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A dança: um agenciamento

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 38-42)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

1. A dança contemporânea: um agenciamento heterogêneo

1.3 A dança: um agenciamento

Esta heterogeneidade de práticas nos mostra uma certa maneira de conceber a dança contemporânea, menos por uma lista de suas influências diversas que numa definição subentendida do que seja essa abordagem em dança. Como vimos, a dança contemporânea é um “agenciamento” de diferentes práticas (corporais, das linguagens, imaginárias, mas também artísticas) no corpo que dança.

1.3.1. Heterogeneidade do agenciamento

Gilles Deleuze e Félix Guattari elaboraram o conceito de agenciamento para pensar a junção de elementos heterogêneos que, num momento dado, entram em relação, em ressonância. “É uma multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos e que estabelece ligações, relações entre eles (...). Assim, a única unidade do agenciamento é o co-funcionamento: é a simbiose, uma simpatia". (1998, p. 83). Nesse caso, a dança contemporânea, de práticas de tipos e níveis diferentes – tais como o trabalho do centro propiciado pelo Aikido e as palavras utilizadas durante as aulas – ressoam juntos. Mas como compreender que tais heterogeneidades possam se recortar sobre o agenciamento da dança contemporânea? Como duas práticas de ordens e níveis diferentes podem ressoar em “simpatia”? É aí que o caráter heterogêneo do conceito de agenciamento vai tomar seu sentido. Em um agenciamento, nos diz Deleuze:

(...) há como que duas faces ou, ao menos, duas cabeças. Estados de coisas, estados de corpos (os corpos se penetram, se misturam, se transmitem afetos); mas também enunciados, regimes de enunciados: os signos se organizam de uma nova maneira, novas formulações aparecem, um novo estilo para novos gesto. (1998, p. 84).

É assim que o agenciamento da dança contemporânea entrelaça-se ao discurso: as práticas da linguagem que se encontram nas aulas, mas também nos escritos de bailarinos, coreógrafos, teóricos e historiadores da

dança contemporânea. Esses “anúncios” fazem o agenciamento da dança contemporânea. Eles não o sobrevoam. A dança contemporânea como agenciamento faz ressoar junto às práticas provindas de múltiplos horizontes e que, num dado momento, fazem funcionar essa engrenagem que chama-se dança contemporânea.

1.3.2. Flexibilidade do agenciamento

Essa primeira característica engendra uma outra: o agenciamento é uma junção flexível, maleável. Ele é constituído segundo os elementos que o fazem e refazem, o transformando sem cessar. Por exemplo, as pesquisas Cage-Cunningham, a propósito da relação dança-música, são determinantes e fazem bascular o agenciamento dança contemporânea de maneira quase irreversível no desenvolvimento da musicalidade própria à dança – e não mais assujeitá-la à música. A performance, por exemplo, que partilha “teoricamente” nas artes plásticas, coloca em obra a pessoa e seu corpo no processo de criação. Ela deriva, de uma certa maneira, dos acontecimentos processuais da dança contemporânea. A dança contemporânea não é uma junção de práticas fechadas. Ela se faz e se refaz em mutação no encontro com outros segmentos artísticos. Essa é a segunda característica importante do conceito de agenciamento.

Um agenciamento é uma multiplicidade de dimensões, de linhas de direções. A multiplicidade se conecta de maneira simbiótica, o que pressupõe uma transformação quanto à mudança de natureza. Ou seja, quando dois ou mais elementos se conectam, eles não apenas se complementam, eles constituem um novo elemento, com uma nova forma e uma nova intensidade, prontos a se modificarem novamente. Deleuze e Guattari afirmam: “uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza”. (1996, p. 16). A multiplicidade se define “pelo número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem ganha dimensão alguma sem mudar de natureza” (Deleuze & Guattari, 2002, p. 33).

Cada multiplicidade é já composta de termos heterogêneos em simbiose, num contínuo movimento de transformação em outras

multiplicidades. Como multiplicidade, o agenciamento não cessa de se transformar, de bascular e mudar de natureza. Cada proposição de dança contemporânea faz parte do agenciamento “dança contemporânea”, este reconfigura-se incessantemente ao mesmo tempo. Isto nos diz que o agenciamento de dança contemporânea, como todo agenciamento, é uma junção de uma consistência instável e precária.

1.3.3. Questões do agenciamento

Esta maneira de apreender e pensar a dança contemporânea nos coloca diante de outras questões que a ela se ligam. Trata-se de abordagens de ordem substancialista presentes em alguns discursos. Nessa perspectiva, o termo “essência”, a “origem absoluta” da dança contemporânea, que aparece algumas vezes nos debates até mesmo da dança em geral, não só se distancia da maneira como estamos tratando a dança, mas e, sobretudo, nos parece ter pouco sentido ao olhar das múltiplas práticas e pontos de vista que a compõem e a fazem atualizar-se16. Como exprime Maurice Béjart: “tout art ne vit et ne progresse qu’en mangeant les autres. Moi, affirme-t-il, pour faire de la danse, je mange de la musique, je mange de la littérature, de la peinture et je revomis cette nourriture en danse17”. (2000, p. 151). É precisamente isso que nos permite exprimir e pensar o conceito de agenciamento. A este propósito Deleuze nos diz: “o que há de interessante em conceitos como desejo, ou máquina, ou agenciamento, é que eles só valem por suas variáveis, e pelo máximo de variáveis que eles permitem”. (1998, p. 167). O conceito de agenciamento permite, portanto, pensar a dança contemporânea sem lhe dar substancialidade fixa. Ou seja, dando conta de seu primeiro traço: sua abertura e sua proposição a todas as práticas do corpo possíveis de encontrar-se e afetar-se.

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Em Deleuze, a diferença de perspectiva desse pensamento: “(...) o que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento”. (Deleuze e Parnet, 1998, p. 83).

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Tradução nossa: “toda arte não vive e nem progride senão comendo as outras. Eu, para fazer dança, como música, como literatura, como pintura e vomito esse alimento em dança”.

Com efeito, a dança contemporânea não pode ser encarada, visualizada, submetida a um absoluto. O agenciamento emerge naquilo que o constitui – não sendo uma dimensão vazia. O agenciamento da dança contemporânea se compõe no corpo-dançante, que polariza as práticas heterogêneas e as fazem em conjunção, dando-lhes consistência. Mesmo a dança em geral só pode ser pensada a partir do corpo-dançante. A dança não pode ser vazia do corpo. Nesse sentido, uma série de outras questões emerge, as quais tentaremos pensar no próximo segmento.

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 38-42)