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produção do corpo-dançante

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 55-61)

CAPÍTULO 1 COMO PENSAR A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

2. A dança e o plano dos corpos

3.2 Dança e produção imanente do corpo-dançante

3.2.3 produção do corpo-dançante

Pelo movimento e a dança, o bailarino cria, segundo José Gil, “un autre corps, un corps vécu comme pure énergie en mouvement, un corps senti de tensions et de forces intensives46”. (1989a, p. 103). É isso que

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Tradução nossa: “A aprendizagem dos movimentos, no dançarino, deve conduzir à formação, na consciência, de uma espécie de mapa dos circuitos de energia”.

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Tradução nossa: “(...) apoia-se, sobretudo, na recordação de um percurso de sensações. Quando danço, viajo sobre a pista numa seqüência de sensações que decifrei. Cada passagem de uma forma a outra se faz com as dosagens adequadas de energia com a qual eu pude me familiarizar ao saber da experiência e as repetições”.

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Tradução nossa: “um outro corpo, um corpo vivido como pura energia em movimento, um corpo sentido de tensões e de forças intensivas”.

chamaremos “corpo-dançante”. Esse corpo-dançante emerge das relações postas em obra pelo uso repetido das forças corporais, de certas configurações ou cartografia intensiva. Podemos compreender isso a partir do conceito de Corpo sem Órgãos (CsO); o CsO sendo intensidade zero a partir da qual tudo se produz. Assim, o corpo-dançante é, segundo a expressão de Deleuze e Guattari, “produção do real como grandeza intensiva a partir do zero”. (1996a, p. 13). O corpo-dançante emerge das forças corporais, isto é, ele se produz sobre o Corpo sem Órgãos, “intensidade zero”. Dito de outra maneira, a dança contemporânea agencia diversas práticas do corpo em torno da matéria intensiva primeira que é o CsO, cria intensivamente e positivamente o corpo-dançante. Sua imanência se dá, sobretudo, porque ela não usa meios exteriores ao movimento mesmo do corpo. É nesse sentido que podemos dizer que toda prática da dança é uma produção imanente do corpo-dançante.

Recordando que não há ideo-motricidade, mas somente sensório- motricidade na aprendizagem da dança, discursos, imagens e tudo isso que toca o corpo participa da produção imanente do corpo-dançante. Noutros termos, se pelo movimento a dança é produto do corpo, faz-se necessário efetivamente compreender que não somente a prática de exercícios físicos de dança produz um certo corpo-dançante, mas toda uma série de práticas, ou seja, o conjunto de agenciamento no qual é tomado.

Conclusão: agenciamento de dança e corpo-dançante

Chegamos ao término dessa primeira parte, na qual tentamos pensar a dança a partir do conceito de agenciamento. Essa concepção nos traz duas questões que se faz necessário expor aqui sucintamente.

De um lado, pensar a dança como um agenciamento corresponde a uma certa ontologia. Como um conjunto heterogêneo, o agenciamento se inscreve numa ontologia materialista, no qual “enunciados” e “estados de corpo” misturam-se como peças de uma mesma máquina. De fato, os enunciados, nos diz Deleuze, “não são ideologia, não há ideologia, os enunciados são peças e engrenagens no agenciamento, não menos que os estados de coisas”. (1998, p. 85). Vimos com a experiência de Steve Paxton como o enunciado “imaginez que vous avancez le pied droit, Le pied gauche...47

” estava ativo nos corpos. De maneira mais trivial, podemos recordar ainda quanto o agenciamento de dança – a incorporação, o fato de a dança entrar no corpo – passa pela palavra, compõe os enunciados. Pensar o conceito de agenciamento é recusar um dualismo ontológico. O agenciamento é apenas corpos, e esses corpos “podem ser físicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais, são sempre corpos ou corpus”... Assim, a simpatia resulta “de corpos que se amam ou se odeiam, e a cada vez populações em jogo, nesses corpos ou sobre esses corpos”. (1998, p. 66). Deleuze, como Espinosa, constrói todo o real sobre o princípio de composição de uma matéria intensiva segundo o jogo dos afetos. Pensar a dança como agenciamento supõe, assim, um materialismo e uma ontologia de intensidades e de afetos. Para Deleuze, é a diferença que importa, não o negativo. Ao lançar as bases de sua própria ontologia materialista, Deleuze insiste, em Bergson (1999), que o movimento do ser se dá por diferenciação interna, criação positiva, e não por contradição, num jogo dialético da determinação negativa. Quanto à dança, não existe movimento negativo. O movimento dançado, mesmo contra a tradição, não é negativo. Ele é afirmativo de outra coisa. Pleno de imanência.

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De outro lado, pensar a dança como um agenciamento é inscrevê-la numa filosofia da produção, na qual as coisas não existem por elas mesmas, mas são produções de relações de forças. O conceito de agenciamento apresenta efetivamente o duplo caráter de ser ao mesmo tempo produzido por estados de coisas e enunciados, e produtivo a partir de enunciados e de estados de coisas. Assim, é produzindo-se nos corpos que o agenciamento de dança produz corpos-dançantes.

Por conseqüência, se falamos de “corpo-dançante clássico” e de “corpo-dançante contemporâneo” é somente em referência a dois modos de produção de corpo-dançante que são dois agenciamentos: dança clássica e dança contemporânea.

Isso significa que corpo-dançante clássico e corpo-dançante contemporâneo são tipos-ideais que se opõem apenas no absoluto; pois a cada bailarino corresponde um corpo-dançante e, além disso, os bailarinos são freqüentemente formados com diversas técnicas. Nesse sentido, falar de “corpo-dançante clássico” e “corpo-dançante contemporâneo” não é mais que um abuso de linguagem. Com efeito, nos parece mais correto falar corpo- dançante clássico ou contemporâneo etc. – em termos de corporeidade dominante.

Nessa perspectiva, para considerar como é construído o corpo- dançante, faz-se necessário observar, de dentro, sua prática de dança, ou seja, ir ver no meio de sua prática. Por conseqüência, se seguidamente nos atermos a particularidade da prática contemporânea em oposição à dança clássica, tratar-se-á bem de comparar seu agenciamento, quer dizer, sua maneira de encarar, por conseguinte, de produzir, no meio de suas práticas, o corpo-dançante.

Enfim, o interesse de pensar com o conceito de agenciamento não é (como dissemos anteriormente) colocar em questão a origem do corpo- dançante, mas compreender os grandes eixos que o atravessam e o fazem. Trata-se, portanto, de determinar seus “traços diferenciais”, quer dizer, de determinar esses traços “sob os quais um elemento pertence formalmente mais a tal agenciamento do que a tal outro”. (Deleuze & Guattari, 1997, p. 82). Com efeito, para apreender o corpo-dançante contemporâneo, se faz necessário examinar os grandes traços de seu agenciamento. É o que

tentaremos fazer no segundo capítulo, nos perguntando o que é esse corpo, o que ele produz, dito de outra maneira, qual é seu território corporal, suas corpografias.

CAPÍTULO 2

O CORPO-DANÇANTE: TERRITÓRIO DE CRIAÇÃO DA DANÇA CONTEMPORÂNEA

A dança contemporânea, longe de estar em continuidade com a dança clássica que a precede, opera uma ruptura, possibilita uma outra abertura à dança: um novo agenciamento de dança. Ela revoluciona a arte coreográfica notadamente porque é reconsiderada sob um ângulo radicalmente novo. Seu principal ator: o corpo que dança. Tradicionalmente concebido através “do que ele permite”, como matéria pesada e inerte, o corpo é, na dança contemporânea, valorizado como fonte de criação sem precedentes. Com efeito, a dança contemporânea muda essa perspectiva tradicional – pensa o corpo através “do que ele pode”. O corpo se apresenta, assim, complexo, potente. Nele, o movimento não é somente a demonstração de gestos expressivos e a perfeição de seus desenhos, mas é também uma força de retenção, um traço que atravessa e sustenta a unidade de um gesto. Mais ainda: uma corpografia cuja escrita do movimento não é somente um impulso liberado, mas também desobediência a um impulso – um corpo que, para poder dançar, deve também resistir ao próprio impulso do dançar.

Como prática do corpo, a dança é feita de matéria e de energia. Ela revela sobretudo um jogo de relações de forças corporais: “C’est sur la longueur, la largeur et la tension d’un corps soutenu dans l’action musculaire

que la danse invoque son image48”, nos diz Cunningham. (1994, p. 34). Como

prática contínua do corpo, a dança contemporânea trabalha a “terra corporal”. Trata-se de uma maneira de mover e de considerar o corpo que produz, a partir do corporal, um corpo-dançante. Isto é, um certo “território corporal”. Como o corporal dá forma ao corpo-dançante que produz a dança contemporânea? Qual é o território construído pela dança contemporânea? Que corpografias ela compõe? Essas indagações nos colocam no meio da produção do corpo-dançante para apreender concretamente seus traços mais característicos. Trata-se, pois, dessa segunda parte – lugar onde tentaremos mostrar que o corpo-dançante contemporâneo é seu território de criação.

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Tradução nossa: “É sobre o comprimento, a amplitude e a tensão de um corpo apoiado na ação muscular que a dança invoca a sua imagem”.

1. A singularidade do corpo dançante: lugar de criação da dança

No documento Corpografias em dança contemporânea (páginas 55-61)