• Nenhum resultado encontrado

Exemplos de apresentação das forças

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 75-79)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

2. As forças corporais: terriço de criação da dança contemporânea

2.2 Exemplos de apresentação das forças

Toda dança, como vimos, se constrói sobre a “terra corporal”, que é uma “apresentação” das forças corporais. Analisemos agora como ela se efetua em dança contemporânea. Como o corpo-dançante da dança contemporânea é conduzido a apresentar as forças? Através de alguns exemplos, veremos diferentes casos de composição e de apresentação das forças.

2.2.1. Fall and Recovery de Doris Humphrey

A técnica “Fall and Recovery” (queda e recuperação) desenvolvida e teorizada por Doris Humphrey constitui toda uma face da barra contemporânea. Esse exemplo mostra bem como as forças vão ser novamente utilizadas, distribuídas, e como elas vão aceder a uma nova visibilidade.

Fall and Recovery (cair, perder o eixo e recuperá-lo) associa em um mesmo ciclo a queda e o retorno à verticalidade. É, por exemplo, nos exercícios de se deixar cair que o corpo inteiro sai de seu eixo (Fall), retomando-o após empurrar o chão (Recovery). A vertical é um estado que se atinge e que se deixa. O equilíbrio é apenas uma passagem entre desequilíbrios. É todo o oposto da disposição clássica, que se orienta segundo o princípio do “aplomb”.

No agenciamento clássico, o estado de equilíbrio estável e simétrico tende a abrandar o trabalho das forças e apagar qualquer vestígio de esforço. Ao contrário dessa disposição, pelo desequilíbrio, a dança contemporânea valoriza o trabalho das forças. É com esse olhar que Doris Humphrey vê o sentido de sua teoria, segundo o qual “la danse existe dans l’arc entre deux

morts80”. Para a coreógrafa, o movimento na dança contemporânea se acha

entre esses dois extremos: “aplomb” (as forças distribuídas segundo o eixo

80

Tradução nossa: “a dança existe no arco entre duas mortes” – Doris Humphrey, citado por ROCHAIS, A ( 2003, p. 50).

vertical) e o horizontal (o repouso das forças no solo). Nessa ótica, o equilíbrio é “a morte” do movimento contemporâneo, já que o desequilíbrio articula as oposições, as tensões que se movem no corpo e, com ele, o espaço. Com efeito, o desequilíbrio nasce de relações diferenciais de forças que, por sua vez, é o princípio do movimento na dança de Humphrey.

A exploração do movimento “fora do eixo”, como o Fall and Recovery, faz bascular a dança contemporânea nessa concepção do movimento. As forças corporais não estão mais a serviço do equilíbrio, da simetria. São delineações sobre as quais o movimento se trama, em suas dobras, fluxos e densidades81. A gravidade é vista não mais por ela mesma, mas, sobretudo, compreendida nas resistências possíveis do corpo-dançante. A gravidade torna-se, assim, menos um constrangimento “unilateral”, um incomodo, que o princípio do jogo de forças. É com ela e a partir dela que o movimento é tomado. Trata-se, pois, de positivá-la em sua negatividade. O bailarino não a nega, mesma quando ela o persegue em seu contra-fluxo. O bailarino a toma e a desdobra segundo o movimento a ser dançando. Portanto, as palavras de ordem “o bailarino luta contra a gravidade”, não dão conta da dança. Esta necessita sempre de conexões, de ligações, de encontros que a coloquem num fluxo de acontecimentos.

2.2.2. A exploração da respiração: tornar audíveis as forças

A dança contemporânea, escreve Laurence Louppe, tende a recusar “l’essoufflement pudiquement retenu du danseur académique toujours assigné à l’occultation de la machine corporelle82”. (2000, p. 92). De fato, na dança contemporânea, diz ela, a respiração é o inverso : “dramatisé, utilisé pour son effet auditif ou visuel83”. Ela torna-se, assim, "matériau expressif

81

Podemos ver essas forças, sobretudo, nos movimentos de balanço dos braços, das pernas, na frente ou atrás, ou em tantos outros eixos movimentados pela dança contemporânea. O balançar, que é de fato uma queda parcial de um membro, apresenta, notadamente, o jogo dessas forças no corpo – como no Fall and Recovery, onde é visível as forças em trabalho corporal.

82

Tradução nossa: “A falta de ar retida do dançarino acadêmico, sempre atribuída à ocultação da máquina corporal”.

83

direct84”, e isso, sobretudo, nos anos de 1980, ressalta. A respiração prolonga e é a medida das relações de forças trabalhando a “máquina corporal”. Não é ela, nessa perspectiva, um novo modo de “apresentação” das forças que se movem no corpo-dançante? Nos parece que a respiração, visível nos bailarinos contemporâneos, torna não mais visíveis, mas audíveis as forças corporais.

Tal pensamento encontra ressonância com as reflexões de uma das mais marcantes coreógrafas do século XX: Mary Wigman. A respiração, segundo a coreógrafa alemã, “commande silencieusement les fonctions musculaires et articulaires85”. (1990, p. 16). É ela “qui sait attiser et amener la détente, exciter et retenir; qui freine la structure rythmique et dicte le phrasé des moments coulés; qui, par dessus tout, module l’expression dans sa relation avec la couleur rythmique et mélodique86”. (Id. Ibid., p. 16). A respiração ergue-se plenamente das forças do corpo; é efetivamente, segundo a expressão mesma de Mary Wigman, uma “force dynamique” (força dinâmica). É a força de um corpo-dançante que se suspende e alonga-se ou, ao contrário, encolhe-se e se fecha de repente. É também a energia do corpo-dançante em trabalho com a gravidade.

A dança contemporânea apresenta e valoriza esteticamente as forças imanentes do corpo. A respiração mostra as forças corporais que atravessam os músculos e a estrutura do corpo em sua conjunção. Longe de ser um tabu, elas são exploradas em seu jogo estético. Para a dança contemporânea, as forças corporais acedem a uma “nova visibilidade”, uma “audibilidade”. Elas são mostradas e geradas do movimento: o “terreno de criação” da dança contemporânea, compondo suas corpografias.

Enfim, abordaremos em seguida o “jogo de forças” sob uma perspectiva diferente, que vai, por sua vez, ao encontro de François Raffinot e suas reflexões sobre o chão e o espaço.

84

Tradução nossa: “material expressivo direto”.

85

Tradução nossa: “comanda silenciosamente as funções musculares e articulares”.

86

Tradução nossa: “quem sabe agitar e conduzir o abrandamento, excitar e reter; quem freia a estrutura rítmica e dita o fraseado dos momentos de ligação; quem, acima de tudo, modula a expressão na sua relação com a cor rítmica e melódica”.

2.2.3. O solo, o espaço... segundo François Raffinot

O solo é “un élément très affectif pour les danseurs87”. (RAFFINOT, F. 2002, p. 22). Ele deve ser “souple, dynamique, chaud, fait en bois88”. Como que “véritable partenaire89” do bailarino, “le sol répond ou ne répond pas, le danseur se sent à l’aise ou pas, la danse est fluide ou non90”, explica o coreógrafo francês. (Ibid., p. 22-23). O corpo-dançante encontra, assim, diferentes solos e deverá de alguma maneira se adaptar a eles. Em outros termos, “compor” com eles. O solo pode ainda ser considerado como sendo um elemento físico, palpável, quer dizer, como um incômodo exterior ao corpo-dançante. Portanto, o verdadeiro parceiro induz uma relação mais “íntima”, ou ainda afetiva, como diz Raffinot.

É igualmente assim que François Raffinot analisa o espaço, elemento mais abstrato: “Qu’il soit souple, soyeux ou tendu comme sur un tambour, aux résonances sourdes, profondes ou claires et transparentes, l’espace respire toujours comme une peau. Je vois l’espace expirer et m’inspirer91”. (Ibid., p. 13). O que é particularmente interessante nas palavras de Raffinot é que ele nos coloca mais próximos do encontro do corpo-dançante e do espaço. Espaço e corpo-dançante se interpenetram a tal ponto que o coreógrafo entrevê “l’espace comme une matière vivante”, que é “pouvoir d’enflammer, de faire blêmir, frémir, frissonner ou palpiter92”. (Ibid., p. 13-14).

Podemos estender o testemunho do coreógrafo a isso que se chama,

87

Tradução nossa: “um elemento muito afetivo para os dançarinos”.

88

Tradução nossa: “flexível, dinâmico, quente, feito em madeira”.

89

Tradução nossa: “verdadeiro parceiro”.

90

Tradução nossa: “o solo responde ou não responde, o dançarino se sente à vontade ou não, a dança é fluida ou não”.

91

Tradução nossa: “Que ele seja macio, sedoso ou firme como sobre um tambor, de ressonâncias surdas, profundas ou claras e transparentes, o espaço respira sempre como uma pele. Eu vejo o espaço expirar e me inspirar”.

92

Tradução nossa: “o espaço como uma matéria viva”, que é “poder de inflamar, de fazer empalidecer, tremer, arrepiar ou palpitar”.

em dança contemporânea, o “trabalho das sensações93”. Numerosos artistas conduzem, de fato, pesquisas sobre o sensitivo e o perceptivo, seja sobre o papel da audição, da visão, mas ainda do contato no movimento94. O que vemos produz o que sentimos e, reciprocamente, nosso estado corporal está implicado na interpretação daquilo que vemos. Através da exploração do corpo como matéria sensível e pensante, a dança do século XX não cessou de deslocar e confundir as fronteiras entre o consciente e o inconsciente, o “eu” e o outro, o interior e o exterior. E também participa plenamente na redefinição do sujeito contemporâneo. Ao longo do século, a dança contribuiu para desafiar a própria noção de “corpo”, a tal ponto que se tornou difícil ver no corpo-dançante essa entidade fechada em que a identidade encontraria os seus contornos. O bailarino contemporâneo vive a sua corporeidade à maneira de uma “geografia multidirecional” de relações consigo e com o mundo, uma rede móvel de conexões sensoriais que desenha uma paisagem de intensidades: corpografias.

Para François Raffinot, o corpo-dançante é posto em movimento por parâmetros mais ou menos “físicos” ou “palpáveis”. Como compreender, então, esse tipo de jogo de forças “mais ou menos físicos”? É isso que tentaremos pensar, na seqüência, para entendermos como o corpo-dançante pode ser dito criador de dança.

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 75-79)