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CAPÍTULO 4 : OS DADOS – ASPECTOS METODOLÓGICOS

4.2. Aspectos metodológicos

Nesta tese, investigamos os processos de refacção textual escrita empreendidos por três sujeitos afásicos. As informações que temos deles, especialmente de seus letramentos, nos levaram a propor uma produção textual com o gênero “relato de vida”. Embora cada qual tenha suas características e histórias de letramento particulares, optamos por esse gênero a fim de obter um corpus que nos permitisse alguma análise mais consistente, uma vez que os três sujeitos investigados apresentavam uma certa proficiência nesse tipo de relato, ainda que lhes pudesse parecer novidade como gênero escrito (em função dos quadros afásicos apresentados). A questão investigada não teve o objetivo de provar competência no gênero textual, mas verificar os lugares em que a refacção seria possível e como ela se manifestaria. O gênero “relato de vida” foi o escolhido como o campo de análise propriamente dita, mas outros gêneros, como bilhete e lista, foram utilizados como textos diagnósticos. Vale considerar que o relato de vida é permeado de subjetividade e a refacção deste gênero textual pode

corresponder a uma busca da veracidade das informações veiculadas ou a uma dificuldade em, justamente, dizer essas verdades e viver novamente fatos que já se foram, como já explicitamos nos capítulos anteriores.

Para justificar a escolha metodológica, evocamos as idéias de Granger (1989), Abaurre (1996), Corrêa (1996), Perroni (1996) e Martins e Bicudo (1989) a respeito do tratamento dos dados e da pesquisa sobre linguagem.

Diante do objeto da pesquisa empreendida, a partir do qual procuramos investigar fenômenos e não simplesmente fatos, optamos por uma metodologia de pesquisa qualitativa. Entendemos, neste sentido, concordando com Martins e Bicudo (1989), que fenômeno é aquilo que se mostra, que se manifesta, variável em si mesmo. Em sentido oposto, eles afirmam que o fato é controlado após ter sido definido, e é este que determina a pesquisa quantitativa. Perroni (1996) defende que é através dos “fenômenos” que os elementos intelectuais tornam-se inteligíveis, interpretáveis, e que “os ‘fatos’ seriam anteriores intelectualmente às teorias, que por sua vez seriam desenvolvidas para explicá-los, o que significa que seriam também passíveis de reconhecimento independentemente e antes de qualquer construção de teoria” (op.cit., p.16)

Corrêa (1996) discorre em seu texto sobre aspectos positivos e negativos em relação aos métodos experimentais e os naturalistas/observacionais, defendendo a posição de que os dois métodos não representam categorias estanques, mas que se encontram num continuum. A opção por um determinado ponto neste continuum é que determinaria o método de estudo a ser empreendido.

Abaurre (1996), por sua vez, interessa-se em saber que fato singular, que aspecto do contexto, de forma ou significação lingüística, ou que combinação desses fatores podem ter adquirido saliência particular para o sujeito que investiga e busca uma solução ao problema que se apresenta, ainda que, muitas vezes, de maneira episódica e circunstancial. Ela afirma:

Quando chamo a atenção para o interesse teórico dos episódios e seus dados muitas vezes singulares, faço-o (...) no contexto de um conjunto de estudos lingüísticos em que à interlocução, aos atores sociais, à micro e macro-história, é atribuído um estatuto teórico específico (...) interessada

não apenas nas características formais do objeto lingüístico, mas também no modo e na história da sua constituição e constante transformação. (p.130)

No caso deste trabalho, o fenômeno (como dado) a ser investigado é o processo de refacção textual, realizado por sujeitos afásicos em suas produções escritas.

Sendo esta uma pesquisa qualitativa, centralizada na peculiaridade do fenômeno estudado como um dado singular, buscamos uma compreensão particular deste, de tal forma que a explicação do dado não seja o objetivo, mas uma conseqüência. A observação e a análise da realidade, executadas de maneira teórica e prática, fornecem recursos para ver os objetos da percepção na sua origem social, histórica e de funcionamento, assim como na sua interdependência e na determinação de seu desenvolvimento, como afirmam Martins e Bicudo (1989). Segundo esses mesmos autores, “a pesquisa qualitativa é considerada, basicamente, descritiva. As descrições são tratadas interpretativamente. Entretanto, algumas questões de ordem metodológica podem ser colocadas no que se refere aos procedimentos desse modo de pesquisa” (op. cit., p. 28).

Granger (1989), ao mostrar o sentido efetivo da oposição entre quantitativo e qualitativo, defende a legitimidade de um conhecimento qualitativo, afirmando que um conhecimento filosófico não poderia ser de modo algum quantitativo. Como ele registra: “A oposição da qualidade à quantidade só pode ser facilmente entendida como uma oposição, por assim dizer, ontológica, que estaria profundamente enraizada no ser. (...) É, portanto, ao nível de uma lógica ‘objetiva’ – por oposição a uma lógica ‘subjetiva’ – que se situa a oposição, que é então dinamizada numa lei de ‘passagem do quantitativo ao qualitativo’” (p.98).

Retomando a preocupação dos autores citados, os dados aqui mostrados foram qualitativamente coletados e analisados, em duas situações especialmente distintas:

1. Nas práticas discursivas realizadas pelos sujeitos que freqüentam o CCA (Centro de Convivência de Afásicos), durante as dinâmicas do trabalho ali desenvolvido (agenda, bilhetes, cartazes, leitura de jornais, elaboração de um livro de divulgação sobre as afasias, caracterizando os diferentes gêneros discursivos utilizados). Tais observações

foram especialmente importantes para a caracterização da condição de leitor/escrevente de cada um dos sujeitos deste trabalho.

2. Em entrevistas individuais com os sujeitos afásicos, aos quais foram solicitadas a escrita inicial de um texto que pudesse ser lido, referente à história de vida de cada um, especialmente em torno do acometimento neurológico que sofreram; e a refacção deste texto, a partir da interlocução com a investigadora, principalmente no momento em que o texto seria digitado em edição final, para que pudesse ser lido por diferentes leitores (uma vez que seria disponibilizado na Internet no site do CCA)16.

Para coletar as amostras de escrita, ocorreram encontros semanais ou quinzenais até que a fase final, a que chamamos de “digitada”, fosse atingida. Portanto, a depender do ritmo de cada sujeito, o número de encontros foi variável. A primeira etapa ocorreu no segundo semestre de 2001 e a segunda no primeiro semestre de 2003. As atividades referentes a esse processo foram vídeo-gravadas. Com a finalidade de poder analisar, a posteriori, os dados observados na gravação, a pesquisadora fazia registros sob a forma de diário, ao mesmo tempo em que acompanhava as atividades de escrita pelo vídeo, o que acabou se mostrando muito válido para confrontar os dados obtidos. Além dos textos que foram reescritos para inserção na Internet, foi solicitado que cada um dos sujeitos escrevesse uma lista de afazeres domésticos e/ou produtos de casa (tipo lista de compras), fizesse uma cópia, escrevesse palavras ditadas pela investigadora e escrevesse um bilhete a respeito de fatos combinados no CCA para sujeitos ausentes naquele encontro. Tais solicitações tiveram o objetivo de acrescentar informações sobre a condição de letramento dos sujeitos a partir de gêneros e modos diversos daquele da investigação propriamente dita.

Os sujeitos investigados, então, foram três: um homem e duas mulheres. A escolha destes sujeitos ocorreu a partir de suas histórias, na qual a linguagem escrita, anterior aos quadros afásicos, ocupava um lugar de uma certa relevância; também consideramos que estes sujeitos estudaram ao menos até a 4ª série do ensino fundamental (ou seja, apresentavam um processo de letramento minimamente

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escolarizado), liam e escreviam, mesmo que com dificuldades, e tinham algum interesse por esse tipo de atividade de linguagem.

Embora não tenhamos uma referência exata de suas histórias com a linguagem escrita anterior às afasias, sabemos, pelos registros pesquisados e pelas entrevistas realizadas, que seus letramentos diferem significativamente. Tais características estão melhor explicitadas no Anexo 1, no qual há uma breve descrição neurolingüística de seus quadros afásicos.

Para analisar os dados coletados, procuramos verificar os processos constitutivos da refacção textual de sujeitos afásicos, em relação aos diferentes quadros afásicos apresentados por eles. Além destes, foram considerados outros aspectos, como:

• as diferentes configurações ou gêneros discursivos: bilhetes, relato de história de vida, cartas, recontagem, receitas, listas de compras, agendas, etc. – em situações de leitura e escrita;

• os diferentes modos e condições de produção de texto (manuscrito, no computador, gestos calcados na expressão escrita (escrita “no ar”) e nas entrevistas com a investigadora);

• as diferenças dos quadros afásicos e as particularidades de cada sujeito, especialmente as condições de letramento que apresentam e como este foi constituído;

• os processos de refacção próprios de cada sujeito em cada uma das situações de produção.

Em relação aos aspectos de refacção textual evidenciados pelos sujeitos afásicos foram observados:

1. Os aspectos lexicais (morfológicos, especialmente), particularmente evidenciados por cada um dos sujeitos nos processos de refacção.

2. Os aspectos sintático-semânticos, em que verificamos a articulação dos níveis lingüísticos e a ordem estrutural e sintática do texto;

3. O ambiente sóciolingüístico de cada sujeito, em que consideramos a variedade de linguagem utilizada e o conjunto de estratégias discursivas usadas para garantir a adesão dos interlocutores.

Os dados coletados foram organizados em tabelas, por sujeito e por etapa de coleta e, ao final, foram comparadas as ocorrências de uma maneira geral, como será apresentado no item que se segue.