitiva à escrita, afirmando que sem ela, a consciência humana não pode atingir o ápice de suas potencialidades, não é capaz de outras criações. Para ele, a oralidade precisa e está destinada a produzir a escrita, havendo uma determinação histórico-social em torno desta relação. Em suas palavras:

O pensamento e a expressão formular orais percorrem as profundezas da consciência e do inconsciente e não desaparecem assim que alguém que a eles se habituou pega em uma caneta. [...] A mente não tem inicialmente recursos propriamente quirográficos. Rabiscam-se em uma superfície palavras que se imagina dizer em voz alta, em uma situação oral imaginável. Apenas muito gradativamente a escrita torna-se composição escrita, um tipo de discurso – poético ou não – que é construído sem uma sensação de que quem está escrevendo está realmente falando em voz alta (como os primeiros escritores podem bem ter feito ao compor) (p.35-36).

A idéia apresentada por Ong, portanto, é a de que para reter, retomar, organizar as idéias e ter o pensamento cuidadosamente articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões mnemônicos, moldados para uma pronta repetição oral. Daí a importância do ritmo e do uso de fórmulas, de expressões fixas. Tais expressões, em culturas orais primárias, cumprem algumas das finalidades da escrita em culturas quirográficas. Referindo-se aos estudos de Luria com sujeitos alfabetizados e analfabetos e à relação entre as respostas de um e outro grupo aos seus questionamentos, como forma de caracterização do pensamento, Ong (op.cit.) afirma que, para afetar os processos de pensamento, a escrita deve ser individualmente interiorizada.

As explicações de Ong (op.cit.) apontam para a necessidade de uma representação prévia de símbolos e dão indícios de que esta se dê na co-ocorrência entre fatos orais e gráficos. Entendendo dessa maneira, não podemos dizer que haja uma prevalência de uma modalidade sobre a outra.

As reflexões apresentadas até aqui sobre a relação fala/oralidade e escrita/letramento, considerando-se os aspectos culturais envolvidos nas práticas sociais com linguagem, levam-nos aos seguintes questionamentos:

(1) Será que basta que qualquer sujeito seja exposto a uma cultura escrita para que fique “contaminado” pelas características da mesma, interiorizando-as?

(2) O que ocorre com os sujeitos afásicos que perdem, de certa forma, suas condições de expressão e compreensão pela escrita?8

8

A princípio, pensar nestes questionamentos encaminhou-nos para reflexões sobre “preconceito lingüístico” que, embora não seja assunto desta tese, não pode passar despercebido, já que na linguagem patológica há uma carga bastante intensa deste tipo de preconceito (que vem, é claro, junto com a carga sócio-cultural dos grupos a que pertencem os afásicos). Bagno (1999) e Lopes da Silva & Moura (2000) nos apresentam em suas obras discussões interessantes sobre este tema, especialmente sobre quanto o preconceito lingüístico remete a uma condição sócio- cultural.

Em relação à primeira pergunta, especificamente, podemos encontrar a resposta nos estudos sobre letramento desenvolvidos por Rojo, Kleiman e Signorini, entre outros. Segundo essas autoras, podemos falar em níveis de letramento diferentes, e qualquer sujeito exposto a uma cultura escrita ficaria, sim, “contaminado” por ela, de maneira diferente do que ocorre com sujeitos de sociedades ágrafas.

No rastro da definição de letramento, que será apresentada em item subseqüente, é possível responder à segunda questão ao postularmos o que seria uma

quinta perspectiva sobre a relação oralidade/escrita: uma perspectiva enunciativo- discursiva em que se consideram:

(1) os hibridismos da escrita (Signorini, 2001);

(2) a heterogeneidade da escrita (Corrêa, 2001, 2004);

(3) as práticas de letramento, nas quais, como afirma Rojo (2001), a escrita e o escrito são categorias diferentes; e

(4) o estudo da linguagem escrita a partir da concepção de gêneros discursivos. Nesta perspectiva, que toma como base as teorias da enunciação e as do discurso, referimo-nos a autores, entre outros, como Bakhtin (1981, 2000), Schneuwly, Dolz e cols. (2004), Abaurre et.al. (2003), Chacon (1998), além de Rojo (2001), Signorini (2001) e Corrêa (2001, 2004).