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CAPÍTULO 1: A AFASIA E A ESCRITA

1.1 Afasia e escrita – aspectos neurolingüísticos e neuropsicológicos

1.1.1 O Sistema Funcional Complexo (SFC)

Como aporte teórico, as idéias de Luria (1984) a respeito do Sistema Funcional Complexo (termo emprestado de Anokhin, 1935) são fundamentais para a compreensão de que não há funções corticais determinadas a priori por uma localização cerebral. Ou seja, esse respeitado neuropsicólogo apresenta várias descrições e funções atribuídas a determinadas regiões cerebrais, para contrapor-se ao localizacionismo. Suas pesquisas foram bastante profícuas em relação às atividades cerebrais e às funções cognitivas. Tais estudos foram decorrentes das descobertas de Paul Broca e Wernicke, que determinaram diversas localizações diretas de funções em zonas circunscritas do córtex cerebral (dentre estes, o “centro para a escrita” foi definido como a parte posterior do giro frontal médio esquerdo) e das pesquisas de outros estudiosos da área que se opuseram a estes “localizacionistas estreitos”. Luria (op.cit.) lembra, a propósito, que “Hughlings Jackson aventou a hipótese de que a organização cerebral dos processos mentais complexos deveria ser abordada do ponto de vista do nível da construção de tais processos, em vez de o ser do ponto de vista de sua localização em áreas particulares do cérebro”. (p.10). No entanto, segundo Luria (op.cit.), a hipótese de Jackson só se desenvolveu 50 anos depois, quando Monakow (1914), Head (1926) e Goldstein (1927; 1944; 1948) chamaram a atenção para o caráter complexo da atividade mental humana. Eles postularam “que fenômenos complexos de ‘semântica’ ou ‘comportamento categórico’ são o resultado da atividade de todo o cérebro, em vez de serem produto do funcionamento de áreas locais do córtex cerebral” (op.cit., p.11).

Luria (op.cit.), então, afirma que “nenhum dos processos mentais tais como percepção e memorização, gnosias e praxias, fala e pensamento, escrita e leitura e aritmética, pode ser encarado como representando uma ‘faculdade’ isolada ou mesmo indivisível, que seria a ‘função’ direta de um grupo celular limitado ou seria ‘localizada’ em uma área particular do cérebro”. (p.15). Essas afirmações são particularmente interessantes para os que defendem a idéia de que não há um centro cerebral específico para a escrita, mas que linguagem oral e escrita ocorrem muitas vezes de

maneira simultânea e constitutiva uma da outra, assim como outros processos cognitivos.

A respeito deste assunto, Damasceno (2003), com base nos estudos realizados por Luria, Vygotsky, Piaget, dentre outros, discorre sobre o desenvolvimento das funções corticais superiores (que Luria chamou de processos mentais). Ele afirma que:

A base psicofisiológica dessas funções e de todo ato mental é o “sistema funcional complexo” (SFC) ou “rede neurofuncional”, que se constitui de um conjunto dinâmico de regiões cerebrais interconexas, cada uma delas contribuindo com operações básicas para o funcionamento do sistema como um todo. [...] De acordo com este conceito, apenas certas operações ou mecanismos básicos podem ser localizados em determinadas regiões cerebrais, não as próprias funções psíquicas superiores; e apenas os objetivos ou resultados finais da atividade permanecem constantes, devendo variar seus mecanismos ou operações básicas na medida em que se realizam (p.1).

Entendendo que o cérebro funciona como um sistema integrado, Luria discorre sobre as diferentes funções das zonas corticais primárias, secundárias e terciárias. Sobre esta forma de funcionamento, Damasceno (op.cit.) afirma que uma importante característica do desenvolvimento destas zonas é:

o estabelecimento de uma hierarquia funcional entre elas, de tal modo que a especificidade modal decresce à medida que se vai das zonas primárias às secundárias e terciárias, ou seja, os neurônios de determinada zona primária respondem apenas a uma modalidade de estímulos (p. ex., visuais), enquanto os neurônios da zona secundária e principalmente da terciária respondem a estímulos de tipos cada vez mais variados (táteis, auditivos, etc.). [...] Das zonas de projeção (primárias) às zonas de associação (secundárias e terciárias), os campos receptivos dos neurônios vão se tornando cada vez maiores (mais abrangentes) e as propriedades dos sinais processados, cada vez mais complexas, permitindo sínteses cada vez mais abstratas (p.8).

Damasceno (op.cit.) afirma ainda que, nos adultos em que as funções cognitivas já estão formadas (as zonas corticais terciárias foram as últimas a “amadurecerem”), “essas zonas corticais superiores já assumiram o papel dominante e passam a controlar o funcionamento das zonas secundárias e primárias a elas subordinadas” (p.8).

A partir destas considerações é que entender o funcionamento das zonas terciárias mostra-se importante para nosso enfoque, já que as lesões sofridas pelos três sujeitos investigados ocorreram nesta área cerebral. MG teve um Acidente Vascular Cerebral (doravante: AVC) que atingiu a região têmporo-parietal à esquerda e NS e JM tiveram um AVC isquêmico na região fronto-temporal esquerda. Embora os três tenham apresentado, como conseqüências destes AVCs, afasias de predomínio expressivo, cada um deles as manifestou com características bastante diversas. Devemos considerar também que, embora a região atingida, no caso dos três sujeitos, tenha sido relativamente próxima, não há uma identificação nas conseqüências lingüísticas apresentadas pelos três, o que reforça a tese de que há outros fatores, que não apenas os biológicos, que interferem na constituição e no funcionamento da linguagem.

O próprio Luria já afirmara que uma lesão cerebral local não leva à “perda” direta de uma condição mental particular, como sustentavam os adeptos do “localizacionismo estreito”. Observa-se também em suas reflexões sobre os transtornos na linguagem e demais funções cognitivas que as explicações em relação às alterações de linguagem escrita parecem sempre estar acopladas à descrição de alterações da linguagem oral. Ele nos descreve, por exemplo, uma afasia motora eferente, que é decorrente de uma lesão nas zonas inferiores da área pré-motora esquerda:

Distúrbios desse tipo são encontrados não apenas na linguagem falada de pacientes com lesões das zonas inferiores da região pré-motora esquerda, mas também de sua escrita, na qual a ordem dos elementos se perde e a transição suave de um componente de uma palavra para outro, bem como a retenção da seqüência requerida, são impossíveis, e na qual a perseverança patológica de uma palavra uma vez escrita é evidente, de sorte que esses pacientes não conseguem escrever corretamente. (op.cit, p.159).

Nas palavras de Luria, podemos observar que há ainda uma tendência a descrever funções, fazendo corresponder uma ocorrência em uma determinada modalidade de linguagem a outra, como se essas não se relacionassem às práticas de linguagem, ao funcionamento da mesma. Tal posição seria contrária a uma idéia de linguagem que tem como característica a heterogeneidade, ou seja, a possibilidade de

ocorrer em situações e condições de produções distintas, de maneiras diferentes em sujeitos diferentes.

No entanto, mesmo Luria, apesar da tendência apontada acima, reconhece o papel das ações sociais como importante na constituição da linguagem e de outros processos cognitivos, especialmente na fase de aquisição. Ao definir a atenção voluntária, toma como referência os trabalhos de Vygotsky para dizer que esta não é de origem biológica, mas sim um ato social. Neste sentido, pode ser interpretada como produto, não da maturação biológica do organismo, mas de atividades exercidas pela criança durante as suas relações com os adultos, na organização desta complexa regulação da atividade mental seletiva.

É sobre o papel da qualidade das interações humanas no desenvolvimento da linguagem, idéia defendida especialmente por Vygotsky, que discorreremos no próximo item.