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CAPÍTULO 2 : A RELAÇÃO LINGUAGEM ORAL / LINGUAGEM ESCRITA

2.3 Linguagem escrita e letramento

A partir do que já foi apresentado neste capítulo com relação à diferenciação e comparação entre escrita/cultura escrita/letramento e fala/práticas orais/oralidade, podemos formular algumas perguntas, no âmbito da Neurolingüística:

(1) Em que contextos, condições e práticas são demandadas a oralidade e a escrita para sujeitos afásicos?

(2) Como a refacção aparece na escrita da sociedade letrada e como isso se caracteriza nas condições de uma linguagem patológica (considerando-se as condições culturais dos diferentes sujeitos)?

(3) Como isso aparece nas práticas dos sujeitos que freqüentam o CCA?

(4) Como o continuum entre oralidade e escrita se apresenta na linguagem dos afásicos e como ele atua de maneira constitutiva na superação das dificuldades próprias da condição patológica?

Os estudos sobre letramento podem nos indicar alguns caminhos para reflexão, mas antes de abordar especificamente o letramento, retomamos a idéia de hierarquia e poder atribuída à escrita para contextualizar a posição de poder social que o “saber ler e escrever” confere a algumas pessoas. Historicamente, a fala precedeu a escrita e a escrita nasceu relacionada aos homens do poder. Segundo Fairclough (2001), a relação entre fala e escrita é posta em uma posição na qual se discute o domínio da linguagem em relação ao poder social. O autor afirma ainda que há uma dimensão de

manifestação de informalidade que corresponde a uma mudança na relação entre discurso falado e escrito; essa afirmação está baseada, por exemplo, na observação do processo de colonização da mídia pela conversação, como parte de uma reestruturação importante dos limites entre os domínios público e privado. Ou seja, em suas palavras,

a separação entre fala e escrita não é mais o senso comum que aparenta ser, em qualquer direção. (...) As mudanças da fala para a escrita podem ter tido seu apogeu; os valores culturais contemporâneos atribuem alto valor à informalidade, e a mudança predominante está ligada a formas que lembram a fala na escrita. (p.252).

Ao relacionarmos as condições apontadas acima à situação dos afásicos, que têm sempre sua condição social modificada juntamente com todas as outras mudanças provocadas pelas alterações decorrentes do quadro neurológico que afeta especialmente sua linguagem, entendemos que o posicionamento social, de poder, modifica-se; as relações sociais são outras. As relações de poder determinadas pela escrita nos levam aos textos sobre letramento; compreender o que seja letramento pode ajudar-nos a responder as questões apresentadas pelos autores a que já nos referimos nesta tese: os diferentes letramentos vividos pelos diferentes sujeitos, em diferentes culturas escritas, parecem determinar suas condições de linguagem e os “poderes” que exercem socialmente.

Os dados de NS, especialmente, como se verá nos capítulos 4 e 5, são significativos sobre o significado desse poder cultural que se estabelece a partir das relações sociais e do posicionamento social que cada sujeito ocupa nos processos de interação. Ela atribui à pesquisadora um papel de relevância e poder na relação que se estabelece durante a produção e refacção do texto escrito. Tal papel é claramente definido pela sua história de vida (aspectos sócio-econômicos e, principalmente, culturais – o letramento) que se explicita na interação entre ambas.

A partir destas considerações é que apresentaremos e discutiremos as práticas de letramento e sua influência na vida das pessoas letradas. Os sujeitos afásicos investigados nesta tese apresentam processos de letramento diversos e constatamos que tais processos são bastante significativos na observância de seus desempenhos

em relação à escrita, especialmente no que diz respeito à nosologia destes quadros, podendo, inclusive, questioná-la.

A idéia de letramento aqui apresentada é emprestada de Signorini (2001), que o define como um “conjunto de práticas de comunicação social relacionadas ao uso de materiais escritos, e que envolvem ações de natureza não só física, mental e lingüístico-discursiva como também social e político-ideológica”. (p.8/9) Essa autora afirma ainda que letramento não se confunde com alfabetização, ou seja, não corresponde à aquisição do código escrito e nem é necessariamente precedido por ela. Nesse sentido, letramento deve referir-se a um contexto e a padrões socioculturais determinados. E é justamente por tais características que optamos nesta tese por tratar de letramento e não de alfabetização: importa mais o conhecimento e os usos que o sujeito tem da língua e realiza com ela, do que o quanto de formalização em torno da aquisição do código esse mesmo sujeito apresenta.

Soares (1999) organizou um livro com três artigos publicados por ela mesma em momentos diferentes, todos referentes ao letramento, mas direcionados a públicos diferentes. A autora utiliza-se desses textos para mostrar a diversidade dos gêneros escritos, mesmo que pela mesma pessoa, e o quanto a prática de letramento também pode ser entendida sob esta perspectiva: inserida em determinado tempo e espaço, em determinado contexto (sócio, econômico, cultural, histórico). Com base na leitura dessa obra, achamos interessante retomar especialmente aspectos relacionados à origem do termo letramento.

Segundo essa autora, letramento, tal como se tem usado o termo nos dias de hoje, deriva da palavra de origem inglesa literacy, que vem do latim, littera (letra) acrescida do sufixo –cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser. Ou seja, é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Nesse conceito, está implícita a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Assim também ocorre no português: letra, do latim littera e –mento, que denota o resultado de uma ação. Portanto, letramento corresponde ao estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita.

Comentando as diferentes definições de letramento, Soares (op.cit.) afirma que apesar das diferenças “fundamentais”, as definições de letramento freqüentemente tomam a leitura e a escrita como uma mesma e única habilidade, desconsiderando as peculiaridades de cada uma e as dessemelhanças entre elas (uma pessoa pode ser capaz de ler, mas não ser capaz de escrever; ou alguém pode ler fluentemente, mas escrever muito mal).

Por outro lado, as definições de letramento que consideram as diferenças entre leitura e escrita tendem a concentrar-se ou na leitura ou na escrita (mais freqüentemente na leitura), ignorando que os dois processos são complementares: são diferentes, mas o letramento envolve ambos. Bormuth (1973), por exemplo, declara que “letramento é a habilidade de colocar em ação todos os comportamentos necessários para desempenhar adequadamente todas as possíveis demandas de leitura” (p.72) e Kirsch e Guthrie (1977-1978) argumentaram que “seria prudente usar o termo letramento para referir-se à leitura, e a expressão competência cognitiva para referir-se a habilidades gerais de ouvir, ler, escrever e calcular” (p.505) (Soares, 1999, p.68).

Dando seqüência a seus comentários, a autora afirma que leitura e escrita coexistem como constituintes heterogêneos e correspondem a um conjunto de habilidades bastante diferentes, e não a uma habilidade única. Ela fala dessas habilidades na dimensão individual da leitura e da escrita, entendendo tal dimensão como “tecnologia”.

Já sobre a dimensão social da leitura e da escrita, Soares (op.cit.) afirma que letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita em um contexto específico e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Assim, para ela, uma idéia de letramento “fraca” significa letramento funcional, que significa adaptação; numa versão “forte”, letramento é essencialmente um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem leitura e escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradição e formas de distribuição do poder.

Sobre as posições apontadas por Soares, assumimos que o conceito empregado neste trabalho refere-se à idéia de letramento numa versão “forte”, a qual parece concordar com a idéia de Signorini e Marcuschi, como mostraremos a seguir.

Marcuschi (2001a) afirma que investigar o letramento significa observar as práticas lingüísticas em situações em que fala e escrita são centrais para as atividades comunicativas em curso. Ele apresenta tal idéia procurando demonstrar que essas duas modalidades da língua estão num continuum das práticas sociais e observando a organização das formas lingüísticas no contínuo dos gêneros textuais. Sobre a concepção de gêneros textuais, ele os define pelos usos sociocomunicativos da língua e afirma que “quando nos apropriamos de um gênero, nos apropriamos simultaneamente de formas de comunicação e instrumentos de operação autoritativa (não necessariamente autoritária)” (p.41).

Signorini (2001) discute sua concepção de letramento através da análise do processo de textualização e re(con)textualização de cartas escritas por diferentes escreventes e leitores – tal situação só pode ser avaliada diante da contextualização em que o processo de linguagem, comunicativo, ocorre. Ela mostra que as práticas de uso da escrita estão sempre atreladas à história individual do escrevente/leitor (papéis assumidos, posição social, objetivos, etc.) e da(s) comunidade(s) de que participa, bem como aos diferentes campos de atividades do cotidiano e suas respectivas instituições de referência (op.cit., p. 125). No contexto de produção em que se constrói o texto escrito, seja sua textualização, seja sua retextualização (ou refacção), é que devemos entender o papel do outro e da oralidade.

Uma questão importante no âmbito das pesquisas sobre letramento centra-se na definição de níveis de letramento. Rojo (2001) refere-se a diferentes práticas e processos de letramento em diferentes grupos e contextos. Ela reflete sobre os tipos de fala e apropriação de escrita que se faz, numa perspectiva enunciativa baseada em Bakhtin (1979), que distingue gêneros primários e secundários, e em relação ao que Schneuwly (1997 apud Rojo, 2001) afirma: de que não há um “oral” determinado, mas os “orais”, “atividades de linguagem realizadas oralmente; gêneros que se praticam essencialmente por meio da oralidade” (p.56). Isso também pode ser dito para os escritos, afirma Rojo. Nesse sentido, “falar da escrita seria falar da multiplicidade de escritos que circulam em esferas privadas e públicas e que mantêm relações complexas com os orais que também circulam nestas esferas, em diferentes situações” (Rojo, op.cit., p.56).

Rojo (op.cit.) critica, em seus estudos, a idéia da dicotomia entre oralidade e escrita, demonstrando que tais modalidades da língua não se separam tão radicalmente para indivíduos que crescem dentro do padrão escolar de letramento, mas, ao contrário, mantêm relações complexas de hibridização de gêneros e modalidades. Daí não falarmos em graus de letramento, mas em diferentes letramentos.

Considerando-se que existem diferentes letramentos, escolhemos, como material de investigação desta tese, o gênero “relato de vida”. Ou seja, havia necessidade de se escolher um mesmo gênero para os três sujeitos investigados, um gênero discursivo que pudesse ser efetuado em um estudo longitudinal e que fosse reconhecido pelos três sujeitos como possível para a atividade escrita, independente de suas práticas de letramento. A seguir, abordamos a caracterização deste gênero relato de vida.