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A dança contemporânea: investigação de possíveis corporais

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 142-146)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

2. O corpo-dançante contemporâneo e as multiplicidades do

2.2 O corpo-dançante contemporâneo: um corpo em devir

2.2.1 A dança contemporânea: investigação de possíveis corporais

O que é possível fazer com um corpo? É a questão que a dança contemporânea tem sempre, de uma certa maneira, procurado desenvolver – e que podemos chamar “territórios de movimentos”, ou seja, a potência de ser do corpo-dançante. É também a proposição sistemática, posta de maneira radical, por Merce Cunningham.

Os “territórios de movimentos” de Merce Cunningham

Merce Cunningham explica seu método de trabalho diante de uma construção de dança:

Je suis quelqu’un de très pragmatique (…) je me suis mis à la barre et je me suis posé une question: que serait-il possible de faire avec les épaules et les hanches qui bougent en même temps? J’ai cherché sur moi-même, et, bien entendu, ce qui en est sorti était tout à fait différent de l’idée de départ. J’ai

commencé à explorer un territoire de mouvement qui avait sa propre nature216. (1999, p. 200).

Merce Cunningham exprime uma atitude fundamental da dança contemporânea. Embora partindo da finitude do corpo humano, ele não reduz o corpo a sua finitude, procura meios de alargá-lo, dilatá-lo, em busca do que pode fazer ou ser um corpo-dançante contemporâneo. Junto a isso, o que é tanto mais interessante na abordagem de Cunningham é que o trabalho acontece a partir de instruções físicas, e não de uma idéia a priori, de um sentimento, de uma mensagem a ser passada. Dessa maneira, ele “objetiva”, por assim dizer, a investigação da dança contemporânea. É essa mesma postura que atravessa toda sua obra, notadamente em suas pesquisas com os computadores. O computador, diz ele, “m’a permis de voir des mouvements qui avaient toujours existé, mais que je n’avais jamais vus217”. (Id. Ibid., p. 201-202). Ele explica em outro artigo: “je pense que je verrais encore d’autres choses de cette façon. Pas de choses artificielles: des possibilités vraiment inscrites au corps mais qu’on n’actualise pas parce qu’on ne sait pas qu’on les a218”. (1999a, p. 107). A pesquisa sobre o corpo- dançante contemporâneo é, assim, segundo Merce Cunningham, uma tentativa de atualizar o possível corporal.

Nas propostas de Cunningham, o território de movimento é o potencial físico do corpo. Se esse potencial suscita sempre e ainda a sede de criação nos grandes coreógrafos tal como Merce Cunningham, ele permanece, no entanto, inscrito em um certo limite: aquele do corpo anatômico. De fato, como diz o coreógrafo americano:

216

Tradução nossa: “Sou alguém muito pragmático (...) me coloquei na barra e me pus uma questão: o que seria possível fazer com os ombros e quadris movendo-se ao mesmo tempo? Procurei em mim mesmo, e, naturalmente, o que saiu era completamente diferente da idéia inicial. Comecei a explorar um território de movimento que tinha a sua própria natureza”.

217

Tradução nossa: “me permitiu ver movimentos que sempre existiram, mas que nunca tinha visto”.

218

Tradução nossa: “penso que veria ainda outras coisas desta maneira. Não coisas artificiais: possibilidades realmente inscritas no corpo mas que não se atualiza porque não se sabe que as temos”.

(...)en danse, vous êtes lié par le fait qu’il s’agit du corps- humain, qui a deux jambes, dont les genoux plient d’une certaine façon et pas d’une autre… et si vous essayez d’enfreindre ces lois, vous vous blessez. C’est la limite humaine et c’est une vraie limite219 . (1980, p. 160).

Virar a cabeça a 360° é ainda impossível!

Novas tecnologias e devires não-humano do corpo-dançante contemporâneo.

A pesquisa em multimídia, feita por alguns coreógrafos nos últimos anos, está ainda à margem em relação ao conjunto e a produção de dança contemporânea. Contudo, tais pesquisas apresentam questões importantes relativas ao corpo-dançante contemporâneo. Uma delas diz respeito ao próprio limite humano, explorando, segundo as palavras de Jean-Marc Matos, dança e o conceito de multimídia de modo a nos mostrar “nouveaux territoires de création220”. (1999, p. 67). A captura de movimento, que é uma das invenções marcantes da multimídia221, permite, por exemplo, captar os movimentos dos braços de um bailarino e os de um outro bailarino: o bailarino virtual será assim uma composição de dois. Merce Cunningham empolga-se com as possibilidades do campo de criação que a multimídia permite: “on pourrait brancher une autre paire de jambes sur “Biped” si on voulait!222”. (1999a, p. 107). O movimento captado (que dá, por exemplo, o corpo-dançante bípede) pode em seguida ser tratado pelo computador: podendo-se juntar aí (e por conseqüência modificar e jogar com) os efeitos de

219

Tradução nossa: “(...) em dança, você está vinculado ao corpo humano, que tem duas pernas, cujos joelhos dobram de uma certa maneira e não de outra... e se você tentar transgredir essas leis, você se machuca. É o limite humano e é um limite real”.

220

Tradução nossa: “novos territórios de criação”.

221

Existem diversos sistemas de captura do movimento: o sistema magnético com fios (os movimentos são, assim, limitados por cabos), o sistema magnético com emissor (o emissor é preso nos dedos do bailarino e modifica seu centro de gravidade, não permitindo que ele faça exatamente seus próprios movimentos) e o sistema óptico com câmeras indicando cada uma um ponto do corpo (no movimento, o ponto não é mais visível pela câmera. Para isso, necessitaria de um grande número de câmeras de retransmissão).

222

Tradução nossa: “poderíamos conectar um outro par de pernas em um bípede, se quiséssemos”.

contatos e de peso não captados até agora... É assim que podemos, exclama Cunningham, “tester des situations, des combinaisons de mouvements que seraient impossibles pour un vrai danseurs223”. (Id. Ibid., p. 107).

Se essas possibilidades tecnológicas excedem o que pode fazer o corpo humano que dança, ou seja, esses territórios de movimentos abertos pelas novas tecnologias, tais possibilidades fazem parte, no entanto, do corpo-dançante contemporâneo. O corpo-dançante “tratado” pelas novas tecnologias é um “corpo aumentado”, como diz Jean-Marc Matos. Nessa perspectiva, o que chamamos “corpo-dançante contemporâneo” inclui também o corpo humano que dança essas novas atualizações numéricas. As novas tecnologias experimentam os devires não-humanos do corpo-dançante contemporâneo.

Para reforçar essa idéia, podemos trazer os propósitos de Laurence Louppe: “il y a bien longtemps que la danse propose un imaginaire du corps et un système cognitif que la science et les technologies sont venues

confirmer et renouveler et non pas contredire224”. (MATOS, Jean-Marc, 1999,

p. 69). O corpo-dançante artificial se encontra, de fato, na linha do corpo prótese ou aparelhado, tal como desenvolvido, por exemplo, por Philippe Découflé, usando sistemas de suspensões elásticos, figurinos deformantes e protuberantes225. Por meio desses diferentes artifícios, a dança contemporânea não cessa de se perguntar o que é, ou o que pode ser, o corpo-dançante contemporâneo. As pesquisas com as novas tecnologias vêm reforçar, assim, essas questões determinantes da dança contemporânea. “être ici et là en même temps, déconstruire le temps et l’espace pour le reconstruire selon nos goûts (…): voilà ce qui se passe dans l’espace des

223

Tradução nossa: “testar situações, combinações de movimentos que seriam impossíveis para um bailarino real”.

224

Tradução nossa: “há muito tempo que a dança propõem um imaginário do corpo e um sistema cognitivo que a ciência e as tecnologias vieram confirmar e não contradizer”.

225

Ver, por exemplo, a cerimônia de abertura e término dos jogos olímpicos de inverno de Albertville em 1992.

réseaux (numérica). Dans l’acte de chorégraphier, est-ce si différent de cela?226”, observa Jean-Marc Matos. (1999, p. 74).

A pergunta de Jean-Marc Matos, se trata mais de uma exclamação. O que ele diz enfatiza os corpos “numeralizados”, os corpos reais-artificiais, como corpos-dançantes contemporâneos. De outra maneira, lembremos, o corpo-dançante é um corpo produzido pelo agenciamento de dança contemporânea – é nesses termos que se distingue diretamente do corpo humano. O fato das novas tecnologias atualizarem o corpo-dançante diferenciando-o do corpo humano, coloca em questão a “natureza do corpo”. Se a dança, arte do corpo, trazia sempre uma ambivalência com relação à idéia de um corpo natural, aqui o corpo da dança jamais apareceu tão descolado de um corpo “ao natural”.

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 142-146)