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O espaço do corpo-dançante: um espaço liso?

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 112-116)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

1. O corpo-dançante contemporâneo e o espaço do corpo

1.1 O corpo-dançante contemporâneo: um corpo expansivo

1.1.2 O espaço do corpo-dançante: um espaço liso?

O movimento dançado perturba nossas representações comuns de corpo e de espaço, como os vemos habitualmente. É o corpo-dançante que cria seu próprio espaço. Que espaço é esse? Deleuze e Guatarri diferenciam dois tipos de espaço, o liso e o estriado: “enquanto no espaço estriado as

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Tradução nossa: “Nikolaïs disse: você anda através do espaço. John (John Davis, filósofo e iluminador dos espetáculos da Ópera de Paris) repondeu: que espaço? Me mostre o espaço. Quem disse que há espaço?”.

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Tradução nossa: “ensinamento de John”.

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Tradução nossa: “o movimento cria o espaço”.

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formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas”. (1997, p. 185). O espaço liso é, portanto, sobretudo um espaço de forças. É esse espaço, por sua vez, que parece corresponder a priori o espaço experimentado pelo corpo-dançante contemporâneo.

No espaço liso, diz Deleuze e Guattari, “a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras...” (Id. Ibid., p. 185). Para o corpo-dançante contemporâneo, o espaço é feito de diferentes lugares que habita, assim como de afetos que reverberam: há, por exemplo, o calor do outro corpo- dançante que está próximo, a luminosidade que vem das janelas, o piso de madeira flexível por todo o solo... São intensidades que formam o espaço liso que o corpo-dançante encontra e integra em seu território corporal – junto às forças que o atravessam e o constituem. O espaço do corpo-dançante contemporâneo se diferencia, assim, de um espaço quadriculado ou estriado por referências métricas e objetivas, ordenado segundo um ponto de vista transcendental. Ele se distingue também de um espaço que seria um suporte abstrato e homogêneo sobre o qual ele se deslocaria. O espaço do bailarino é heterogêneo – à medida das diferenças intensivas que o constituem – e ao mesmo tempo contínuo para ele. Nele, se realiza uma viagem háptica, ou seja, apóia-se, sobretudo, nas sensações que tem do mundo em seu corpo, o mesmo que está em movimento. É por isso que o espaço liso, como explica Deleuze e Guattari, é um "espaço tátil", ou antes o "espaço háptico", por diferença ao espaço óptico162”. (Id. Ibid., p. 203). Constituído de sensações provocadas pelo ambiente (tal como a luminosidade que vem das janelas, a flexibilidade do piso, o barulho surdo da cidade, mas também o que pode evocar as bicicletas que se encontram lá...) o espaço liso do bailarino engaja- se numa “variação contínua de suas orientações, referências e junções; (que) opera gradualmente”. (Id. Ibid., 203).

O espaço liso tem, assim, a particularidade de ser “um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas”. (Id. Ibid.,

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Háptico, demarca Deleuze e Guattari, “é um termo melhor do que tátil, pois não opõe dois órgãos dos sentidos, porém deixa supor que o próprio olho pode ter essa função que não é óptica”. (1997, p. 203).

185) – A medida é a extensão objetiva, enquanto que a distância é relativa àquilo que a percorre. Ou ainda, “um espaço de afectos, mais que de propriedades”. (Id. Ibid., 185). É um campo de forças orientadas por aquilo que lhe é sensível. Com efeito, o “sintoma” não existe senão naquilo que o compreende. Um espaço luminoso, frio ou flutuante, existe apenas porque é percebido e criado como tal pelo corpo-dançante que lá se move. Michel Vincenot analisa essa experiência de dança:

(...) les sensations qu’il (o corpo-dançante) en ressent (do espaço) en sont déjà des interprétations. Et, partant de là, les façons de jouer, de rythmer, de se reposer ou de laisser surgir l’énergie sont une reconstruction de l’espace à un stade beaucoup plus avance; radicalement différent de la perception initiale. L’espace a changé de sens parce que le corps se l’est approprié sous d’autres formes163. (1999, p. 67).

O espaço liso do corpo-dançante é, pois, um espaço polarizado. De um lado, o ponto se encontro no que percebe do espaço, ou seja, o corpo- dançante ele próprio. De outro lado, a linha que desenha dançando é “um vetor, uma direção e não uma dimensão ou uma determinação métrica”. (DELEUZE, G., GUATTARI, F., 1997, p. 185).

A kinesfera de Laban, que apresenta um espaço polarizado onde o corpo dançante é efetivamente o centro de vetores, pode ilustrar o espaço relativo do corpo-dançante – embora a kinesfera não consiga dar conta da dimensão afetiva do espaço do corpo-dançante, pois nele o espaço liso é reduzido a uma representação estritamente espacial. Ora, a kinesfera labaniana apresenta o espaço relativo do corpo em um ponto fixo, num espaço objetivo: a kinesfera não consegue dar conta dos deslocamentos do corpo-dançante numa dança. É isso que é particular numa situação de dança: o espaço liso, desdobrado pelo corpo-dançante, é sujeito de uma polarização movente – espécie de descolamento do espaço liso de dança, no qual, aberto

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Tradução nossa: “(...) as sensações que (o corpo-dançante) sente (do espaço) são já interpretações. E, com base nisso, as maneiras de jogar, de ritmar, de pausar ou deixar emergir a energia, são uma reconstrução do espaço num estado muito mais avançado; radicalmente diferente da percepção inicial. O espaço mudou de sentido porque o corpo apropriou-se de outras formas”.

pelo corpo-dançante, é decuplado por sua própria entrada em movimento. Não é isso que Deleuze e Guattari evocam como sendo o “caráter envolvente ou envolvido do espaço liso”? (Id. Ibid., p. 193). Nessa perspectiva, o espaço de dança é envolvido pelo corpo-dançante, na dança e em seus movimentos, ao mesmo tempo em que o corpo-dançante é envolvido pelo espaço. Portanto, o corpo-dançante leva o espaço de dança com ele.

O corpo-dançante é, assim, uma espécie de “ponto zero” de todos seus espaços lisos abertos e re-fechados; pois ele mesmo move e muda o espaço. O corpo-dançante está em qualquer espécie de ponto móvel e, ao mesmo tempo, está num ponto absoluto de todos os espaços que ele pode desenhar ou intensificar pelos seus movimentos.

O que percebe o espectador de dança dos espaços do corpo- dançante? O espectador que é mais fortemente inscrito num espaço cênico estriado, pela perspectiva do teatro clássico, vê um corpo transformando-se, e por seu movimento entra e sai desses mesmos referenciais. Com efeito, “as referências (do espaço liso) não possuem modelo visual capaz de permutá- las entre si e reuni-las numa espécie de inércia, que pudesse ser assinalada por um observador imóvel externo164”. (Id, Ibid., p. 204). Jogando com essas mesmas referências visuais, a dança não leva o espectador no seu mundo? É o que podemos compreender a propósito de uma bailarina que se exprime a partir de sua experiência de espectadora: “Quand cela arrive en spectacle, j’ai la sensation de faire partie de la danse, d’être invitée dans le monde de l’interprète165” . (CARAKER, C., 2001, p. 92). Ela explica isso como sendo uma “résonance en l’interprète, l’espace et le public166”. (Id., Ibid., p. 92). Essa ressonância não é o signo da potência do caráter envolvente e envolvido do espaço liso da dança?

O espaço liso é uma maneira de habitar um espaço; ou ainda: é a

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“O espaço estriado, ao contrário, é definido pelas exigências de uma visão distanciada: constância da orientação, invariância da distância por troca de referenciais de inércia, junção por imersão num meio ambiente, constituição de uma perspectiva central”. (Id. Ibid., p. 205).

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Tradução nossa: “Quando isso acontece no espetáculo, tenho a sensação de fazer parte da dança, de ser convidada para o mundo do intérprete”.

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maneira de ser afetado mais ou menos intensamente pelas coisas que fazem esse espaço. É a base de construção de um território. Poderemos, assim, falar de território do corpo-dançante por dizer o espaço investido afetivamente pela dança ou pelo bailarino: um território de dança como sendo a junção do que entra afetivamente em dança. Isso explica ainda porque esse espaço háptico opera gradualmente, detém o poder de ser ilimitado: podendo ser afetado pelo barulho surdo da cidade, mas também pela cidade inteira, e porque não pelo país... Da mesma maneira que por qualquer coisa outra também imensa. É assim que podemos compreender Michel Vincenot: “Le corps a une façon particulière d’intégrer le cosmique qui a appartient à

tous…167”. (1999, p. 67). Toda coisa, qualquer coisa desde que afete o corpo-

dançante, pode entrar no espaço liso de dança. Inversamente, a dança tem o poder de envolver, não importa que elemento entrando em relação afetiva com o corpo-dançante.

Através de alguns exemplos concretos de dança, vamos ver quais formas podem tomar o espaço ou o território de dança do corpo-dançante.

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 112-116)