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CAPÍTULO 3 : REFACÇÃO E CONTINUUM ORALIDADE/ESCRITA

3.4 Sobre a idéia de continuum

Escolhemos finalizar a discussão da literatura pela reflexão que o termo

continuum tem suscitado, como uma forma de resumir a posição teórica que

assumimos. Tal discussão mostrou-se importante no decorrer desta tese, uma vez que se depreende do termo uma idéia de que há dois pólos que se aproximam e se distanciam podendo se misturar, sem, no entanto, se fundirem ou se oporem.

No dicionário encontramos a seguinte definição sobre Continuum: [Lat.] S.m. 1. Mat. Conjunto compacto e conexo; conjunto contínuo. 2. Fís. Contínuo espaço-tempo. (Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1988). Salientamos que não é essa idéia de continuum que adotamos neste trabalho, já que justamente queremos apagar as dicotomias entre oralidade e escrita que tão enfaticamente alguns estudos determinam. Há, então, toda uma discussão conceitual em torno da polifonia que a ele é conotada que procuramos apontar neste item. A idéia de heterogeneidade, ao ser associada a essas considerações no âmbito das discussões sobre o continuum, pode nos levar à reflexão acerca de uma ocorrência, muitas vezes concomitante, solidária, interativa, mutuamente constitutiva entre oral e escrito, como queremos demonstrar. Além deste aspecto, de apagamento da dicotomia fala/escrita, oralidade/letramento, queremos inserir nessa discussão o papel do sujeito na língua, em suas práticas interacionais de e com linguagem.

Já Kato (1986/1998) havia se manifestado a respeito da idéia de oral e escrito, enquanto modalidades da língua que se encontram numa relação de continuum. No entanto, a autora trabalha com uma posição ainda dicotomizada a respeito da relação entre linguagem oral e escrita. Ela se refere à fala e à escrita como duas modalidades que “são constituídas de forma a atender às condições gerais de uso da linguagem. Essas situações de uso [...] formam um contínuo, no qual o uso conversacional e o uso autônomo ocupam os extremos” (Kato, op.cit., pp. 26/27).

Sobre a relação de continuum entre oralidade e escrita, de seu turno, Marcuschi (1995, 2003a), superando o estruturalismo trazido pelas discussões mais tradicionais, como a de Kato, afirma que “mais urgente (e relevante) do que observar oralidade e escrita como simples modos de uso da língua, é a tarefa de esclarecer a natureza das

práticas sociais que envolvem o uso da língua (escrita e oral) de um modo geral” (op.cit., 2003, p. 18). Em seu percurso para tratar dessa questão, ele nos aponta o quanto as práticas sociais determinam o lugar, o papel e o grau de relevância da oralidade e da escrita numa sociedade, reivindicando que a questão da relação entre ambas seja posta no eixo de um contínuo, tanto sócio-histórico como tipológico, e até morfológico.

Marcuschi (1995) salienta ainda que tanto a fala como a escrita ocorrem formal ou informalmente, passando por graus intermediários; segundo ele, um mesmo falante pode ter desempenhos diversos durante um mesmo dia e, além disso, lembra que formalidade e informalidade podem sobrepor-se em determinadas formas textuais. Citando Blanche-Benveniste (1987), ele afirma que sabemos em que situações devemos usar um ou outro tipo de linguagem, o que envolve juízos ideológicos, preconceitos estéticos e conhecimentos sociais. Isto também significa que “dominamos uma classificação de textos intuitiva e adequada às situações dentro do contínuo lingüístico” (Marcuschi, op.cit.: 196).

Considerando que tal concepção, ou seja, a de que fala e escrita estão num contínuo lingüístico, possa evitar comparações desiguais, Marcuschi defende que as análises lingüísticas, textuais, devam ser feitas sobre um mesmo objeto produzido sob condições semelhantes, com finalidades semelhantes. Sobre este aspecto, ele afirma:

As relações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no contínuo (ou grade) dos gêneros textuais (que em boa medida se dão em relações de contrapartes, ocorrendo em grau significativo, gêneros similares nas duas modalidades; (...) não há qualquer diferença lingüística notável que perpasse o contínuo de toda produção escrita, caracterizando uma das duas modalidades (pois as características não são categóricas nem exclusivas). (Marcuschi, 2003a:45).

É também sob essa perspectiva, em que se admite a existência de um continuum entre oral e escrito, que Koch (1998a), apresentando proposições teóricas consoantes à posição de Marcuschi, fez suas considerações a respeito do tema. Ela considera relevante a existência de textos que, independente de suas formas (oral ou escrita), tenham características que os aproximem mais de uma ou outra modalidade da língua (os pólos do contínuo) e afirma que:

O que se verifica, na verdade, é que existem textos escritos que se situam no contínuo mais próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários (p.61- 62).

Corrêa (2004), por sua vez, não se refere à relação entre o oral e o escrito enquanto um continuum, como Marcuschi e Koch. Pelo contrário, ele rejeita, de certa maneira, a sua utilização15, mas usa termos como “mixagem” (p.82), “justaposição de unidades de comunicação” (p. 102), “conexão do heterogêneo” (p.106) e “movimento flutuante entre esses dois processos” (p.233) para identificar que entre essas modalidades de linguagem há um movimento estabelecido no fluxo entre elas, que também é heterogêneo em termos enunciativos, discursivos.

Utilizando o termo mixagem para referir-se à representação que o escrevente faz da gênese da escrita como uma possibilidade de representação fiel da oralidade, Corrêa (op.cit.) afirma que:

Pontuando em seu texto marcas lingüísticas que nascem dessa mixagem, o escrevente confere à sua escrita um poder quase ilimitado de representação e fidelidade representacional. Esse lugar que lhe é atribuído não corresponde, porém, a um limite máximo da força representacional da escrita, situado num dos pólos de um suposto contínuo. É, pelo contrário, um dado constitutivo da imagem que se faz da escrita e, por essa razão, constitui-se num dos eixos de representação pelos quais, em dados momentos, circula o escrevente (pp.81/82) .

Segundo Corrêa (2004), “considerar a heterogeneidade da escrita no que se refere à relação entre o falado e o escrito é assumir o seu caráter de prática social” (p.160), e defini-la pela convivência com outras práticas sociais (a oral, por exemplo) e não pela proposição de fronteiras precisas. No limite, a reflexão sobre continuum não deixa de estar presente, de uma forma ou de outra, na reflexão de Corrêa.

De todo modo, é importante salientar que se de um lado autores, como os mencionados acima, tomam a reflexão sobre continuum de maneiras e perspectivas

diferentes, não deixam de salientar os ganhos teóricos que essa reflexão sobre a relação oral/escrito, oralidade/letramento têm fornecido à Lingüística.

Nos capítulos seguintes, a propósito, veremos um movimento de continuum durante o processo de elaboração textual. No caso de sujeitos afásicos, há uma construção textual conjunta, colaborativa, entre escrevente e interlocutor que possibilita uma ocorrência de linguagem oral e escrita e entre gêneros que muitas vezes se sobrepõem. Esta ocorrência, assim redimensionada, podemos entender como

continuum. Nesse sentido, podemos considerar tanto a heterogeneidade da escrita

(Côrrea, 2001, 2004) como os modos como os escreventes a concebem e as práticas que as significam. É sob essa perspectiva de que a escrita pode ser utilizada para organizar a fala, por exemplo, que podemos admitir que, embora fala e escrita tenham realidades semiológicas diferentes, haja grande imbricação entre as duas na linguagem produzida por afásicos. Isto não significa identificá-las, mas considerar que elas podem apresentar uma ocorrência simultânea.

Com isso, colocamo-nos de uma vez por todas numa posição mais enunciativa, em que a condição de produção particular do discurso escrito, realizada por um sujeito afásico, é fundamental. Nessa condição, insere-se toda a cena enunciativa, com a participação de interlocutores que exercem uma atividade conjunta de produção textual. A descrição do evento enunciativo é, então, importante para a consideração dos processos de produção textual analisados – as refacções textuais escritas.